Nas fronteiras de um admirável mundo novo? O problema da personificação de entes dotados de inteligência artificial

AutorMafalda Miranda Barbosa
Ocupação do AutorUniv Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/ University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas97-112
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NAS FRONTEIRAS DE UM ADMIRÁVEL
MUNDO NOVO? O PROBLEMA DA
PERSONIFICAÇÃO DE ENTES DOTADOS
DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Mafalda Miranda Barbosa
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/
University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra. Doutorada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os entes dotados de inteligência articial e a responsabilização. 3.
Personalidade jurídica dos entes dotados de inteligência articial. 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O século XIX forjou as pessoas coletivas, enquanto sujeitos da relação jurídica,
que assim passam a f‌igurar na estrutura externa daquela ao lado das pessoas físicas.
Volvidos dois séculos, ao mesmo tempo que se assiste ao debate em torno da perso-
nalidade jurídica dos nascituros, que não poderá ser ignorada, num apelo à axiologia
fundamentante do sistema privatístico, o elenco tradicional dos sujeitos volta a ser
problematizado, primeiro, para questionar se os animais podem ser jus-subjetivados,
e depois – e muito embrionariamente –, para indagar até que ponto, face aos recentes
desenvolvimentos no campo da robótica e da inteligência artif‌icial, é ou não viável pen-
sar, para o futuro, em e-persons (pessoas eletrónicas). À questão “quem são os sujeitos
da relação jurídica” já não se consegue, hoje, dar uma resposta líquida no sentido de
incluir na categoria apenas as pessoas singulares e as pessoas coletivas. É que, ainda
que seja esse o resultado f‌inal da indagação, não podemos ignorar a ref‌lexão que a este
propósito tem de ser feita.
2. OS ENTES DOTADOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A
RESPONSABILIZAÇÃO
O problema da eventual personif‌icação dos entes dotados de inteligência artif‌icial
coloca-se, em primeiro lugar, no quadro jurídico, por força da necessidade de encontrar
uma resposta para o problema da responsabilidade por danos causados por entes dotados
de inteligência artif‌icial. E implica a questão de saber se o software pode ser visto como
um agente moral.
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MAFALDA MIRANDA BARBOSA
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Tradicionalmente, os f‌ilósofos referem que não pode haver responsabilidade se a
liberdade estiver ausente. O livre arbítrio surge como um conceito central da responsa-
bilidade moral, com que a f‌ilosof‌ia lida. Tal livre arbítrio pressupõe que a pessoa aja de
acordo com os seus pensamentos, as suas f‌inalidades, as suas motivações, e que tenha
capacidade para controlar o seu comportamento, o que implica um certo nível de cons-
ciência1. Não bastaria, na verdade, causar um evento em termos materiais para se poder
imputar a responsabilidade a um ente, mas exigir-se-ia um estado interno, integrado
por desejos, crenças ou outros elementos intencionais, que juntos conf‌iguram a ratio da
ação. Dito de outro modo, a responsabilidade moral f‌icaria limitada aos comportamentos
intencionais e aos resultados que se pudessem prever.
Ora, apesar de já nos termos referido à autonomia dos entes dotados de inteligência
artif‌icial, e de esta ser uma característica amiúde sublinhada pelos autores, como No-
orman explica, o conceito que autonomia que habitualmente mobilizamos é diferente
do conceito de autonomia específ‌ico das ciências da computação2. Neste contexto, a
autonomia traduz a possibilidade de o robot realizar independentemente complexas
operações num ambiente imprevisível3. Eles não seriam, contudo, capazes de controlar
as suas ações, funcionando como um mero instrumento avançado de um programador4.
É um facto que, quanto mais sof‌isticados se apresentam os robots, mais eles con-
seguem assumir decisões complexas e independentes. Os cientistas prestam especial
atenção a esta particularidade e ao facto de eles terem ou virem a ter a capacidade de
ref‌letir acerca do signif‌icado moral e social do seu comportamento5. Além disso, as
escolhas éticas (ethical decision making) estão já integradas em alguns sistemas com-
putacionais6. Em rigor, os programadores estão hoje a trabalhar conjuntamente com
os produtores no sentido de, por exemplo com referência aos veículos autónomos,
determinar se, no caso de um acidente, o automóvel deve preservar o condutor ou o
peão que atravessa a via. Neste âmbito, alguns pensadores defendem que os entes dota-
dos de inteligência artif‌icial podem ser percecionados como autonomous moral agents,
tanto quanto eles possam benef‌iciar de um nível signif‌icativo de autonomia e possam
ter um comportamento intencional7. Sullins aduz, ainda, que eles irão desenvolver
um papel social, o qual envolverá certas responsabilidades e que nos mostrará que
poderão entender os seus deveres diante de outros agentes morais8. Numa perspetiva
funcionalista, aliás, a qualidade de agente moral pressuporia, apenas, a existência de
certos comportamentos funcionalmente equivalentes aos comportamentos que nos
permitiriam atribui-la ao homem9. Bastaria, para que fosse considerado agente moral,
que o ente artif‌icial tivesse capacidade para processar informação, iniciando a sua ação
com base nela. A partir daqui, poderíamos passar a considerar que as características
1. Merel Noorman (2012); Deborah G. Johnson (2006), 195-204.
2. Noorman (2008), 32; Deborah G. Johnson/Merel Normann (2014), 143-158.
3. Noorman (2008), 46.
4. Deborah G. Johnson (2006), 200.
5. Noorman (2012).
6. Noorman (2012).
7. John P. Sullins (2006), 23-29.
8. Sullins (2006), 28. Cf, também, Noorman (2012).
9. Cf. L. Johansson (2010), 65-73.
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