Nas varas criminais mineiras não se ouve a palavra dos mortos: a criminologia etiológica como discurso presente na dosimetria penal

AutorLucas Augusto Reis Albuquerque
Ocupação do AutorGraduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Pós-graduando em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB. Advogado criminalista
Páginas70-85
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Lucas Augusto Reis Albuquerque1
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Entre algumas problemáticas, críticas e explanações, Zaaro-
ni, em seu livro “A Questão Criminal” (2013), aborda, com a maestria
que lhe é singular, o abismo cognitivo entre o senso comum e a aca-
demia quando o assunto é a questão criminal. No citado livro, o autor
nos faz reetir sobre como algumas conversas informais a respeito
da criminalidade e criminalização não possuem semelhanças com o
que se discute em sala de aula, bem como a mídia, em sua maioria,
trata a questão criminal de forma totalmente desconexa daquela que
é abordada pelos pesquisadores do tema.
A disparidade de discursos quanto à questão criminal citada
pelo autor não é percebida apenas entre o cidadão comum e o acadê-
mico, também está presente entre os atores da seara penal (advoga-
dos, juízes, promotores) e os que de fato estudam a temática. Discur-
sos velhos e desbotados quanto ao crime e à criminalidade ainda são
propagados por muitos e utilizados por vários que atuam diariamen-
te na área penal.
De tal situação nos vêm à mente duas perguntas: Quem são
os autorizados a dizer sobre a questão criminal? Por que alguns dis-
cursos nessa área não são creditáveis do ponto de vista metodológico
e histórico?
Conforme nos explica Zaaroni (2013, p.13-17), o mais au-
torizado, apesar de contrariar o senso comum e a prática hodierna2, a
1
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Pós-graduando
em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB. Advogado
criminalista.
2
Como aduz Zaaroni: “A ideia de que o penalista é o mais autorizado para propor-
cionar os conhecimentos cientícos acerca da questão criminal é uma opinião po-
!"#$%&"'!(')&(!*+,!('+&"'-.'+*&"'%&',/$0&'1+"+'2!/%!'3'
dizer sobre a questão criminal não é o penalista (estudioso da ciência
penal), tampouco os juristas ou os agentes da segurança pública. O
abalizado a discorrer cienticamente sobre o assunto é o criminó-
logo, pois é ele quem estuda o fenômeno da criminalidade e da cri-
minalização e a ele pertence, em regra, esse campo de análise. Não
estamos aqui dizendo que o criminólogo é o único capaz de discorrer
sobre a questão criminal, uma vez que o diálogo de conhecimentos é
importante e necessário, mas que, a priori, é ele o que possui conhe-
cimento aprofundado para tratar do assunto.
Com a consciência que o criminólogo é o apto a dizer sobre
a questão criminal, importante termos em mente que a Criminologia
é um Saber3 que vem sendo construído há séculos e que, apesar de
não existir uma verdade absoluta, já se pensou e discutiu muito sobre
a questão criminal e, por meio de acertos e erros, foi possível criar
bases e trilhar um caminho a respeito dos fenômenos do crime e da
criminalização.
Desse modo, pode-se dizer que atualmente esse Saber pos-
sui alicerces rmes e que alguns discursos criminológicos foram en-
frentados, debatidos e evidenciadas suas contradições e seus nefastos
efeitos. Assim, ainda que muitos defendam certas perspectivas, in-
clusive entre eles alguns criminólogos, através dos elementos trazidos
pela Criminologia ao longo dos séculos, tais perspectivas atualmente
não se sustentam.
Nesse ponto cabe acrescentar uma observação feita por Za-
aroni4 (2013, p.11), no sentido de que, quanto à temática da ques-
tão criminal, apesar de vários dizerem que não existe um objeto de
estudo determinado, tal análise está equivocada, pois, segundo nos
ensina o criminólogo argentino, o objeto de estudo por excelência da
Criminologia são os mortos, aqueles que perderam suas vidas por te-
rem sido vítimas de aplicações de teorias descabidas e inconsequen-
pular, mas não cientíca. Nem de longe basta saber direito penal para poder opinar
com fundamento cientíco acerca da questão criminal”. (ZAFFARONI, 2013, p.13)
3
Não entraremos na discussão se a Criminologia é uma Ciência ou não. Nesse sen-
tido, iremos nos referir a ela ao longo do texto como um “Saber”.
