O estado contemporâneo, a atividade jurisdicional e a realização de políticas públicas: a (re)construção de uma realidade social

AutorCassiana Alvina Carvalho
Páginas353-371

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1 Introdução

Está-se vivenciando1 a formação de uma nova ordem no campo político, social, jurídico, empresarial e em todas as demais áreas de ingerência do ser humano. Novas necessidades surgem em todos os campos com urgência ímpar. E em tal contexto, o presente estudo terá como norte a busca pela efetivação das necessidades básicas da sociedade, no embate formado entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário e sua ação direta na formação de novos valores dentro dessa mesma sociedade.

Quando há referência no cumprimento de necessidades do ser, não se pode dissociar a problemática das políticas públicas que atuam diretamente na realização de direitos fundamentais, sendo que foram altamente positivados na Carta Política de 1988, fazendo o Estado passar de provedor da justiça a Estado julgado.2

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O Estado contemporâneo sofreu influência direta do Estado liberal do seu ideal advindo da Revolução Francesa, assim como, em segundo momento histórico dos fundamentos do Estado social, com a busca pelo bem estar, decorrente das reivindicações das classes de trabalhadores. Dessa forma, pode-se chegar até ao Estado nos moldes hoje conhecidos, em que estão inseridos os atores de uma sociedade que busca e almeja muito dele, e, que por inúmeras vezes, pelas causas mais variadas vê-se abandonado na realização dos fins principais.

A sociedade brasileira formada no período pós-Constituição de 1988 anseia pela realização de políticas públicas que atendam suas necessidades mínimas, indispensabilidades essas elencadas de forma singular no corpo constitucional, normas que não possuem natureza programática, mas sim aplicação plena e imediata que deveriam ter por escopo a redução das desigualdades sociais e a proteção da dignidade da pessoa humana.

Mas, o que se viu no correr dos vinte anos da promulgação da Carta Política é a inefetividade da realização de políticas públicas que assegurem um mínimo para uma existência digna de boa parte da sociedade. Ressalte-se que tal situação surge pelos motivos mais diversos, sejam eles de ordem econômica, política ou administrativa.

Nesse diapasão, a sociedade inicia a busca da realização de tais direitos na via judicial. Assim o Poder Judiciário passa a exercer um papel até então pertencente aos demais poderes constituídos, e nesse ponto passam a surgir indagações: Pode o magistrado no uso de suas atribuições realizar políticas públicas, mesmo quando os recursos orçamentários são limitados? Pode o agente do Poder Judiciário apontar ao agente do Poder Executivo quem deva ou não atender, elegendo prioridades individuais?

A busca por equilíbrio tem sido a grande incógnita dos estudos atuais; e, como indaga Streck: “qual a relação entre o Direito e a Política? Em que medida o Direito, estabelecido no texto constitucional pode estabelecer ‘ o construir’ da sociedade?”3

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Por vezes, as decisões emanadas do judiciário formam uma linha de tensão no sistema tripartite e suposta autonomia dos poderes. Nesse viés político/jurídico, surge uma nova ordem social na qual os atores buscam bem mais que a realização dos direitos fundamentais individuais, mas também o bem-estar de toda a coletividade.

Essa mudança de paradigmas é inexoravelmente a demonstração da evolução do próprio Estado Contemporâneo, vez que a Constituição de 1988 referenda alguns conteúdos que nos conduzem a compreendê-los como inserida no rol daquele constitucionalismo cujo objeto fundante está nos direitos humanos, conjugados no espectro do princípio da dignidade da pessoa, os quais devem orientar não apenas o trabalho dos juristas como também a atuação das autoridades públicas e da sociedade como um todo.4

A jurisprudência e a doutrina têm trazido contribuições inúmeras para a matéria, mas as tentativas de atribuir respostas objetivas ao tema foram até o momento infrutíferas frente à divergência de opiniões, dando ao mesmo sempre uma postura atual. E é com esse intuito que o presente trabalho irá se desenvolver, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, mas sim de provocar possíveis respostas, sem exaurir as possibilidades.

2 Do estado liberal ao estado contemporâneo

O Estado, na forma como se conhece atualmente, é um abarcado de inúmeras influências, sejam elas políticas, societárias, culturais, religiosas, comerciais e tantas outras formas de ingerência no governo atuante a época dos acontecimentos.

