Natureza jurídica, estrutura e funções do consentimento à atuação médica

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Páginas57-101
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NATUREZA JURÍDICA,
ESTRUTURA E FUNÇÕES DO
CONSENTIMENTO À ATUAÇÃO MÉDICA
As palavras estão em nosso caminho! – Onde os antigos homens colocavam uma palavra, acreditavam
ter feito uma descoberta. Como era diferente, na verdade! – Eles haviam tocado num problema e,
supondo tê-lo resolvido, haviam criado um obstáculo para sua solução.
Agora, a cada conhecimento, tropeçamos em palavras eternizadas, duras como pedras, e é mais fácil
quebrarmos uma perna do que uma palavra1.
Embora exista, no Brasil, doutrina relativa ao consentimento do paciente para
intervenções em relação à sua saúde ou mesmo para a realização de pesquisas na área,
parcos são os estudos mais aprofundados acerca da sua natureza e interpretação, ou
mesmo para que se verif‌ique se há importância prática, necessidade ou pertinência
nessa investigação, a f‌im de que se possa extrair disso a sua estrutura e o modo pelo qual
esse consentimento repercutirá no mundo jurídico, especialmente no direito médico.
De modo geral, em uma formulação mental metódica e f‌igurativa, os fenômenos
jurídicos percorrem etapas, iniciadas pela hipotética delimitação de fato jurídico gene-
ricamente considerado no patamar normativo (para o qual, conforme referido, passam
os fatos do mundo que interessam ao direito, tecnicamente porque apresentam feição
jurídica ou, ainda, na linguagem de Pontes de Miranda, integram um suporte fático que
o direito determinou como componente do mundo jurídico2), transitando pela possibi-
lidade de realização fática, a incidência da norma quando concretizada e a consequente
juridicização, sendo tal fato alçado ao plano da existência3.
A def‌inição do fato jurídico e a atribuição de determinadas consequências ou fun-
ções a ele relacionadas cabem à norma jurídica (nas espécies designadas como “regras” e
“princípios”4), a qual estrutura o sistema jurídico. As regulamentações que ensejam fatos
1. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: ref‌lexões sobre os preconceitos morais. Trad. por Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. § 47.
2. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. Tomo I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
p. 65 (§ 2) e p. 76 (§ 7).
3. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 45.
4. Pontes de Miranda não aborda essa questão da divisão da norma em princípios e regras. No entanto, toda a dou-
trina atual trata das novas categorias normativas como possíveis bases da incidência. Tanto as regras quanto os
princípios são normas, mas, nas regras, têm-se essas normas como descritivas de condutas de modo mais direto
(permissivas, proibitivas, obrigacionais etc.), e nos princípios, há normas “imediatamente f‌inalísticas”, mais
genéricas e indicativas de um “f‌im a ser atingido” com uma “função diretiva”, pois não contemplam comporta-
mentos ideais descritos aprioristicamente.
CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO • FLAVIANA RAMPAZZO SOARES
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jurídicos podem ocorrer em diferentes medidas, conforme critérios qualitativos e quanti-
tativos, de ordem essencialmente axiológica, com permanente potencial de transformação,
considerando a dimensão do fato para o mundo do direito5, assim como para o intérprete.
O suporte fático, segundo Mello, contempla elementos nucleares (que são aqueles
minimamente necessários – suf‌icientes – para que seja possível falar na existência de
um fato jurídico, formando o seu cerne), complementares (que lhe conferem validade
no mundo jurídico, incidentes aos atos jurídicos lato sensu e relacionados ao sujeito,
ao objeto e à forma) e integrativos (que tratam da sua ef‌icácia)6, embora o primeiro seja
independente dos demais para existir (já que um ato pode existir independentemente
de ser válido e ef‌icaz) e os dois últimos não sejam interdependentes entre si (já que o
inválido pode produzir efeitos e o válido pode não produzir efeitos). Ou seja, um ato
pode ser existente, válido e ef‌icaz; existente, válido e inef‌icaz; existente, inválido e ef‌icaz;
existente, inválido e inef‌icaz; existente e ef‌icaz ou existente e inef‌icaz7.