4
Conforme narra o autor: “Se eu tivesse perguntado qual é a realidade da questão
criminal à minha avó Rosa [...] ela teria respondido, com toda sabedoria, que a úni-
ca realidade nisso tudo são os mortos. E é isso mesmo, sem dúvida: a única verdade
é a realidade, e a única realidade na questão criminal são os mortos”. (ZAFFARONI,
2013, p. 11)
72 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
tes. Esses, os mortos, são uma realidade e devem ser ouvidos pelos
que estudam o assunto.
Por que os atores jurídicos não ouvem a palavra dos
mortos?
Informados de que algumas teorias e perspectivas na área
criminológica já foram enfrentadas e os seus potenciais lesivos fo-
ram demonstrados, surge a seguinte indagação: Por que aqueles que
possuem formação jurídica e compõem o cenário penal, como, por
exemplo, os advogados, juízes e promotores, ainda repercutem ve-
tustos discursos criminológicos, geralmente apresentados de forma
acrítica e leviana?
A resposta para essa pergunta é simples, porém intrigante e
deveras angustiante. Os atores jurídicos, em sua maioria, não são ca-
pazes de opinar, com rigor acadêmico, sobre os fenômenos da crimi-
nalização e criminalidade pelo singelo fato de nunca terem estudado
o assunto, ou seja, desconhecem a complexidade do tema, como tam-
bém sua construção, confrontação e crítica. Ao opinarem, geralmen-
te, apresentam análises superciais e pouco reexivas.
Para entender melhor o citado desconhecimento, passemos
a avaliar, de maneira breve, como é tratada a Criminologia na forma-
ção convencional de um jurista:
Em nossos cursos de Direito o Saber criminológico, em con-
junto com as demais matérias zetéticas, é deixado em segundo pla-
no, ocupa lugar residual e periférico (ANDRADE, 2008, p. 01). Um
importante estudo sobre o tema foi realizado por Mariana Dutra de
Oliveira Garcia, que em sua dissertação de mestrado foi capaz de de-
monstrar como a Criminologia é menosprezada nas faculdades de
Direito.
Segundo as pesquisas de Garcia, das 27 (vinte e sete) uni-
versidades federais brasileiras analisadas em seu trabalho, apenas 06
(seis) ofertam a disciplina de Criminologia como matéria obrigató-
ria, enquanto que 04 (quatro) das faculdades pesquisadas sequer ofe-
recem a mencionada disciplina. (GARCIA, 2014, p. 107-109).
Importante acrescentar que o estudo de Garcia se restringiu
a analisar apenas as universidades federais, que tendem a possuir
grades curriculares com matérias mais críticas e de aprofundamento
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 73
losóco. Se a situação do estudo da Criminologia nas faculdades de
Direito das universidades federais já é alarmante, podemos presumir
que a situação ao se analisar a grade de todos os cursos de direito
ofertados Brasil afora é ainda pior.
Amparados pelo mencionado estudo, podemos perceber que
a Criminologia não é o objeto de estudo de muitos daqueles que irão
ocupar posições de destaque na área criminal. Essa também foi a per-
cepção dos graduandos em Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais, que elaboraram o artigo “Criminologia Crítica e Educação
Jurídica: O Projeto Casa Verde Como Prática Pedagógica Emancipa-
tória”. No citado artigo, os autores demonstram a defasagem do ensi-
no criminológico nas faculdades de Direito e chegam a armar que:
Com efeito, enquanto o estudo da Dogmática Penal
ocupa, em geral, quatro ou cinco s emestres, o ensino
da Criminologia é relegado a segundo plano, ocupan-
do, quando muito, um semestre letivo e na condição
de disciplina optativa, contando, em muitos casos,
com carga horária reduzida em comparação com as
disciplinas obrigatórias. Com isso, há uma mensagem
clara a ser passada: a de que a educação em Crimi-
nologia não é essencial para a formação jurídica do
aluno (MIRANDA, ROSA, PALOSCHI, ROMANO,
FREIRE, MEDRADO, 2015, p. 363).
