A natureza jurídica dos serviços prestados pelas sociedades de auditoria

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas259-274

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O Parecer

I Dos fatos

Consulta-nos (A), por meio da Doutora Luciana Manente, de Loeser e Portela Advogados sobre questões relacionadas, fundamentalmente, à natureza jurídica da atividade da Consulente, como de cará-ter empresarial, que lhe foi atribuída pelo Município de São Paulo e dos efeitos que esta caracterização lhe trouxe em relação à incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN (ISS).

Informou a Consulente que a situação acima exposta passou a ser feita a partir do desenquadramento feito pelo Município de São Paulo por meio de decisão administrativa publicada no Diário Oficial local -DOM, em 17.12.2009.

Antes deste ato a Consulente atuava sob o regime do art. 9°, § 3o, do Decreto--lei n. 406/1968, item 25 da lista anexa, a par de sua subordinação à Lei Municipal n. 13.701/2003, art. 15, itens 17.15 e 17.18 da lista anexa.

Nos termos do art. 9°, § 3°, do De-creto-lei 406/1968, item 25 da lista anexa, quando se trata de serviços de contabilidade e auditoria, entre outros, exercidos sob a forma de prestação de serviços consistente em trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza dos serviços ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

Aduz a lei em tela que quando os serviços sob análise forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto calculado na mesma forma acima, em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.

Do seu lado, o art. 15 da Lei Municipal n. 13.701/2003 estabelece que é adota-do um regime especial de recolhimento do ISS quando os serviços de contabilidade e de auditoria, entre outros, forem prestados por sociedade constituída por profissionais (sócios, empregados ou não) habilitados ao exercício da mesma atividade e que prestam serviços de forma pessoal, em

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nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.

Do enquadramento acima são excluídas as sociedades que (i) tenham como sócio pessoa jurídica; (ii) sejam sócias de outras sociedades; (iii) desenvolvam ati-vidade diversa daquela a que estejam habilitados profissionalmente os sócios; (iv) tenham sócio que delas participe tão somente para aportar capital ou administrar; ou (v) explorem mais de uma atividade de prestação de serviços.

Esclarece a Consulente que, não se encontrando em qualquer das situações mencionadas no parágrafo anterior, havendo continuado a exercer sem qualquer alteração a atividade consistente em seu objeto social de contabilidade,1 veio a ser desenquadrada pelo Município de São Paulo do regime especial de contribuição do ISS, havendo passado para a situação de um novo regime tributário mais oneroso, fixado com base no preço do serviço, ou seja, segundo a regra geral, nos termos da Decisão Administrativa publicada no DOM de 17.12.2009.

A mudança de orientação da Prefeitura de São Paulo quanto ao regime jurídico da Consulente deveu-se a haver emprestado (indevidamente como se verá neste Parecer) à atividade da Consulente um alegado caráter empresarial, decorrente da sua estrutura organizacional (demonstrada pela hierarquização do trabalho, da existência de plano de carreira para seus funcionários, do grande número de funcionários contratados e da existência de filiais em outros municípios). Segundo a visão do Município de São Paulo, estes fatores retirariam da atividade da Consulente a pes-soalidade na prestação dos seus serviços.

Na defesa dos seus interesses a Consulente instaurou em 15.1.2010 o Processo Administrativo n. 2009.0.217.048-8 em face da Prefeitura do Município de São Paulo, por meio do qual veio a impugnar a decisão administrativa supracitada, para o efeito de sua revisão. Excluídos desta análise os aspetos processuais e estritamente tributários presentes na aludida impugnação, no mérito, em resumo, a Consulente alegou que:

(i) Trata-se de sociedade de profissionais liberais de natureza civil que tem por objeto social a prestação de serviços de auditoria e demais serviços inerentes à profissão regulamentada de contabilidade, na forma da Cláusula 3a do seu Contrato Social;

(ii) Que tais sociedades civis de profissionais liberais se revestem de peculiaridades, pois são formadas pela reunião dos esforços de um grupo de profissionais, os quais associam os seus conhecimentos, experiência e talento profissional, mas prevalecendo sempre a pessoa dos sócios e não a pessoa jurídica como entidade distinta dos seus membros, tendo em vista a responsabilidade pessoal que aqueles profissionais assumem, em razão das normas que regem sua profissão;