Assim, são fatos jurídicos aqueles acontecimentos isolados ou conjuntos, naturais
ou humanos, que produzem ou têm potencialidade de emanar ef‌icácia jurídica, ao con-
cretizarem-se pela incidência de uma proposição jurídico-normativa8, e que, por isso,
De acordo com Ávila, regras são “imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de
decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
f‌inalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos”, e os princípios são “normas imediata-
mente f‌inalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da
def‌inição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 70.
Princípios apresentam maior grau de abstração, de indeterminabilidade, de vagueza, em comparação com as regras,
que são mais funcionais (estas são fundadas naqueles), são standards vinculantes baseados nas “exigências de
justiça” ou na “ideia de direito” e estão em um patamar superior por sua posição hierárquica superior no sistema
das fontes. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. por
A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2002. p. 80-90.
Assim, nas regras, a visualização do fato jurídico é mais imediata e direta do que no princípio jurídico, pois se
dá pela descrição de um comportamento, e não necessariamente pela relação com uma f‌inalidade a ser atingida.
Para Dworkin, “as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então
ou a regra é válida, e, neste caso, a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e, neste caso, em nada
contribui para a decisão”. (DWORKIN, Ronald. Levando..., cit., p. 39.)
5. Sobre as proposições jurídicas como estruturas linguísticas, ver LARENZ, Karl. Metodología de la ciencia del
derecho. Barcelona: Ariel, 1994. p. 355 e ss.
6. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência..., cit., p. 87-94; EHRHARDT JR., Marcos.
Direito civil. LINDB e parte geral. Vol. 1. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2011. p. 441.
7. “Na análise das vicissitudes por que podem passar os fatos jurídicos, no entanto, é possível encontrar situações
em que o ato jurídico (negócio jurídico e ato jurídico stricto sensu) (a) existe, é válido e é ef‌icaz (casamento de
homem e mulher capazes, sem impedimentos dirimentes, realizado perante autoridade competente), (b) existe,
é válido e é inef‌icaz (testamento de pessoa capaz, feito com observância das formalidades legais, antes da ocor-
rência da morte do testador), (c) existe, é inválido e é ef‌icaz (casamento putativo, negócio jurídico anulável,
antes da decretação da anulabilidade), (d) existe, é inválido e é inef‌icaz (doação feita, pessoalmente, por pessoas
absolutamente incapazes), ou, quando se trata de fato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico, ou fato ilícito lato
sensu, (e) existe e é ef‌icaz (o nascimento com vida, a pintura de um quadro, o dano causado a bem alheio) ou,
excepcionalmente, (f) existe e é inef‌icaz, porque a validade é questão que diz respeito, apenas, aos atos jurídicos
lícitos.” MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência..., cit., p. 165 (§ 20).
8. “Já vimos que o fato jurídico é o que f‌ica do suporte fático suf‌iciente, quando a regra jurídica incide e porque
incide. Tal precisão é indispensável ao conceito de fato jurídico. Vimos, também, que, no suporte fático, existe
se contém, por vezes, fato jurídico, ou, ainda se contêm fatos jurídicos. Fato jurídico é, pois, o fato ou comple-
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3 • NATuREZA JuRÍDICA, ESTRuTuRA E FuNÇÕES DO CONSENTImENTO À ATuAÇÃO mÉDICA
estão aptos à produção de consequências ou de repercutirem no plano do direito. Vale
dizer que são os que recebem uma concreção jurídica por um encaixe em suporte fático:
“são fatos jurídicos quaisquer fatos (suportes fáticos) que entrem no mundo jurídico,
portanto sem qualquer exclusão de fatos contrários ao direito”9.
A incidência é o marco inaugural da sua qualif‌icação no mundo jurídico: é efeito da
norma jurídica (é o produto da interpretação, e não o texto, o alvo da interpretação10),
quando ocorrem fatos que são suf‌icientes para preencher o suporte fático, transforman-
do-os em fatos jurídicos,11 e tornam-se aptos à produção de consequências jurídicas: é
o momento em que o fato recebe veste jurídica.