Apesar de não estar, comumente, presente na formação dos
bacharéis em Direito panoramas de análise que são objetos de estudo
da Criminologia, muitos da área jurídica se arriscam a abordar o as-
sunto a partir dessas p erspectivas. É comum vermos em programas
televisivos, rádios e p eriódicos, juízes, advogados e promotores dis-
correrem sobre a questão criminal como se fossem verdadeiros espe-
cialistas da área. Em grande parte, analisam os fenômenos do crime
partindo de suas percepções individuais, sem um respaldo teórico (já
que não foi parte de sua formação jurídica e tampouco objeto de estu-
do extraclasse) e bases cientícas. Fazendo uma analogia ao que nos
ensinou Zaaroni, por desconhecerem toda a construção do Saber
criminológico, esses juristas, ao emitiram opiniões sobre a questão
criminal, não dão ouvidos à palavra dos mortos. É de se notar que
muitos criminólogos também não dão ouvidos à palavra dos mortos,
74 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
mas esse descaso é ainda maior quando se trata de juristas, que em
grande parte, são leigos ao tema.
A abordagem, por juristas, de elementos e temas a par-
tir de uma perspectiva pertencente à Criminologia não s e limita a
participações em meios de comunicação, também percebida na prática
forense. Frequentemente observamos em pareceres, manifestações e
decisões judiciais discursos criminológicos. Muitos desses discursos
não são tratados com o devido rigor técnico e em inúmeros casos são
discursos que já foram, academicamente, confrontados, refutados e
evidenciadas suas contradições.
Exibida brevemente essa situação, nosso trabalho daqui
em diante tem como objetivo apresentar um determinado discurso
criminológico, sua confrontação e evidente contradição e, após, de-
monstrar como ele ainda é difundido, de maneira pouco reexiva,
por nosso Judiciário.
A Criminologia etiológica
A escola de pensamento criminológico denominada Posi-
tivismo, que tem como maior expoente Cesare Lombroso, em con-
junto com a escola criminológica da Sociologia Criminal de Enrico
Ferri, formam os alicerces que estruturam o que denominamos de
paradigma etiológico da Criminologia. Tal modelo de Saber Cri-
minológico tem seu início a partir do contexto europeu do m do
século XIX, momento em que predomina a cientização do controle
social e a incessante busca por respostas exatas aos problemas sociais
(ANDRADE,1996, p. 1).
De forma sucinta, pode-se dizer que o paradigma etioló-
gico da Criminologia possui a pretensão de transformar esse Saber
em uma Ciência casual, na qual a criminalidade é entendida como
um fenômeno natural possivelmente determinado. Nesse modelo, a
função primordial da Criminologia é, a partir da análise das deter-
minantes, tanto biológicas como sociais, explicar, por meio de um
método cientíco, as causas da origem do crime e do criminoso e,
assim, apresentar os diagnósticos. Vera de Andrade (1996, p. 1) nos
explica que a Criminologia etiológica “indaga fundamentalmente, o
que o homem (cr iminoso) faz e porque o faz”.
Alessandro Baratta, um dos grandes expoentes da Crimino-
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 75
logia, ao discorrer sobre o paradigma etiológico, em especial o Posi-
tivismo Criminológico, nos diz que em tal escola de pensamento o
delito era reconduzido:
A uma concepção determinista da realidade em que o
homem está inserido, e da qual todo o seu comporta-
mento é, no m das contas, expressão. O sistema penal
se fundamenta, pois, na concepção da Escola positi-
va, não tanto sobre o delito e sobre a classicação das
ações delituosas, consideradas abstratamente e inde-
pendentes da personalidade do delinquente, quanto
sobre o autor do delito, e sobre a classicação tipológi-
ca dos autores (BARATTA, 2002, p.39).
