Necropolíticas carcerárias: os anticorpos do sistema de justiça penal

AutorDiego dos Santos Reis, Malu Stanchi
CargoProfessor do Departamento de Fundamentação da Educação da UFPB / Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) e pela Faculdade
Páginas229-245
Revista Direito.UnB |Revista Direito.UnB | Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 223-239 Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 223-239
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NECROPOLÍTICAS CARCERÁRIAS:
OS ANTICORPOS DO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL
PRISON NECROPOLITICS:
ANTIBODIES OF THE CRIMINAL JUSTICE SYSTEM
Diego dos Santos Reis
Professor do Departamento de Fundamentação da Educação da UFPB
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: diegoreis.br@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6977-7166
Malu Stanchi Carregosa
Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) e pela Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO Brasil)
E-mail: malustanchi@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0480-5514
RESUMO O ensaio objetiva discutir os impactos da pandemia do novo coronavírus SARS-coV-2 no sis-
tema carcerário. Trata-se de expor de que modo o racismo estrutural e histórico das instituições brasilei-
ras e a seletividade penal do sistema de justiça são pautados por padrões mórbidos das relações raciais.
Elabora-se, assim, uma crítica à necropolítica carcerária, compreendendo as prisões como territórios
racializados, cuja gestão orienta-se por estratégias genocidas e por uma política criminal que é cúmplice
na distribuição desigual da morte, em prejuízo de pessoas negras. A investigação é orientada por uma
perspectiva teórico-metodológica embasada na revisão bibliográfica e documental mais recente acerca
do tema investigado, enfatizando os efeitos mais nefastos da pandemia no cárcere. Por fim, salienta-se
como são negados direitos fundamentais nesses espaços de confinamento às pessoas privadas de liber-
dade que, por conseguinte, são mais expostas aos riscos epidemiológicos e à morte.
Palavras-chave: Sistema de justiça penal; Racismo; Direitos Humanos; Necropolítica; Pandemia.
ABSTRACT
This essay aims to discuss the impacts of the new SARS-coV-2 (coronavirus) pandemic on the prison
system. It seeks to expose how the structural and historical racism of Brazilian institutions and criminal
justice selectivity are guided by morbid patterns of race relations. Thus, a critique of prison necropolitics
is elaborated, understanding prisons as racialized territories, whose management is guided by genocidal
strategies and a criminal policy that is complicit in the unequal distribution of death to the detriment of
black people. The research is conducted from a theoretical and methodological perspective based on
the most recent bibliographic and documentary review on the subject investigated emphasizing the most
harmful effects of the pandemic on prison. Finally, it is highlighted how fundamental rights are denied
in these confinement spaces to persons deprived of their liberty, whom are therefore more exposed to
epidemiological risks and death.
Keywords:Criminal justice system; Racism; Human rights; Necropolitics. Pandemic.
Recebido: 13/12/2020
Aceito: 30/11/2021
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Revista Direito.UnB |Revista Direito.UnB | Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 223-239 Setembro-Dezembro, 2021, V. 05, N. 03 | ISSN 2357-8009 | pp. 223-239
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Era a brecha que o sistema queria | Avise o IML, chegou o grande dia.Era a brecha que o sistema queria | Avise o IML, chegou o grande dia.
Racionais Mc’s, Diário de um detento Racionais Mc’s, Diário de um detento
Presa em um cerco de injustiça e desigualdade, boa parte da humanidade está ameaçada pela grande Presa em um cerco de injustiça e desigualdade, boa parte da humanidade está ameaçada pela grande
asfixia, e a sensação de que nosso mundo está em suspenso não para de se espalhar.asfixia, e a sensação de que nosso mundo está em suspenso não para de se espalhar.
Achille Mbembe, O direito universal à respiração Era a brecha que o sistema queria | Avise o IML, Achille Mbembe, O direito universal à respiração Era a brecha que o sistema queria | Avise o IML,
chegou o grande dia.chegou o grande dia.
Racionais Mc’s, Diário de um detento Racionais Mc’s, Diário de um detento
Presa em um cerco de injustiça e desigualdade, boa parte da humanidade está ameaçada pela grande Presa em um cerco de injustiça e desigualdade, boa parte da humanidade está ameaçada pela grande
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1. Introdução
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patrulha que os deteve”, o réu passou a dividir cela com outras 152 pessoas na cadeia patrulha que os deteve”, o réu passou a dividir cela com outras 152 pessoas na cadeia
1 O depoimento de Felipe encontra-se disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/
brasil/2020-03-27/na-cadeia-so-se-fala-em-coronavirus-diz-homem-solto-por-causa-da-epidemia.html>
Acesso em: 03 jun. 2020.
2 Ainda segundo o documento, divulgado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em todo o
Brasil há mais de 748 mil pessoas privadas de liberdade nos mais variados regimes e locais.

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