A transferência da propriedade dos veículos automotores por meio de nota fiscal fatura

AutorArnoldo Wald
Páginas34-43

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I Introdução
  1. Trataremos, no presente artigo, da possibilidade de se considerar implementada a transferência da propriedade de veículos automotores e produtos afins, pela montadora, no ato da emissão da respectiva nota fiscal fatura, especialmente em se considerando que a retirada dos bens pelo comprador, na maioria das vezes, não é concomitante, permanecendo os produtos no pátio da montadora por período determinado.

  2. Assim, analisaremos o sistema de transferência da propriedade de bens móveis, em especial, veículos automotores, chassis e plataformas de ônibus.

II Os sistemas de transferência da propriedade
  1. O direito contemporâneo oferece dois sistemas distintos de transferência de propriedade:

    (i) franco-italiano, pelo qual o simples contrato transfere a propriedade. O acordo de vontades é suficiente para que determinado bem saia de um patrimônio, sendo incorporado a outro. Os registros públicos e a tradição, nesse sistema, visam apenas documentar e comprovar o negócio feito, dando-lhe efeitos em relação a terceiros que não foram parte na operação contratual; e

    (ii) germânico, pelo qual, ao contrário, a propriedade só se transfere mediante a tradição real, simbólica ou ficta, para os bens móveis, e mediante a transcrição no Registro de Imóveis competente, para os imóveis.

  2. No Brasil, o sistema adotado é o germânico. A matéria está regulada no art. 1.267 do Código Civil (semelhante aos arts. 620 e 621 do Código Civil de 1916), in ver bis:

    "Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição.

    "Parágrafo único. Subentende-se a tradição quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório; quando cede ao adquirente o direito à restituição da coisa, que se encontra em poder de terceiro; ou quando o adquirente já está na posse da coisa, por ocasião do negócio jurídico."

  3. Sobre o tema, já tivemos o ensejo de escrever que: "A principal forma de aquisição da propriedade móvel é a tradição, ou seja, a entrega material da coisa,

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    que se faz com a intenção de transferir a posse (animus tradendi). Na tradição temos duas pessoas, o tradens (que entrega) e o accipiens (que recebe)".1

III A transmissão da propriedade de bem móvel
  1. A transmissão da propriedade de bem móvel, cumpre frisar, deve ser fundada em negócio jurídico bilateral, no qual devem estar presentes os seguintes elementos:

    (i) de um lado, a manifestação de vontade do comprador, e, de outro lado,

    (ii) a aceitação do vendedor, geralmente caracterizada pela emissão da respectiva nota fiscal fatura;

    (iii) a tradição da coisa, real, ficta ou simbólica.

  2. Cumpre lembrar a lição de Pontes de Miranda a respeito da tradição: "Ou é a entrega da coisa (no direito romano clássico e no contemporâneo, entrega-tomada), ou por ela se entende o complexo de negócio jurídico mais o ato-real (ato-fato jurídico), que tem a eficácia de transmissão, ou mais o ato jurídico stricto sensu, que a tenha".2

  3. Nas palavras de Washington de Barros Monteiro, tradição é: "(...) a entrega da coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o domínio de uma coisa, em virtude do título translativo da propriedade. Dois, portanto, os requisitos para que ela exista: a) acordo das partes, no sentido de transferir a propriedade; b) execução desse acordo mediante entrega da coisa".3

  4. Quanto ao primeiro requisito para a caracterização da tradição é, portanto, o acordo das partes no sentido de transferir a propriedade, sendo a manifestação de vontade de ambas as partes suficiente para esse fim.

  5. O segundo requisito é a execução do acordo mediante entrega da coisa, circunstância que merece uma análise mais detalhada, no caso de permanecer na posse da montadora o produto já alienado. Este produto fica no seu pátio, à disposição do comprador, por determinado período de tempo, até a sua efetiva retirada, que só depende da vontade do adquirente.

  6. Cabe, aqui, antes de mais nada, recapitular o mecanismo de implementação das vendas pelas montadoras que geralmente é utilizado, vendas que são usualmente realizadas através de pedidos formulados pela rede de concessionárias:

    (i) há um contrato de compra e venda (denominado Master Agreement) firmado entre cada concessionária e a montadora alienante;

    (ii) a concessionária encaminha o pedido de compra;

    (iii) a montadora emite a nota fiscal fatura, consumando a venda e colocando os produtos à disposição da concessionária para retirada;

    (iv) após a emissão da nota fiscal fatura, os produtos adquiridos pelo comprador são por ele alienados fiduciariamente ao banco financiador;

    (v) alternativamente ao item anterior, ocorre a retirada dos produtos colocados à disposição do comprador, que apresenta garantia do pagamento da duplicata.