De igual forma a criminóloga Vera Malaguti nos informa que
para o Positivismo Criminológico:
O importante é “estudar” o autor do delito e classi-
cá-lo, já que o delito aparece aqui como sintoma de
sua personalidade patológica, causada pelos mesmos
fatores que produzem a degenerescência (BATISTA,
2011, p.45).
É de se notar que a Criminologia etiológica parte da
inferência à que a criminalidade é uma realidade ontológica, anterior
a positivação da norma penal. A lei apenas reconhece a existência do
crime e permite seu enfrentamento (ANDRADE, 1996, p.1).
Independente se as causas dos crimes são biológicas e psí-
quicas, como defendia L ombroso, ou se são ligadas à tríplice série
- individuais, físicas e sociais - como proposto por Ferri, o importan-
te é observar que a Criminologia etiológica trata o crime como um
fenômeno de violê ncia individual.
Como nos aponta Vera Regina, a Criminologia etiológica es-
tabelece:
Uma divisão “cientíca” entre o (sub) mundo da cri-
minalidade, equiparada à marginalidade e composta
por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigo-
sos e anormais (o “mal”) e o mundo, decente, da nor-
76 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
malidade, representado pela maioria na sociedade (o
“bem”) (ANDRADE, 1996, p.2)
Essa visão maniqueísta proposta pelo modelo etiológico, que
tem como premissa uma dicotomia entre o criminoso (o mau) e o
homem de bem (o bom), permitiu, e ainda permite, a estruturação
de um Direito Penal que busque a defesa social, delegando à pena
um caráter preventivo especial (ressocialização) e colocando como
primazia criminal a periculosidade do agente.
Tendo como plano de fundo um paradigma de Estado con-
sensual, a Criminologia etiológica não reete sobre a violência estru-
tural e institucional, não estuda as agências de criminalização, não
problematiza o Direito Penal e sequer analisa as interferências econô-
micas que possam vir a existir.
A virada epistemológica a partir da Reação Social
A partir de um movimento cultural crescente na América do
Norte em meados do século XX, mais precisamente na década de 60,
o paradigma etiológico da Criminologia começa a ruir.
Inuenciado por correntes de origem fenomenológica, pela
sociologia do desvio e do controle social, tendo como marco inicial
o trabalho de H. Becker intitulado “Outsiders, surge o movimento
criminológico denominado de Labelling Approach. Esse movimen-
to irá questionar e criticar a perspectiva ontológica do delito e ree-
tir sobre a construção histórica e sociológica do fenômeno criminal
(ANDRADE, 1996, p.3).
Dispondo como interpretação o construtivismo social, o
Labelling Aproch, ao explicar o delito, rompe com a ideia de que o
crime é uma realidade pré-constituída ou uma qualidade inerente à
conduta.
Trabalhando com os conceitos de “conduta desviada” e “re-
ação social” e sua interdependência, essa nova escola criminológica
nos apresenta a ideia de que o crime é uma qualidade dada a alguns
indivíduos e que tal atributo decorre de um complexo sistema, tanto
formal como informal, de interação social, denição e seleção. (AN-
DRADE, 1996, p.3)
A partir de então, a Criminologia começa a estudar o sistema
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 77
criminal e os outros elementos que o inuenciam. Tem-se um giro
interpretativo, o foco da análise criminológica não é mais o autor do
crime e sim os mecanismos de criminalização de condutas.
Fraturando com a ideia maniqueísta, até então presente, de
que exi ste o crim inoso e o cidadão de bem, o Labelling Aproch - ou
Teoria do etiquetamento- explica que o surgimento do crime é um
fenômeno complexo, seletivo e estigmatizante, um verdadeiro ema-
ranhado de situações e relações que vão etiquetar alguns indivíduos
como criminosos e outros não. Como nos ensina Vera Regina:
Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade ne-
gativa ou nocividade inerente) nem seu autor um cri-
minoso por concretos traços de sua personalidade ou
inuências de seu meio ambiente. A criminalidade
se revela, principalmente, como um status atribuído
a determinados indivíduos mediante um processo:
a “denição” legal de crime, que atribui à conduta o
caráter criminal e a “seleção” que etiqueta e estigmati-
za um autor como criminoso entre todos aqueles que
praticam tais condutas. (ANDRADE, 1996, p.3)
Se antes do movimento da Reação Social a pergunta era:
“porque aquele indivíduo praticou determinado crime?”, com o ad-
vento do Labelling a pergunta tornou-se: “por que a conduta pratica-
da por aquele indivíduo é entendida como crime?”.
