O princípio da neutralidade de rede na Internet: uma análise regulatória e concorrencial

AutorGuilherme Pereira Pinheiro
Páginas235-254

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1 Introdução

Este trabalho1 tem o objetivo de investigar o princípio da neutralidade de rede como regra válida para a Internet, tomando como pressuposto o conflito entre o direito à livre concorrência e os pressupostos de livre circulação de informações na rede mundial de computadores. Adotamos aqui o termo neutralidade de rede comoPage 236 tradução de network neutrality que, conforme o entendimento de Yoo,2 consiste no princípio de design da rede de comunicações, segundo o qual esta rede, ou quem a opera, seja em que nível for, deve ser neutra em relação aos pacotes de conteúdo que por ela transitam. A análise proposta pretende verificar de que forma o princípio da neutralidade de rede pretende resolver problemas de condutas discriminatórias em relação aos pacotes e aplicativos de empresas concorrentes, por parte de empresas que detêm propriedade da rede. Da mesma maneira, examinaremos de que forma a adoção do princípio em comento pode ensejar prejuízos à livre circulação de informações na Internet e ao direito à livre manifestação do pensamento.

Para tanto, estudaremos primeiro o modelo regulatório sobre o qual se sustenta a Internet e procuraremos cotejá-lo com outros modelos de comunicação eletrônica, de modo a identificar as características singulares da rede mundial de computadores que justifiquem o tratamento diferenciado e mais livre dado à Internet. Em seguida, avaliaremos de que forma o modelo regulatório competitivo pode ser beneficiado ou prejudicado por meio da adoção do princípio da neutralidade de rede, levando em conta outras iniciativas de tratamento do assunto no Brasil.

A análise do assunto desenvolver-se-á em torno do debate travado nos Estados Unidos, já que é o país onde o tema mais se encontra em discussão, tanto na arena jurídica quanto política, tendo havido inclusive, recentemente, decisão do Federal Communications Comission – FCC sobre a questão.

2 O caráter único da Internet como meio de comunicação

A Internet constitui um meio de comunicação eletrônica de massa que permite a busca, download de informação, e a interlocução entre as pessoas a ela conectadas, e que, geralmente, se dispõem a pagar pelo acesso. Esse conceito de Internet foi construído a partir de uma análise do livro Who Controls the Internet, de Tim Wu e Jack Goldsmith.3

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Diferentemente de outras mídias, é imperioso notarmos que a Internet não possui uma administração centralizada, mas constitui um esforço comum de inúmeras organizações, governos e empresas privadas para sua operacionalização. Atualmente, ainda não existe uma regulação internacional, ou mesmo nacional, sistematizada e geral para a rede mundial de computadores4. Essa observação é válida tanto para a regulação que estabelece as condições ou pressupostos para que as redes operem de forma eficiente, como em relação ao próprio conteúdo a ser transmitido. Mais ainda, vale dizer que a Internet possui natureza jurídica múltipla, mesclando elementos dos direitos reais, pessoais, intelectuais e obrigacionais dentro de uma perspectiva totalmente nova.

Além disso, a Internet detém várias características que fazem dela uma mídia única, destacando-se, dentre outras, aquelas apontadas no caso Janet Reno vs American Civil Liberties Union – ACLU5 e no paper sobre a Internet de Joseph Farrel e Philip Weiser.6 Vamos a elas:

(i) A primeira característica diz respeito à facilidade que se tem para acessar o sistema de Internet, tanto do ponto de vista do usuário, sem intuito de lucro, como do ponto de vista daquele que explora a Internet comercialmente. Isto é, existem muito poucas restrições ou barreiras que limitam física ou tecnologicamente a exploração do ciberespaço por qualquer pessoa que seja.

(ii) Em segundo lugar, há uma espécie de identidade de barreiras que se colocam tanto para aqueles que mandam como para aqueles que recebem informações na rede. Ou seja, com a mesma facilidade com que uma pessoa pode enviar material com determinado conteúdo através da rede, o receptor poderá ter acesso a essa mesma informação.

(iii) Como terceira qualidade inerente à rede, temos que, devido à imensa facilidade com que pessoas expõem, enviam, buscam e recebem informações por meio da Internet, existe uma quantidade diversificada e incomensurável de conteúdo disponível na Internet.

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(iv) Por último, a Internet disponibiliza acesso significativo a quase totalidade daqueles que desejam utilizar-se de seus serviços, criando, ainda, uma relativa paridade entre todos os usuários.

