Vivência de conf litos e usos das instituições formais de Justiça pelos moradores das favelas

AutorMaria Tereza Aina Sadek - Fabiana Luci de Oliveira
Páginas91-122
CAPÍTULO 4
Vivência de conflitos e usos das instituições formais
de Justiça pelos moradores das favelas
MARIA TEREZA AINA SADEK
FABIANA LUCI DE OLIVEIRA
Relatos espontâneos da vivência de conflitos
Os moradores do Cantagalo e do Vidigal desconhecem em grande medida
quais são os principais direitos de cidadania assegurados à população pela
Constituição, assim como desconhecem as instituições encarregadas de garan-
tir e zelar pelo respeito aos direitos e pela solução de controvérsias, ou, quando
as conhecem, tendem a desconfiar delas. O grau de conhecimento dos direitos
e das instituições é baixo, mas a sensação de abandono e desamparo é elevada.
Neste cenário, nos propusemos a discutir como os moradores dessas lo-
calidades percebem o respeito aos direitos, e mapear quais os problemas mais
comuns que vivenciam e os meios de resolução usualmente adotados.
Considerando os 12 meses anteriores à realização da pesquisa, 24% dos mo-
radores declararam ter vivenciado alguma situação em que sentiram que algum
direito seu foi desrespeitado — sendo 20% dos moradores do Vidigal e 29% dos
moradores do Cantagalo.1 Notamos uma importante associação entre esse re-
lato e a escolaridade dos moradores, assim como o gênero e o conhecimento
1 A Pnad 2009 mostra que 9,4% da população brasileira declararam ter passado por uma situação
de conflito grave nos últimos cinco anos (ou seja, de 2004 a 2009). No Sudeste, este percentual é
de 9,7%. A proporção de pessoas que declararam ter vivenciado conflito grave aumenta conforme
aumentam a renda e a escolaridade.
92
UPPS, DIREITOS E JUSTIÇA
dos direitos. Entre as pessoas de escolaridade mais alta a declaração de vivência
de desrespeito aos direitos foi significativamente maior. Essa percepção tam-
bém foi maior entre mulheres e entre os que conhecem melhor seus direitos
(ou seja, os entrevistados que conseguiram mencionar algum direito existente).
Embora no Cantagalo a proporção de moradores que declararam ter pas-
sado por situação de desrespeito seja maior, no Vidigal a recorrência dessa per-
cepção é mais acentuada. A maioria dos moradores do Cantagalo apontou ape-
nas uma situação de desrespeito, enquanto a maioria no Vidigal relatou mais
de uma situação, e 23% disseram ter passado por quatro ou mais situações de
desrespeito a direitos no último ano.
Gráfico 1 | Morador es que declararam ter vivenciado situação de desrespeito
a algum de seus direitos nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa (%)
Base: 397 entrevistas no Cantagalo e 405 entrevistas no Vidigal.
Gráfico 2 | Quantidade de situações que vivenciou nos últimos 12 meses (%)
Base: 114 no Cantagalo e 92 no Vidigal (declararam ter vivenciado situação de desrespeito).
Cantagalo Vidigal
60
50
40
30
20
10
0
52
45
17
13 16 16 14
23
2
Não sabeQuatro ou maisTrêsDuasUma
2
24
Tota l Local Gênero Escolaridade Trabalho Morador Direitos
80
70
60
50
40
30
20
10
0
20
Vidigal
Cantagalo
Masculino
Feminino
Médio
Superior
Informal
Formal
Desempregado
Não trabalha
Local
Imigrante
Não conhece
Conhece
Até 4a
5a -8a
29 22 26 21 24 22
41
29
20 23 25 25 24 19
30
VIVÊNCIA DE CONFLITOS E USOS DAS INSTITUIÇÕES FORMAIS DE JUSTIÇA...
93
Há uma diferença no tipo da situação relatada nas duas localidades. No Canta-
galo os principais problemas estão relacionados a conflitos com a polícia (agressão,
revista pessoal, invasão de domicílio etc.). A presença da UPP na favela faz com que
o contato com os policiais seja mais próximo e frequente. Essa proximidade gera
maiores oportunidades para a ocorrência de conflitos entre policiais e moradores.
Gráfico 3 | T ipo de situação de desrespeito aos direitos vivenciada, de acordo
com local (%)
Base: 114 no Cantagalo e 92 no Vidigal (declararam ter vivenciado situação de desrespeito).
Já no Vidigal, os problemas mais citados são relativos à vizinhança (invasão
de terreno, barulho etc.) e aos direitos civis (impedimento de entrar na comu-
nidade, violações à liberdade, acuamento, discriminação etc.).
Nos casos relacionados com problemas de vizinhança, em ambas as comunida-
des são comuns relatos de conflitos ligados ao uso do espaço (público e privado)
e às construções, reformas e vendas de casas — conflitos agravados pela ausência
do título de propriedade (a grande maioria dos moradores não possui nem o ter-
mo de concessão de uso, nem a escritura pública ou matrícula do imóvel). O lixo
também é um aspecto que provoca divergências entre moradores nessas favelas.
Um senhor, um morador, disse que o prédio vizinho, os moradores que ele acre-
ditava serem do último andar, jogavam lixo do lado da casa dele. Inclusive objetos
contundentes, como pá, pedaço de ferro, então podia até provocar morte; quer dizer,
cinco andares ali no vizinho, uma pá de obra caindo cinco andares, dentro da casa,
podia gerar até uma morte [homem, agente público, Cantagalo].
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
CantagaloTota l Vidigal
26
22 21
39
9
Polícia Vizinhança Consumo Família Outros Não lembraPoder
público
Crime e
violência
Direitos
civis
16
12 11
4
11 15
8
12
10 954 4 4 4 1
7111013
8
6

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