Como leciona Vera Malaguti, o surgimento da Teoria da Re-
ação Social rompe com a metodologia do paradigma etiológico, pois
“o processo de interação dá um sentido radicalmente diferente ao
método causal explicativo. O que está em jogo passa a ser quem tem
o poder de denir e quem sofre a denição” (BATISTA, 2011, p.74).
Nesse sentido, interessante é a colocação de Lola Aniyar de
Castro. Ao discorrer sobre o Labelling, ela leciona que: “esta escola
deixou estabelecido, nalmente, que a causa do delito é a lei, não
quem viola, por ser a lei que transforma condutas lícitas em ilícitas”
(CASTRO, 1983, p. 97).
Da Teoria da Reação Social em diante o estudo da Crimi-
nologia se expande e complexica. Se preteritamente era o autor do
crime o elemento de análise, agora o que é estudado são os processos
normativos de criminalização de condutas, as agências de controles
78 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
sociais, o sistema carcerário, a interação e estigmatização social, a
reincidência criminal, entre outros. Substitui-se um “modelo estático
e descontínuo de abordagem por um modelo dinâmico e contínuo
que conduz a reclamar a redenição do próprio objeto criminológi-
co” (ANDRADE, 1996, p.5).
Importante acrescentar que, tendo como pontapé inicial o
paradigma da Reação Social, de grande relevância é o surgimento da
escola de pensamento criminológico crítico, que, a partir dos ques-
tionamentos apresentados pelo Labelling Approach e, em especial,
pela análise das obras de Rusche e Kirchheimer (Punição e estrutura
social) e de Michel Foucault (Vigiar e punir), começa a trabalhar a
questão criminal por meio de um enfoque “macrossociológico que
historiciza a realidade comportamental e ilumina as relações com a
estrutura política, econômica e social” (BATISTA, 2011, p.89).
Em grande parte de bases marxistas, a Criminologia Críti-
ca, além de manter os questionamentos a respeito dos processos de
seletividade criminal e os sistemas de criminalização, aprofunda na
lógica dos processos de acumulação de capital e desigualdades e o
nexo desses com os mecanismos de seleção e estigmatização penal
(BATISTA, 2011, p.90).
Com todas as reexões, críticas e considerações apresentadas
pela escola do Labelling e todas as outras que surgiram a partir da vi-
rada de perspectiva, como a já apontada Criminologia Crítica, o pa-
radigma etiológico tornou-se insuciente para responder os proble-
mas sobre a questão criminal. No entanto, ainda hoje ele é usado no
discurso de muitos, geralmente de forma anticientíca e nada crítica.
A começar de agora apresentaremos o uso do vetusto discur-
so da Criminologia etiológica por nosso Poder Judiciário, em espe-
cial partir de análises de algumas decisões de varas criminais perten-
centes ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A análise terá como
escopo demonstrar como é propagado, ao se realizar a dosimetria pe-
nal, um discurso pertencente ao Saber criminológico que há muito já
foi confrontado e evidenciados seus potenciais lesivos e contradições.
A Criminologia etiológica como discurso ainda pre-
sente na dosimetria penal
Antes de partirmos para a apresentação das decisões, compe-
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 79
te explicar um pouco sobre como funciona o sistema da dosimetria
penal no Direito Brasileiro.
Nosso ordenamento jurídico penal adotou o critério trifásico
para a xação da pena, conforme o art. 68 do Código Penal Brasileiro.