Com isso, constatamos que as características singulares da Internet em relação a outras mídias têm o condão de tornar a aplicabilidade, seja por analogia, seja pela transposição direta ou indireta, das restrições ou regulamentos dessas mídias à Internet, uma tarefa extremamente difícil, senão impossível, de ser implementada. Tentativas nesse sentido têm se mostrado ineficientes ou mesmo arriscadas para os fins a que se propõem, atentando comumente contra os valores e preceitos da liberdade de expressão e do direito de acesso à informação.7

Dessa forma, mesmo que um mesmo conteúdo eletrônico seja veiculado na Internet, e na TV aberta, esse conteúdo, por óbvio não deve receber o mesmo tratamento regulatório daquele veiculado na TV aberta. O fato de uma tela de computador reproduzir um mesmo conteúdo de uma TV a cabo não implica a existência da prestação do mesmo serviço. Tais interpretações não se sustentam e somente servem a grupos e a interesses que propugnam o exercício de maior controle sobre a rede mundial.

A Internet difere, por exemplo, da radiodifusão, que é a TV aberta, pelas seguintes razões e características, dentre outras, segundo Helberger:8

(i) Seu conteúdo não é definido por um (nem por uns poucos) agente, mas por milhões de usuários. Na radiodifusão, o conteúdo é definido pelo radiodifusor;

(ii) Não existe grade de programação na Internet;

(iii) O conteúdo é hospedado ou armazenado em provedores de conteúdo e o internauta vai buscar o conteúdo que lhe interessa; o conteúdo não é enviado ao internauta, nem, muito menos, difundido simultaneamente a todos os internautas. O conteúdo que o radiodifusor difunde é o mesmo para todos os telespectadores, que apenas têm a opção de ligar o aparelho de TV e ver o programa, ou não ligar e não vê-lo;

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(iv) A Internet não é obrigada a transmitir programas oficiais do Governo (propaganda eleitoral gratuita; cadeias nacionais ou regionais requisitadas pelo Governo; programa de informação dos Poderes da República, no caso do Rádio);

(v) A Internet é um serviço bidirecional e implica forte interatividade, enquanto a radiodifusão é um serviço unidirecional; não há interatividade nem canal de retorno;

(vi) Na Internet, não há um número mínimo de horas a se “transmitir” diariamente nem um limite máximo ao tempo de propaganda comercial veiculada;

(vii) Na Internet, os meios de transmissão não são de propriedade dos emissores ou controladores de conteúdo, como na radiodifusão;

(viii) O usuário, como regra geral, muitas vezes paga pelo acesso aos serviços de Internet e nada paga, necessariamente, para receber o serviço de radiodifusão;

(ix) Na Internet, pode haver contrato entre o explorador do serviço e o usuário/assinante; a recepção da radiodifusão é livre e direta;

(x) A remuneração do prestador de serviço pode advir do contrato com o usuário ou de propaganda, enquanto a fonte de recursos dos radiodifusores provém unicamente de veiculação de comerciais;

(xi) Sempre se sabe ou se pode saber, no ambiente Internet, quando um usuário (ou quando certo equipamento) está acessando a rede. O radiodifusor não sabe quem está recebendo sua programação;

(xii) A acesso à Internet se dá por qualquer meio técnico ou tecnológico (par de fios, cabo, fibra, wireless); a radiodifusão é sempre pelo ar; e

(xiii) À pró-atividade de um usuário da Internet, que interage na rede e busca o que quer, na hora que quer, contrapõe-se a relativa passividade de um telespectador de radiodifusão, que recebe o programa de TV distribuído pelo radiodifusor.

Essas diferenças entre a Internet e a radiodifusão podem ser construídas também em relação aos outros serviços que distribuem conteúdo eletrônico e servem para mostrar que a Internet constitui meio de comunicação bastante diferenciado em relação aos meios de comunicação eletrônica mais tradicionais.

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3 A concorrência no marco regulatório de telecomunicações e o conteúdo eletrônico

A pluralidade de fontes de conteúdo eletrônico só pode prevalecer dentro de um panorama no qual viceje a liberdade de iniciativa e a liberdade econômica, sustentáculos e princípios constitucionais da ordem econômica. O princípio da eficiência da administração pública impele não apenas o aperfeiçoamento na prestação de serviços pelo Estado como também na prescrição dos contratos de gestão firmados entre ela e os órgãos da administração direta e indireta. De fato, conforme aduz Spitzcovisk,9 “a administração pública não pode prescindir, no campo do direito administrativo econômico, dos princípios que regem a própria administração pública”.

E a ação da administração pública deve levar em conta o interesse público no setor de comunicação social eletrônico. A melhor forma de garantir essa multiplicidade de fontes de informação é a proteção da ordem econômica, que deve ser posta em ação diante de casos de monopolização abusiva ou condutas anticompetitivas. Os meios de comunicação eletrônica, e em especial a Internet, não devem ter seu conteúdo, em si, regulado. Contudo, a...

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