Inovação e concorrência em serviços de informação acadêmica: de Eugene Garfield ao google scholar

AutorEduardo Beira
CargoProfessor do Programa MIT Portugal Escola de Engenharia, Universidade do Minho
Páginas132-163

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Eduardo J. C. Beira

Professor do Programa MIT Portugal

Escola de Engenharia, Universidade do Minho

ebeira@dsi.uminho.pt

1 Introdução

Foi durante o ano de 2004 que o mundo dos serviços de informação para fins académicos começou a sentir os efeitos de um sistema de que ainda se fazem sentir fortes réplicas e consequências. Em Novembro desse ano a Google lança o serviço Google Scholar (GS), um motor de busca especializado em conteúdos académicos, recorrendo a uma adaptação do famoso algoritmo do Google de procura na internet, mas em que agora a ordenação dos resultados da busca se baseia no número de citações da publicação, uma forma alternativa de medir “recomendações”, em vez da estrutura das hiperligações que apontam para um dado site na internet.

Curiosamente (ou talvez não) poucos dias antes do lançamento do Google Scholar, o grupo editorial Elsevier arrancava com o Scopus, um serviço em competição directa e frontal com os produtos do Information Sciences Institute (ISI), o serviço de referência e único até aí, e que durante décadas fora desenvolvido pelo Institute for Scientific Information, liderado por Eugene Garfield. No ano seguinte (2005) é lançado o serviço Web of Science (WoS) integrando cinco bases de dados originalmente do ISI.

Como tem sido reconhecido (Rethlefsen, 2009), no final de 2004 o mercado dos serviços de

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informação baseados em índices de citações alterouse dramaticamente, depois de quase quarenta anos de monopólio do ISI / WoS. Dois anos depois, Vine (2006) confessava que o mundo das bibliotecas, arquivos académicos e dos serviços tinha sido apanhado completamente desprevenido. Cinco anos depois as estatísticas de acesso aos respectivos sites falam por si (ver tabela 1):

[TABELA EM PDF ANEXO]

(1) Os dados de GS em particular não estão disponiveis, porque é um subdominio de google.com, o domínio em primeiro lugar no ranking

Estatísticas de acesso a serviços web de informação académica Fonte: Extraído de http:// www.compete.com

Não só a estrutura competitiva do mercado se alterou de forma irreversível, como os próprios modelos de negócio do incumbente (WoS) foram postos em causa por violentos fenómenos de inovação disruptiva (GS) e de inovação de continuidade (Scopus). As implicações destas alterações vão muito para além do próprio mercado de serviços de informação e atingem mesmo o centro dos processos de gestão académica.

Neste trabalho fazse uma análise dos 40 anos de desenvolvimento que culminaram nos actuais serviços WoS e Google Scholar, olhando para essas trajectórias sob o ponto de vista de posicionamento competitivo no sector, e de inovação tecnológica e empresarial, e procurando encontrar aí pistas para os desenvolvimentos futuros dos serviços de informação académicos. Usando dados empíricos, mostramse limitações de ambos os serviços e refutase a ideia muito popular em certos meios académicos de que a base de dados WoS (p. ex. SCI do ISI) seja uma referência credível: na realidade ambos resultam em imagens incompletas da realidade. Mas argumentase que o futuro será de modelos disruptivos tipo GS e que os resultados desse modelo dão protagonismo e visibilidade às múltiplas facetas da actividade cientifica e académica, cuja omissão prejudica na realidade o desenvolvimento da ciência e do conhecimento. As limitações estruturais do WoS, uma legacy que não foi ultrapassada, deixa no ar muitas dúvidas sobre o seu futuro a prazo. As “citation wars” a que estamos a assistir e cuja continuidade a curto e médio prazo se antecipa, resultam de evoluções tecnológicas associadas à internet e que alteraram o cenário competitivo do sector. Afinal a ciência e o conhecimento são aventuras humanas cuja análise não faz sentido sem os olhares críticos de abordagens como a sociologia e a história da ciência. Finalmente, fazemse algumas especulações sobre o futuro da concorrência neste mercado.