Tal critério estipula que a pena do condenado será denida passan-
do-se por três diferentes fases. A primeira fase, previstas no artigo 59
do CP, diz respeito ao exame das circunstâncias judiciais, xando-se
ao nal dessa uma pena-base. Após, analisa-se as circunstâncias le-
gais, que são as agravantes (artigos 61 e 62 do CP) e as atenuantes
(artigos 65 e 66 do mesmo diploma legal). Existindo qualquer uma
delas, a pena será devidamente agravada ou atenuada e uma nova
pena será xada, denominada pena provisória. Na última fase, so-
bre a pena provisória incidirá as causas de aumento ou diminuição
de pena. Essas estão localizadas na parte geral e na parte especial do
Código Penal. Do resultado dessas três etapas teremos a pena nal.
Nosso trabalho terá como foco apenas a análise das circuns-
tâncias judiciais, primeira fase da dosimetria penal5. Apresentaremos
exemplos de como é valorada, pelos juízes, e qual é o discurso que
está por trás, em alguns casos, dos critérios da conduta social e a per-
sonalidade do agente, previstos no art. 59 do Código Penal.
Sem entrar no mérito da possível inconstitucionalidade da
valoração negativa da conduta social e da personalidade do agente,
ou até mesmo a reexão sobre um direito à imoralidade, como pro-
posto por Ferrajoili6, nosso objetivo aqui é o de meramente apresentar
decisões exemplicativas da forma como o discurso criminológico
etiológico ainda está presente, ao se fazer a análise das citadas cir-
5
C omo dispõe o art. 59 do CP: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antece-
dentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias
e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,
conforme seja necessário e suciente para reprovação e prevenção do crime:”
6
Conforme nos ensina o jurista italiano: “A sanção penal, da mesma forma, não
deve possuir nem conteúdos nem nalidades morais. Assim como a previsão legal e
a aplicação judiciária da pena não devem servir nem para sancionar nem para indi-
vidualizar a imoralidade, também a sua execução não deve tender à transformação
moral do condenado. O Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a
não serem ruis, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui,
igualmente, o direito de alterar – reeducar, redimir, recuperar, ressocializar etc – a
personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o
direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é” (FERRAJOLI, 2010,
p. 208).
80 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
cunstâncias, como argumento para aumentar a pena do condenado.
Passemos a apresentar um conjunto de 10 (dez) sentenças
condenatórias proferidas por juízes pertencentes ao Tribunal de Jus-
tiça de Minas Gerais, em que o modelo etiológico é utilizado, ao se
aplicar a pena, para valorar negativamente as circunstâncias judiciais:
1. Nos autos criminais de nº 0201982-08.2013.8.13.0702, o
Juízo da 2ª Vara Criminal de Uberlândia/MG, ao realizar a xação
da pena do réu, nas circunstâncias judiciais, elevou a pena por um
desvalor da conduta social e personalidade do agente sob o seguinte
fundamento:
A conduta social é desajustada pela constatação de
envolvimento com situação delitiva que inspira sérios
cuidados nesta cidade e região, devido o alto índice de
ocorrências desse jaez, observado que registra outros
feitos em seu desfavor. A personalidade evidencia pe-
riculosidade elevada, já que registra condenação ante-
rior por crime de igual natureza, sendo que a prática
do delito em epígrafe demonstra desrespeito à lei e aos
princípios básicos do convívio social paco, além de
sentimento de indiferença ao ordenamento jurídico e
à própria Justiça. É patenteado propensão ao crime de
grande poder ofensivo.
2. O mesmo Magistrado, no processo de 0395255-
49.2013.8.13.0702, aumentou a pena de um outro condenado ao ar-
gumento de que:
Quanto à conduta social do réu, não subsistem ele-
mentos nos autos que potencialize a confecção de co-
mentários sobre seu proceder familiar e prossional,
restando inconteste o fato de que vive às voltas com a
criminalidade. A personalidade revela-se voltada para
o envolvimento na prática de atos transgressores, rati-
cando total desrespeito à lei, aos valores e aos prin-
cípios que devem ser observados no conviver social.
