Natureza jurídica de sociedade anônima privada com participação acionária estatal

AutorGilberto Bercovici
Páginas297-317

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Consulta

O Banco X, por intermédio de sua Diretora Jurídica, honra-me com a formulação da seguinte Consulta, cujos termos transcrevo abaixo, para análise e produção de Parecer sobre a aquisição pelo Banco do Brasil, com fundamento na Medida Provisória n. 443, de 21 de outubro de 2008 (posteriormente convertida na Lei n. 11.908, de 3 de março de 2009), de participação acio-nária no Banco X, por meio do contrato de compra e venda celebrado em 9 de janeiro de 2009, informando que:

"1. Após o fechamento da operação, a composição acionária do Banco X passará a ser a seguinte: 50% do total de ações ordinárias pertencentes ao acionista X e 50% do total de ações ordinárias pertencentes ao Banco do Brasil.

"2. O acionista X possuirá 10 ações ordinárias a mais que o Banco do Brasil e não haverá outros acionistas.

"3. O fechamento da compra e venda depende da aprovação da operação pelo Banco Central do Brasil, que se constitui numa condição suspensiva para o negócio.

"4. Dentre os anexos do contrato de compra e venda há um acordo de acionistas, que vigorará a partir da data do fechamento, comprazo de 10 anos, podendo ser renovado.

"5. Referido acordo regula o relacionamento entre os dois únicos acionistas, estabelecendo, dentre outros pontos, os seguintes:

"(i) o Conselho de Administração terá seis membros, sendo que três serão eleitos dentre os indicados pelo Banco do Brasil e três, dentre os indicados pelo acionista X. O Presidente do Conselho de Administração será escolhido de modo alternado, começando por um indicado pelo Banco do Brasil, sendo o próximo pelo acionista X e assim, sucessivamente. Contudo o Presidente do Conselho não tem voto de qualidade.

"(ii) praticamente todas as matérias relevantes dependem, para sua aprovação, de quorum qualificado, tanto na Assembleia Geral (75% do capital votante) quanto no Conselho de Administração (voto de 4 membros). Desse modo, nenhum dos acionistas tem poder para decidir isoladamente sobre as matérias relevantes.

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"Nesse contexto, o problema ora colocado consiste em saber se a configuração acionária adotada e a celebração do acordo de acionistas, tal como redigido, induziriam a existência de controle por parte do Banco do Brasil, numa acepção capaz de tornar o Banco X integrante da administração pública indireta, o que, por via de consequência, atrairia a incidência das normas do art. 37 da CF, especialmente no que se refere à exigência de concurso público, observância da Lei 8.666/1993 nas compras e contratações e sujeição à fiscalização de órgãos de controle da administração pública.

"Buscando a elucidação desses pontos, formulam-se os seguintes quesitos:

"a) O Banco X, após a celebração do acordo de acionistas, poderia ser classificado como sociedade de economia mista?

"b) Quais as diferenças entre (i) ser controlador, (ii) integrar bloco de controle e (iii) integrar grupo de controle? Para efeitos de definição de pertinência à administração pública indireta e atração das regras de direito público, tais categorias se equivalem? No caso concreto do acordo de acionistas do Banco X, em qual dessas categorias se enquadra o Banco do Brasil?

"c) Uma vez que o acordo de acionistas tem uma natureza efêmera - possui prazo determinado (no caso, 10 anos), podendo ser desfeito ou alterado por mútuo acordo entre as partes a qualquer tempo - tal situação, potencialmente cambiante, pode servir de parâmetro para definição da pertinência ou não à administração pública?

"d) O Decreto n. 6.021/2007, que trata, dentre outros assuntos, da administração das participações societárias da União, define como empresas estatais federais 'as empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas e demais sociedades em que a União, dire-ta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto' (art. 1°, inciso I) e como participações 'os direitos da União decorrentes da propriedade, dire-ta ou indireta, do total ou de parcela do ca-pital de sociedades'. Diante disso, pode-se afirmar que o referencial adotado para definição da pertinência ou não à administração pública seria a composição acionária?

"e) A Lei 6.223/1975, em seu art. 7o, com a redação dada pela Lei 6.525/1978, ao tratar da fiscalização financeira e orçamentária da União pelo Congresso Nacional, fornece uma visão acerca do tratamento que o legislador dispensa para os casos nos quais o poder de controle está distribuído de modo paritário entre a sociedade de economia mista e o particular. Com base em tal dispositivo, seria possível afirmar que o Banco X não está sujeito ao regime de direito público em geral e à fiscalização do Tribunal de Contas da União em particular?