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2 Eugene Garfield, o empreendedor, e o isi institute for scientific information

Eugene Garfield (nascido em 1925) reúne as características de empreendedor e de homem de ciência, com uma rara capacidade para as abordagens multidisciplinares. Licenciado em química (U. Columbia, 1948), obteve os graus seguintes já como profissional e empresário: mestrado em “library science” (pela mesma Universidade, 1954) e doutoramento em linguística estrutural ligado à algoritmia não numérica (U. Pennsylvania, 1961). Garfield soube tirar partido das então novas tecnologias da informação emergentes, com recurso a computadores digitais e suportes de dados baseados em cartões perfurados, para lançar vários novos produtos de serviços de informação para a comunidade académica, em especial os Current Contents e depois os Science Citation Indexes (SCI). Em trabalho separado (BEIRA, 2010b) passamse em revista os passos mais importantes dessa atribulada trajectória pessoal e empresarial1, até á integração do ISI nas actividades do grupo Thomson Reuters, já na década de 90. Os desenvolvimentos referidos suscitam vários comentários:

As raízes do SCI são exteriores ao mundo da ciência e constituem um reaproveitamento de ideais anteriores: o principio de um índice de citações não é uma criação do mundo da ciência, mas sim uma reutilização/recuperação de uma prática corrente entre juristas e profissionais do direito americano desde a segunda metade do século XIX (1873): o Shepard Citator, cujo modelo hierárquico de indexação serviu de modelo ao SCI do ISI, quase cem anos depois. Garfield escreveu na sua fase inicial em 1954, um texto em que fala de “Shepardazing the literature of science” no título e onde começa por analisar o Shepard Citations, descreve os esforços para desenvolver um código numérico para as várias publicações e caracteriza um “citation index to science” e as necessidades de equipamentos para ajudar o processo, encontrando para isso inspiração em equipamentos electrónicos auxiliares de leitura para cegos e ambelíopes, desenvolvidos em 1947 pela RCA (Radio Corporation of America). Struchio e Tackray (1987) contam que Garfield tomou contacto com o Shepard Index, na sequência de uma carta de William Adair, em que este sugere o potencial da mesma metodologia de indexação para aplicação à indexação académica em geral. Garfield, que ignorava o Shepard Index, conta que correu para a biblioteca mais proxima, a Enoch Pratt Free Library e ficou entusiasmado com o que encontrou – não propriamente com o Shepard Index em si, mas sim com o método por trás do produto2. Entre as ideias que influenciaram Garfield, tiveram especial importância as do cientista inglês J. Bernal, um dos primeiros a falar de uma “ciência (quantitativa) sobre a ciência”, defendendo o planeamento da actividade cientifica com vista à resolução dos problemas sociais e uma radical alteração do modelo de publicação de artigos científicos (BERNAL, 1939, p. 269-297)3. Bernal fez parte do grupo dos “intelectuais vermelhos” britânicos que nos anos 30 a

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50 foram influenciados e seduzidos pelos “sucessos” da experiência soviética. O seu livro “The social function of science” (BERNAL,1939) teve na altura grande impacto. Uma segunda edição foi publicada pelo The MIT Press em 1967, com um prefácio de Bernal onde avalia positivamente o impacto das ideias do livro nos vinte cinco anos desde a sua publicação – mas na realidade Bernal dificilmente se reconheceria na organização actual da ciência. Nos seus escritos Garfield faz repetidas referências a Bernal, por exemplo, em Garfield, 2007.

O SCI nasce fora da comunidade cientifica, promovido e desenvolvido por um outsider do sistema, sem qualquer afiliação com uma instituição académica respeitada e nos seus primórdios não foi claramente “bem amado” pela comunidade cientifica - os primeiros pedidos de apoio para a prototipagem e construção de um índice e citações foram inclusive rejeitados por comissões de avaliação da NSF National Science Foundation, acabando depois por beneficiar das necessidades da “nova” cultura de racionalização burocrática associada ao aparelho de investimento publico em I&D nos USA a partir do pós guerra, em especial dos anos 60.

O SCI não foi um produto de sucesso rápido nem fácil – apenas sobreviveu porque financiado pelos lucros de outros produtos do ISI, em especial os vários Current Contents. O posterior sucesso pela viabilização das técnicas da cientometria acabou por se dar de uma forma e com consequências completamente imprevistas pelos seus criadores. Entre as décadas de 60 e 90 o conceito de indexação da literatura académica, o SCI evoluiu de simples sistema de procura de informação (encontrar informação publicada relevante) e de disseminação selectiva de informação para uma ferramenta de avaliação de resultados de investigação. Garfield (1998) viuse mesmo na obrigação de recordar que o SCI nunca foi inicialmente pensado para estudos quantitativos sobre ciência4.

Se definirmos tecnologia como uma combinação de artefactos (computadores e programas), pessoas (utilizadores, em especial) e ideias (como usar os artefactos em novos serviços ou produtos) (HARGADON, 2003, 2006), a trajectória de Garfield e do ISI é um bom exemplo de inovação empresarial como recombinação de redes de pessoas, de artefactos e de ideias com criação de valor acrescentado – o paradigma da inovação tecnológica. Reunindo problemas e soluções de diferentes áreas, Garfield foi...

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