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 81
3. Por sua vez, no processo penal de 3401489-
90.2013.8.13.0024, originário da 3ª Vara Criminal de Belo Horizonte/
MG, o Magistrado, ao realizar, na sentença condenatória, a dosime-
tria penal, justicou um aumento de pena quanto à personalidade do
agente a partir da seguinte adução: “Personalidade: marcada por tra-
ços de periculosidade, consubstanciados na anomia e na renitência
do acusado em se engajar no desenvolvimento de atividades lícitas.
4. De igual modo foi a justicativa dada pelo Juiz da 2ª Vara
Criminal de Montes Claros/MG ao dosar a pena no processo crimi-
nal nº 0341335-94.2013.8.13.0433. Segundo o Magistrado, a pena do
réu deve ser aumentada pois sua “personalidade informa tendência
delitiva e desajuste extremo, sem qualquer sintoma de noção moral e
bons costumes para a vida em sociedade”.
5. Já no Juizado Especial Criminal da Comarca de Ma-
nhumirim/MG, o Juízo, ao sentenciar nos autos de nº 0013901-
26.2013.8.13.0395, fundamentou o aumento de pena quanto à perso-
nalidade do agente da seguinte maneira:
O conjunto probatório carreado aos autos demonstra
que o acusado tem personalidade voltada para a práti-
ca de crimes, pois a CAC do mesmo apresenta sete pá-
ginas, o que demonstra um desajuste comportamen-
tal do agente - razão pela qual tal circunstância deve
reetir-se desfavoravelmente ao réu neste momento
processual de aplicação da pena.
6. A decisão condenatória proferida nos autos de0014544-
53.2013.8.13.0372, da 2ª Vara Cível e Criminal da comarca de Lagoa
da Prata/MG, teve como argumento para o aumento de pena de um
dos réus que sua personalidade:
É distorcida e vocacionada para o crime. Ao que se vê
dos autos, o réu resolveu consagrar sua vida à prática
de ilícitos, iniciando-se na delinquência ainda na ado-
lescência, conforme demonstra a sua certidão de ante-
cedentes de atos infracionais. A prática de delitos, da
qual nunca tirou férias, sempre foi o seu meio de vida,
82 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
demonstrando especial aversão ao trabalho.
7. Semelhante foi a decisão dada pelo Juízo da 2ª Vara Cri-
minal de São João Del Rei/MG, que ao analisar as circunstâncias ju-
diciais, na sentença condenatória do processo penal de nº 0060979-
39.2012.8.13.0625, fundamentou um aumento de pena a partir da
seguinte justicativa: “no que diz respeito à conduta social e perso-
nalidade, apresentam-se comprometedoras, denotando tendência à
delinquência”.
8. Na mesma linha foi a motivação do Magistrado da 3ª Vara
Criminal de Contagem/MG, que, no processo penal de nº 0019180-
29.2017.8.13.0079, ao analisar as circunstâncias judiciais, elevou a
pena de ambos os acusados com o pretexto de que a personalidade
do agente é “desfavorável, pois com o cometimento deste delito veri-
ca-se que possui a personalidade voltada para o crime”.
9. Noutro giro, o Juízo da Vara Única de Bambuí/MG, ao va-
lorar negativamente a conduta social dos dois acusados no processo
penal de nº 0011847-52.2013.8.13.0051, utilizou-se do seguinte argu-
mento:
A conduta social, que envolve a situação do acusado
nos diversos papéis desempenhados na comunidade
em que vive, verico que não há prova de atividade
laborativa lícita realizada pelo Réu, não trabalha for-
malmente e as provas indicam que o Réu se dedica ao
tráco de drogas, havendo inclusive o receio da socie-
dade quanto a sua pessoa já que foi alvo de diversas
denúncias junto a Polícia Militar. O sucesso da em-
preitada criminosa fez que com o mesmo conseguisse
vínculo com diversos agentes do tráco, recrutando
um menor para. O papel exercido pelo réu na socieda-
de é o pior possível, pois, dedica a vida para dissemi-
nação de drogas e tem um padrão de comportamento
voltado para a transgressão à lei. Nada há de favorável
no tocante à sua conduta social.