(iii) Nos termos acima, o Decreto-lei 406/1968, recepcionado como Lei Complementar pela Constituição Federal de 1988, veio sujeitar a Consulente ao recolhimento do ISS, como calculado em função do número de profissionais habilitados aprestar serviços constantes do seu objeto social, qual seja, o de profissionais inscritos no Conselho Regional de Contabilidade;

(iv) Que foi editada a Lei Complementar 116, de 31.7.2003, a qual, ao dispor sobre o ISS, tributo de competência dos Municípios e do Distrito Federal, ditou sobre a matéria normas gerais sobre a incidência daquele imposto, mas havendo mantido a forma diferenciada de tributação em relação aos serviços de natureza pessoal, não havendo revogado, expressa

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ou tacitamente, a sua disciplina específica da lei anterior, como seja, Decreto-lei 406/1968;

(v) Que, da mesma forma, o art. 15 da Lei Municipal de São Paulo, n. 13.701/ 2003, igualmente manteve alterada a tributação diferenciada, estabelecida para as sociedades de profissionais, conforme orientação histórica daquele Município;

(vi) Que o desenquadramento de que se trata decorreu, sinteticamente, do equivocado entendimento que as autoridades fiscais desenvolveram, havendo atribuído suposto caráter empresarial à Consulente, com o efeito da descaracterização da forma de trabalho pessoal requerida pela Lei 13.701/2003 para as sociedades da espécie, com erros de avaliação concernentes ao porte/estrutura, à organização do trabalho e à atuação integrada com outras sociedades do mesmo ramo;

(vii) Que um dos critérios utilizados pelo Município de São Paulo para o efeito do desenquadramento correspondeu a uma errônea avaliação feita pelo exame do endereço eletrônico (site) da Consulente, por meio do qual ela divulga os serviços que presta aos seus clientes, a forma da sua organização e seus contatos, dentre outras informações relevantes para a sua divulgação;

(viii) Que o avanço tecnológico utilizado de maneira geral pelos prestadores de serviços tornou-se um verdadeiro cartão postal no ambiente da internet, no qual a qualidade se liga ao máximo de informações destinadas a quem os acessa;

(ix) Que o fenômeno mundial da globalização não mais permite que uma sociedade de prestação de serviços deixe de expandir as suas atividades para o exterior, objetivando reforçar suas relações internacionais e até mesmo manter atualizada e ampliada sua rede de contatos, condição atualmente inerente à sociedade moderna e verificada em todos os ramos da atividade;

(x) Que este efeito da globalização se verifica com relação a grandes escritó-rios de advocacia, a médicos renomados, a economistas e a outros profissionais, indicando a existência de um network mundial, mecanismo do estabelecimento de relacionamento internacional com parceiros estrangeiros em todo o planeta, do que não decorre a pessoalidade dos serviços prestados aos seus clientes;

(xi) Que até mesmo o site da Prefeitura de São Paulo possui um link denominado de relações internacionais, do qual constam as atividades e parcerias com outras cidades do mundo, não resultando deste fato a perda da característica de ente público;

(xii) Que independentemente da forma da atividade, os profissionais da Consulente, devidamente habilitados, continuam sujeitos individualmente às consequências civis e criminais, decorrentes do trabalho pessoal que prestam, não se dando assim a ausência de pessoalidade na prestação dos seus serviços, classificados como de natureza intelectual;

(xiii) Desta forma, o número de profissionais, o tamanho da sociedade, seu porte e sua estrutura não têm o condão de retirar a pessoalidade do serviço prestado;

(xiv) Que se trata de sociedade simples e não de sociedade empresária, uma vez que voltada para o exercício de uma profissão intelectual, nos termos dos arts. 966 e 982 do Código Civil brasileiro;

(xv) Que o regime tributário sobre o qual tem a Consulente exercido a sua atividade se estende ao longo de mais de quarenta anos da sua existência, jamais tendo havido mudança em sua atividade, no conteúdo e na forma;

(xvi) Que o Conselho Regional de Contabilidade e órgãos públicos como o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, por meio da expedição de normas de sua competência, têm reconhecido a responsabilidade técnica dos sócios de sociedades como a Consulente, a eles estabelecendo responsabilidade solidária e ilimitada pelas obrigações sociais,

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o que independe da existência de quadro permanente de pessoal técnico adequado ao número e ao porte dos seus clientes;

(xvii) Que a Consulente não presta qualquer outro tipo de serviço que não sejam aqueles inerentes à profissão de contador, por meio de profissionais para tanto legalmente habilitados, em nada diferindo do que acontece com outras profissões regulamentadas;

(xviii) Que existe uma...

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