  7. Pois bem. Seja na hipótese ora analisada ou no caso de venda direta, não ocorre a entrega real dos produtos (tradição real). Esta, contudo, não é a única espécie de tradição admitida pelo nosso direito. Como ensina Caio Mário da Silva Pereira: "a tradição originariamente se configura na entrega da coisa, material-

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    mente efetivada. Mas, como a vida social e mercantil não tolera subordinar-se diutur-namente às exigências do formalismo jurídico, a tradição procura afeiçoar-se a imposições práticas. Partindo, então, da tradição real, o direito moderno desenvolve a noção de tradição simbólica e cultiva o constituto possessório, que nos vem do Direito Romano".4

  8. Com efeito, a doutrina especifica três modalidades distintas de tradição:

    (i) real: quando concretizada pela efe-tiva entrega da coisa, feita pelo alienante ao adquirente;

    (ii) simbólica: quando é apenas representativa, não ocorrendo materialmente; e

    (iii) ficta: quando decorrente de constituto possessório; nessa hipótese, o alienante continua na posse do bem, mas altera-se o seu animus. Possuía como dono e passa a possuir a outro título, como como-datário ou depositário.

IV Tradição simbólica e tradição ficta
  1. A tradição simbólica, na definição de Washington de Barros Monteiro, é "traduzida por ato representativo da transferência da coisa; a entrega não é real, substituindo-se por ato equivalente, como a entrega das chaves do lugar, onde a coisa se acha".5

  2. Como se vê, tradição simbólica é calcada em ato equivalente à entrega da coisa. E a melhor forma de se aferir a equivalência dos atos é através da análise dos usos e costumes.

  3. J. X. Carvalho de Mendonça, reconhecendo, justamente, a importância dos usos e costumes para a caracterização da tradição, chega a elencar o uso como uma quarta categoria de tradição. Confira-se: "Pode a tradição operar-se: a) pela entrega real da mercadoria; b) pela entrega symbo-lica; c) pela transferência dos títulos que a representem; ou d) pelo modo por que estiver em uso no logar".6

  4. A matéria era, inclusive, regulada pela Parte Primeira do Código Comercial (Lei n. 556, de 25 de junho de 1850), no art. 199, hoje revogado pelo Código Civil. Apesar de revogado, vale transcrever o dispositivo mencionado, que demonstra que, historicamente, sempre se consideraram os usos e costumes locais para a caracterização da tradição: "Art. 199. Atradição da coisa vendida, na falta de estipulação expressa, deve fazer-se no lugar onde a mesma coisa se achava ao tempo da venda; e pode operar-se pelo fato da entrega real ou simbólica, ou pelo do título, ou pelo modo que estiver em uso comercial no lugar onde deva verificar-se".

  5. O costume, frise-se, é expressamente reconhecido como fonte jurídica,7 composta por dois elementos necessários: o uso e a convicção jurídica. É, portanto, norma jurídica que deriva da prática uniforme reiterada, constante, pública e geral de determinado ato com a convicção de sua necessidade jurídica.8

  6. Atualmente, é prática comum e usual no setor automobilístico, sobretudo nas relações entre montadoras e rede de concessionárias, a emissão da nota fiscal como "entrega real do título" ou ato equivalente à entrega do bem, que, fisicamente, permanece no pátio da montadora, por determinado período, à disposição do comprador, até a sua efetiva retirada.

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  7. Com efeito, há anos utiliza-se o referido procedimento no setor. Trata-se, portanto, de um costume, na acepção jurídica da palavra.

  8. Acresça-se que a tradição pode ocorrer também pela entrega do título (venda sobre documentos), no caso a nota fiscal fatura, suficiente para a transferência da posse indireta dos bens alienados. Nesse tipo de venda, dá-se a ficção de que a coisa está sendo entregue pelo título que a representa.

  9. Lembramos que a aquisição da posse indireta vale como tradição, conforme demonstrado por J. M. de Carvalho Santos.9 Referido autor cita como exemplo a hipótese em que "alguém aliena um automóvel que se encontra na posse de terceiro (locatário, comodatário, depositário ou mero possuidor), transferindo ao comprador o respectivo certificado de propriedade".10 Nesse caso, não há dúvida de que se operou a transferência da propriedade do veículo, em que pese o comprador não ter recebido a posse direta do bem, que permanece com o terceiro. No próprio exemplo mencionado, Álvaro Villaça Azevedo destaca que: "o comprador, como proprietário do veículo, e como possuidor indireto, estará autorizado a exigir a sua restituição, no tempo certo, reivindicando esse objeto. Assim, agirá, respeitando eventuais prazos existentes, de locação ou de comodato, por exemplo".11

  10. Neste caso, a emissão da nota fiscal fatura, em se tratando de veículo novo (caminhão, van ou outro veículo de passa-geiros) ou de outros produtos (chassis e...

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