10. Como último exemplo citamos a s entença condenatória
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proferida nos autos de nº 0016618-90.2013.8.13.0110, em que o Juiz
da Vara Única da Comarca de Campestre/MG, ao averiguar a con-
duta social do agente, alegou um aumento de pena ao fundamento
de que:
O acusado possui conduta social inadequada, voltada
para o crime, o que se constata pelas inúmeras conde-
nações que ostenta no decorrer de sua vida já há vários
anos, conforme CAC de . 121/129, além de ter reco-
nhecido em interrogatório judicial que “tem a mente
voltada para o crime (...)” (f. 120), não demonstrando
comportamento compatível com o exigido para a vida
em sociedade.
Deixando de lado a vagueza e abstração das análises judi-
ciais, em que os magistrados não se ativeram aos casos concretos e,
decorrente disso, uma possível violação à garantia constitucional da
individualização da pena, art. 5º, inciso XLVI, CR, o que é importante
compreendermos dos excertos decisivos apresentados é o discurso
que está por trás das justicativas para o aumento de pena, ao se levar
em consideração a conduta social e a personalidade do sentenciado.
Podemos notar que aquele antigo e ultrapassado paradigma etiológi-
co ainda é muito frequente na seara criminal.
Para muitos magistrados, como visto, o crime ainda é en-
tendido como uma realidade ontológica, em que os fatores sociais e
biológicos serão determinantes para denir o criminoso. Analisam o
agente e não reetem sobre o fenômeno da criminalização, seletivi-
dade penal e todo o complexo mecanismo de etiquetamento social.
Tais juízes, ao fundamentarem da forma como foi apresentada nos
exemplos, demonstram desconhecer toda a construção do Saber cri-
minológico e o giro interpretativo apresentado pela Criminologia da
Reação Social.
Termos oriundos de um modelo etiológico como “pericu-
losidade elevada”, “tendência delitiva”, “personalidade voltada para o
crime” entre outros, são propagados por nosso Judiciário sem uma
reexão teórica e um mínimo rigor cientíco. A maneira como essas
expressões são utilizadas e o contexto em que são apresentadas é um
desrespeito à toda a estruturação do Saber criminológico e a supera-
ção do caráter ontológico do delito.
84 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
Poderíamos entrar aqui na questão mais genérica de que a
própria análise da conduta social e personalidade do agente como
proposta pelo art. 59 do C ódigo Penal é um ranço do Positivismo
Criminológico e de toda a herança do paradigma etiológico. No en-
tanto, nosso objetivo nesse tópico foi o de apenas apresentar exem-
plos, através de fragmentos de decisões, de como ainda está presente
esse modelo de se pensar o crime em nossa prática penal e como esse
discurso é irresponsavelmente reproduzido por nossos magistrados.
Considerações nais
Conforme apresentado ao longo de todo o texto, o Saber
criminológico, como qualquer outro Saber, é uma construção e se
algumas teses atualmente não possuem coerência academicamente é
porque houve uma suplantação e não é mais viável sua defesa.
No entanto, como visto no decorrer do presente artigo, temá-
ticas ligadas à questão criminal, que no campo cientíco não são mais
creditáveis e sustentáveis, haja vista suas contradições e calamitosos
efeitos, ainda são imprudentemente transmitidas por nossos juízes.
É de se perceber que a forma como grande parte dos atores
penais trata a questão criminal é um reexo de como a Criminologia
é deixada de lado na formação do jurista.
De grande importância para se entender todo o complexo
sistema do crime e da criminalização, o Saber criminológico é tratado
pelas faculdades de Direito como uma matéria de pouca relevância e
necessidade.
Pelo fato de não ouvirem “a palavra dos mortos”, uma vez
que em muitos casos nem ao menos foram apresentados a ela, os que
compõem a área criminal, ao transmitirem teses criminológicas ob-
soletas, viram as costas para inúmeros acadêmicos que dedicam suas
vidas a estudar a questão criminal e, principalmente, desrespeitam
aqueles que tiveram suas vidas ceifadas por teorias e ilações desca-
bidas.
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