Esse suporte fático, como elemento central do fato jurídico, pode ser simples,
quando basta uma ocorrência para integrá-lo (nascimento com vida, v. g .), ou comple-
xo, quando exige mais de uma ocorrência (fato ou elemento), tal como ocorre com o
casamento12. Isso acontece porque o fato ingressa no plano jurídico a partir de uma
concreção, possibilitando que um único fato do mundo real possa caracterizar suporte
fático de muitos fatos jurídicos, por meio de uma ou mais normas jurídicas, cada um
com seus distintos elementos formativos, traços característicos e a suas específ‌icas
funções13. Em última análise, tanto o fato do mundo quanto o fato jurídico expressam
“atitudes axiologicamente diversas diante da mesma fenomenidade”14.
xo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez
condicionalmente, ou talvez não dimane, ef‌icácia jurídica. Não importa se é singular, ou complexo, desde que,
conceptualmente, tenha unidade.” MIRANDA, Pontes de. Tratado..., cit., Tomo I. p. 148 (§ 23).
9. MIRANDA, Pontes de. Tratado..., cit., Tomo I. p. 254 (§ 159).
10. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
2009. p. 27; REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli. Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, Vol. 74, p. 195-210 (especialmente nas p. 204-205). Jan. 1979.
11. MIRANDA, Pontes de. Tratado..., cit., Tomo. I. p. 95-96 (§ 14).
O fato jurídico, convém ressaltar, é classif‌icado de diferentes formas por distintos autores. Betti, por exemplo,
admite que os fatos jurídicos podem ser classif‌icados segundo diversos critérios, considerada (a) a sua natureza
objetiva ou (b) o seu modo de consideração e valoração pela ordem jurídica e segundo a relevância atribuída
ao comportamento humano. No que se refere ao aspecto (a), subdividem-se em (a.1) fato em sentido estrito e
estado de fato conforme se exauram em eventos instantâneos, ou conf‌igurem situações de caráter mais ou menos
duradouros; (a.2) fatos positivos ou negativos; (a.3) simples e complexos; e, quanto ao modo (b) em (b.1) atos
jurídicos e fatos jurídicos stricto sensu e (b.1) atos lícitos e atos ilícitos. BETTI, Emilio. Teoria generale del negozio
giuridico. Ristampa della II edizione. Napoli: Edizioni Scientif‌iche italiane, 1994. p. 13-14.
12. LÔBO, Paulo. Direito civil. Parte geral. Vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 245.
13. “Se alguém morre vítima de homicídio, ou por suicídio, a morte em si não perde seu caráter de fato jurídico stricto
sensu e não passa a ser classif‌icada como ato ilícito (homicídio) ou ato-fato (suicídio). O elemento ato humano,
porventura existente em sua origem, deve ser considerado excessivo e desprezado para esse f‌im, porque não
integra, nem como dado complementar ou integrativo, o suporte fáctico das normas jurídicas do Código Civil
relativas à morte. Diferentemente, o ato humano intencional de matar alguém constitui o elemento cerne do crime
de homicídio doloso. A morte, nesse caso, é fato jurídico stricto sensu que entra como simples dado componente
do suporte fáctico da norma penal respectiva. Assim, a morte por homicídio é (a) fato jurídico stricto sensu, no
campo do direito civil, e (b) elemento objetivo de suporte fáctico do crime de homicídio, no campo do direito
penal”.
“Tais situações resultam da circunstância de que o mesmo fato da vida pode ser integrante de suporte fáctico
de várias normas jurídicas. E, como cada norma jurídica pode gerar um fato jurídico específ‌ico, o mesmo fato
pode integrar suportes fácticos de vários fatos jurídicos, tendo em cada um funções e características próprias e
distintas.” MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência..., cit., p. 207.
14. VILLELA, João Baptista. Do fato ao negócio: em busca da precisão conceitual. In: DIAS, Adahyl Lourenço et al.
Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Monteiro. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 251-266, em

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