Natureza jurídica da atividade delegada, regime jurídico dos titulares e extinção da delegação do artigo 236 da Constituição Federal

AutorOdemilson Roberto Castro Fassa
Páginas115-170

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Embora uno o Poder estatal, no Brasil, exterioriza-se tripartido, nas funções típicas: legislativa, judicial e administrativa, esta também denominada executiva ou governativa, interessando ao presente estudo a função administrativa, através da qual, grosso modo, o Estado realiza os interesses coletivos, valendo-se, para tanto, de seus órgãos, entidades e agentes públicos.

Para a realização dos tais interesses coletivos, o Estado adota formas de atuação variada, inclusive através de terceiros, como ocorre em relação à delegação do artigo 236 da Constituição Federal.

Entretanto, estabelecer a natureza jurídica de tal delegação, sua extinção e, ainda, o regime jurídico dos seus titulares é aventurar-se por caminho tortuoso, com muitas opções a seguir, porquanto não há unanimidade na doutrina e na jurisprudência versar, o instituto mencionado, sobre serviço público, delegação de função pública, ou, ainda, atividade do Estado, embora não haja divergência quanto ao fato de que a prestação se faz sob o regime jurídico-administrativo.

No que se refere à natureza jurídica da atividade delegada, três correntes contemplam as principais tendências1: a de que constitui

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delegação de serviço público; a de que se refere à delegação de função pública e, finalmente, a de que se trata de delegação de atividade estatal não constitutiva de serviço público.

Registra-se, entretanto, que a conclusão deste trabalho se conforma com qualquer das posições acima mencionadas, porquanto, seja como modalidade de delegação de serviço público, este o nosso entendimento, seja como modalidade de delegação de função pública e, ainda, como delegação de atividade estatal não constitutiva de serviço público, refere-se a delegação de parcela de poder do Estado a pessoa física, para em nome dele exercitar a atividade registral e de notas, impondo-se a temporariedade inferida do princípio constitucional republicano e, de consequência, a adoção de outro termo em complementação aos já existentes no artigo 39 da Lei n.
8.935/94, posto que não pode estender-se por toda a vida do delegado, como ocorria no regime monárquico de governo.

3. 1 Natureza jurídica de serviço público

A natureza jurídica da atividade registral e de notas, ao longo de sua existência, no Brasil, experimentou variações que podem ser relacionadas aos diversos modelos de Estado.

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No Estado Liberal, que vigorou até as primeiras décadas do século XX, abarcando, portanto, o Império e parte da República, tais “offícios públicos” ainda se encontravam em poder de proprietários, ou sucessores de proprietários, que os haviam adquirido por concessão do monarca.

No Estado Social de Direito, vigente até a década de 1970, tais atividades estiveram atreladas às disposições das Normas de Organização Judiciária dos Estados, variante entre a prestação pelo poder público, através de funcionários do Estado, e a prestação delegada a particulares, divergências que acabaram resolvidas com a promulgação da Emenda Constitucional n. 7, de 13.4.77, que implementou, no artigo 206 da Emenda Constitucional n. 1/69, a oficialização constitucional das então serventias do foro judicial e extrajudicial2(leia-se: ofícios judiciais, notários e registradores), explicitando, a partir de então, a prestação diretamente pelo Estado, através de seus funcionários.

Entretanto, na vigência do Estado Democrático de Direito, estabelecido desde o início dos anos 1980, transformações também foram constatadas na prestação da atividade registral e de notas, porquanto, através da Emenda Constitucional n. 22, de 15.11.1982, se alterou a redação do mencionado artigo 206 da Emenda Constitucional n. 1/69, mantendo-se a oficialização constitucional apenas em relação às serventias do foro judicial (leia-se: ofícios de justiça).

Em relação às serventias extrajudiciais (leia-se: notários e registradores), ficou estabelecido no artigo 207 que seriam regulados pela legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, retrocedendo o legislador constituinte ao modelo que teve vigência

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até a Emenda Constitucional n. 7/77 e, por cerca de uma década, tais serviços foram prestados de forma direta ou através de execução delegada a particulares, segundo a legislação de cada Estado, até a promulgação da Constituição de 1988, que no artigo 2363estabeleceu a delegação constitucional de sua execução a particulares.