"f) Nada obstante o Banco do Brasil exerça influência significativa na administração do Banco X na medida em que, para decisão em matérias relevantes, exige-se quorum qualificado, não há preponderância sobre a vontade do acionista privado. Quanto ao acionista privado, em princípio, deve prevalecer a regra de que ele não pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo que não decorra da Lei (CF, art. 5o, inc. II), o que significa que não poderia haver limitações não previstas expressamente em lei ou contrato, no exercício do seu direito de propriedade (CF, art. 170, inc. II), no caso, sobre parte do patrimônio do Banco X, representada pelas ações de que é titular. Nesse contexto, a assinatura do acordo de acionistas, tal como redigido, implica, de parte do acionista privado, a sujeição do seu patrimônio ao regime de direito público?

"g) Seria correto afirmar que, no caso específico do acordo de acionistas a ser celebrado entre o Banco do Brasil e o acionista X, o que ocorre, a rigor, é que o controle societário exercido pelo acionista X (acionista que detém a maior parte das ações com direito a voto) sofre limitação nas matérias expressamente previstas no acordo, para as quais se exige o quorum

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qualificado, ou, em outras palavras, que o quorum qualificado teria a finalidade de proteger o acionista minoritário - Banco do Brasil - nas matérias essenciais? Se positiva a resposta, essa situação implicaria corresponsabilidade do BB na administração do Banco X, quanto a tais matérias? Se positiva também essa resposta, tal corresponsabilidade implicaria sujeição do Banco X às normas da administração pública?

"h) Foi apresentado o pedido de autorização ao Banco Central, retratando a operação como aquisição, pelo Banco do Brasil, de participação relevante no X. Argumentou-se que o controlador continuaria sendo o acionista X, mas o Banco do Brasil possuiria influência significativa na administração, em razão da escolha de metade dos membros do Conselho de Administração e em decorrência dos quoruns qualificados. Sustentou-se que tais parâmetros destinar-se-iam a resguardar o investimento realizado pelo sócio minoritário. O Banco Central, no seu escopo próprio de identificação de responsabilidade dos sócios perante o sistema financeiro nacional, considera a situação como sendo a de controle compartilhado, dado que nenhum dos acionistas, pode, isoladamente, conduzir os destinos da companhia. Diante disso, indaga-se: a) do ponto de vista do direito societário, caracteriza-se o controle compartilhado? b) se positiva a resposta, a existência de controle compartilhado nesses moldes tornaria o Banco X integrante da administração pública indireta?

"i) A recente alteração da redação do art. 243, § P, da Lei 6.404/1976, promovida pela MP 449 (art. 36), ao empregar a expressão 'influência significativa' em lugar de ' 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la', aponta para uma concepção que considera a possibilidade de interferência do acionista minoritário no exercício do poder de controle? Se positiva a resposta, pode o acionista minoritário ter responsabilidades perante o sistema financeiro (pelo fato de tratar-se de um Banco), e também perante os demais acionistas, empregados e a sociedade de um modo geral, sem ser controlador?"

Parecer

  1. Natureza jurídica das sociedades de economia mista

O Banco do Brasil é uma sociedade de economia mista, controlada pela União, vinculada ao Ministério da Fazenda e integrante do Sistema Financeiro Nacional (arts. 1o, III, 19 e 62 da Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e art. 189 do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967). A sociedade de economia mista é, em sua estruturação atual, um fenômeno do final do século XIX e início do século XX, que se intensificou, especialmente na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Constituição alemã de 1919, a Constituição de Weimar, por sua vez, previu expressamente, em seu art. 156, a possibilidade de socialização, nacionalização ou participação estatal no setor empresarial.1

A visão tradicional, inspirada nos escritos do industrial alemão Walter Ra-

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thenau, entendia a sociedade de economia mista (gemischtwirtschaftliche Unterneh-mung) como uma associação livre de capitais privados e fundos públicos para a exploração de uma atividade econômica, um fenômeno "econômico", que não pertenceria às instituições administrativas.2 Esta concepção equivocada levou a uma série de debates, como o protagonizado entre nós por Bilac Pinto, sobre a impossibilidade de conciliação dos interesses público (do Estado) e privados (dos demais acionistas privados, que almejam o lucro), que levaria à substituição do modelo de sociedade de economia mista pelo da empresa pública, cujo capital é exclusivamente estatal.3

A atual doutrina publicista brasileira, com base no art. 5o, III, do Decreto-lei n. 200/1967 (com a redação alterada pelo Decreto-lei n. 900, de 29 de setembro de 1969), define a sociedade de economia mista como uma entidade integrante da...

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