Lembra Bonavides que, do século XVIII ao século XX, o mundo passou por duas grandes revoluções – a da liberdade e a da igualdade – seguidas de outras duas, uma a revolução da fraternidade, tendo por objeto o homem, e a revolução do Estado social em sua fase mais recente de concretização constitucional, tanto da liberdade como da igualdade.5

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Diante dessa evolução, não se pode excluir do cenário contextual o principal ator, qual seja, o cidadão, que por suas lutas e necessidades e a busca de satisfação de seus interesses diretamente junto ao ente governamental, tem papel específico na evolução narrada, vez que, inicialmente, via-se a sociedade totalmente distante da política, e hoje há pleno comprometimento entre ambos os aspectos.

O abandono dos ideais monárquicos, por já não possuírem mais identificação com a sociedade que se formava, trouxe a “revolta” do proletariado que se alavanca contra um sistema superado. Assim, a burguesia, com seus ideários de liberdade, fraternidade e igualdade, traz o Estado liberal que, como conceitua J. J. Canotilho, englobava o liberalismo político, ao qual estavam associadas as doutrinas de direitos humanos e divisão dos poderes e o liberalismo econômico caracterizado pela livre economia do mercado capitalista6.

A fase evolutiva é historicamente caracterizada pelos direitos de primeira geração, nos quais, bastava o Estado garantir o direito (liberdades negativas) com a mínima interferência do ente público, tendo por titular o indivíduo. Os direitos eram oponíveis ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa. A ostentação de uma subjetividade é seu traço mais característico7.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão passou a ter natureza de direitos históricos, como muito bem ilustrou Bobbio “são direitos nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de forma gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.8

Com o sistema evolutivo dos atores sociais, novas necessidades passaram a exigir um Estado mais intervencionista e atuante em todos os ramos de atividade, assegurando direitos mínimos, mas sem deslocar ao segundo plano as conquistas já efetivadas com as garantias de liberdade do Estado liberal, chegando-se, dessa forma, ao Estado Social.

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Como leciona Bolzan, a história dessa passagem, de todos conhecida, vincula-se em especial na luta dos movimentos operários pela conquista de uma regulação / garantização/promoção para a convencional chamada questão social9. Nesse instante surgem os direitos de segunda geração, os direitos de igualdade (direitos culturais, sociais e econômicos – conteúdos positivos).

Passou-se do Estado mínimo para o Estado intervencionista, surgindo a figura do Welfare State que, cediço, jamais teria sido implementado na sua forma original no Brasil.

Nessa ordem, direitos e garantias fundamentais do homem devem ser realidades, principalmente pela positivação constitucional, e inúmeras decorrências desse liame estrutural estabelecido passam a fazer parte do dia a dia não só do gestor público, mas de toda sociedade constituída.

Assim inicia-se o revés do Estado, que ultrapassa o Estado social e vai de encontro ao Estado contemporâneo. As demandas sociais com fins de garantir os direitos mínimos preconizados nas Cartas Políticas passam a surgir com urgência ímpar e nas formas mais diversificadas, mas sem que o gestor possa dar plena efetividade a todos, na mesma proporção, passando-se a um ambiente crítico.

Hoje, sob o influxo do chamado Estado democrático de direito, está-se imerso ao mesmo tempo num projeto de transformação da sociedade, por um lado, e por outro, num esfacelamento das condições necessárias e suficientes para a sua concretização.10

Desaparece o caráter assistencial, caritativo da prestação de serviços e passam a ser vistos como direitos próprios da cidadania, inerentes ao pressuposto da dignidade da pessoa humana, constituindo, assim, um patrimônio do cidadão11; e tal situação igualmente é vislumbrada no Brasil.

Especificamente, reportando-se ao Estado brasileiro, reconhece Bonavides que ele é, portanto, de terceira geração, em face desses aperfeiçoamentos. Um Es-Page 358tado que não concede apenas direitos sociais básicos, mas os garante, assim como delimita o doutrinador:

o verdadeiro problema do Direito Constitucional de nossa época está, a nosso ver, em como juridizar o Estado social, como estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos.12

Também não se pode ser olvidado que a nossa República se apresenta como um Estado social e democrático de direito, cujo contornos básicos se encontram ancorados no preâmbulo, nas normas dos artigos 1º ao 4º da CF (princípios fundamentais), pela consagração expressa de um catálogo de direitos fundamentais sociais (arts. 6º ao 11°) e em fase dos princípios norteadores dos títulos que versam sobre as ordens econômica e social (arts. 170 e 193), isso sem falar nas diversas normas concretizadoras desses princípios que se encontram dispersas pelo texto constitucional.13

Destarte, os direitos sociais mínimos, constitucionalmente protegidos, para uma existência digna dos atores sociais somente podem ser considerados realizados através de políticas públicas...

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