Às mudanças experimentadas pela atividade registral e de notas, como vimos, oferecida inicialmente em regime privado e depois público, seguindo-se regimes ora privado, ora público, segundo a legislação de cada Estado da Federação, soma-se a tormentosa tarefa de identificar qual atividade estatal se qualifica como serviço público, primeiro porque o texto constitucional e a legislação infra-constitucional não oferecem tal definição; segundo, porque variáveis as atividades assim consideradas ao longo da história do Estado; e terceiro, porque tais atividades continuam sendo modificadas conforme as necessidades coletivas, assim entendidas pelo Estado legislador, como ocorreu, por exemplo, em relação aos consórcios públicos (Lei n. 11.107/2005).

Pois bem, adepto do critério orgânico ou subjetivo, que se propõe a identificar as funções do Estado4tomando-se em consideração quem as produz, HELY conceitua serviço público como “todo aquele prestado pela administração ou por seus delegados, sob normas e controle estatais, para satisfazer as necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado”5.

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Na mesma linha, porém mais sintético, MASAGÃO6sustenta que serviço público “é toda atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins”. Também CAVALCANTI7leciona que, sob a denominação serviços públicos, “deve-se compreender todo o complexo sistema de organismos públicos ou semipúblicos, que funcionam menos na base do lucro do que na da necessidade de atender aos interesses da coletividade”.

É “toda atividade exercida pelo Estado ou quem lhe faça as vezes, para a realização direta ou indireta de suas finalidades e das necessidades ou comodidades da coletividade, ou mesmo conveniências do Estado, tudo conforme definido pelo ordenamento jurídico, sob regime peculiar, total ou parcialmente público, por ele imposto”, afirma ARAÚJO8.

HELY9afirma que, por serem essenciais ou apenas úteis à comunidade, distinguem-se em serviços públicos e serviços de utili-dade pública [“(...) quando aludimos a serviço público abrangemos ambas as categorias”], afirmando, entretanto, que: o que prevalece é a vontade do Estado, qualificando o serviço como público ou de utilidade pública, para sua prestação direta ou indireta, pois serviços há que, por sua natureza, são privativos do Poder Público e só por seus órgãos devem ser executados, e outros são comuns ao Estado e aos particulares, podendo ser realizados por aquele e estes.

A esta constatação agrega-se a posição de JUSTEN FILHO, que aponta a preponderância da Constituição e seus princípios

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como única solução adequada a equacionar a problemática da noção de serviço público10.

No mesmo sentido, CARRAZZA11, para quem: nas hostes do direito, o que torna público o serviço não é a sua natureza, nem qualquer propriedade intrínseca que possua, mas o regime jurídico a que está submetido. Melhor dizendo, se ele for prestado por determinação constitucional ou legal, será, por sem dúvida, um serviço público, ainda que, eventualmente, não seja essencial à sobrevivência do homem. (Grifo nosso)

Mesmo admitindo destinar ao oferecimento de atividade jurídica, não se vislumbram dificuldades para enquadrar, na concepção ampla de serviço público oferecida por ARAÚJO12, ou por MASAGÃO13, a atividade desempenhada pelos delegados do artigo 236 da Constituição Federal, mormente considerando-se sua aptidão para

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promover a dignidade da pessoa humana; realizar um dos valores fundamentais da Nação e satisfazer o interesse de todos os nacionais e estrangeiros residentes no País, até porque o direito à propriedade é um dos fins a ser realizado pela sociedade brasileira, tal qual se encontra estampado no artigo 5º da Constituição Federal14.

É de tal importância a propriedade no sistema jurídico brasileiro que a sua garantia é reiterada no inciso XXII do mesmo dispositivo constitucional, garantia esta que se realiza através do regis-tro da transmissão no serviço registral de imóveis, como forma de aquisição e perda do domínio dos bens imóveis, consoante dispõe o artigo 530, I, do Código Civil de 1.1.1916, com vigência a partir de
1.1.1917, que se repetiu no Código Civil de 2002, artigo 1.245.

Não fosse público o serviço registral, o Estado não poderia suprimi-lo quando entendesse conveniente e também não estaria obrigado a garantir a sua continuidade quando não fosse executado pelo particular delegado.

Não serve, para afastar a qualificação da atividade registral como serviço público, a alegação de que o legislador constitucional se utilizou da palavra serviço e não da expressão “serviço público”, porque a mesma técnica é adotada em relação aos serviços mencionados nos artigos 21, incisos XI, XII, letras “a”, “b”, “d”, “e”; 25...

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