Nexo Subjetivo: Preterdolo e Crimes Qualificados pelo Resultado

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas443-453

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17.1. Preterdolo ou preterintenção

Como expusemos anteriormente, o preterdolo (ou preterintenção) não constitui modalidade distinta de nexo subjetivo, mas composição híbrida derivada da fusão do dolo com a culpa (v. n. 14.1). Configura, no dizer de Juan Del Rosal, uma forma impura de culpabilidade1018.

Afirma-se existir preterdolo ao atuar o sujeito ativo com dolo na produção de um resultado antecedente e culpa na verificação de um resultado subsequente.

Do exposto se dessume que a preterintenção está ligada ao desdobramento ou sucessão de resultados no mundo físico, consequentes à conduta do agente.

Essa sucessão de eventos pode caracterizar o concurso de delitos, a perfazer tantos crimes quantos foram os resultados produzidos, como pode corporificar uma unidade jurídica criminosa.

No primeiro caso, se a cada evento corresponder um crime, a solução jurídica cabível se obtém por intermédio das regras pertinentes ao concurso de delitos (Cap. 22), pois o tema refoge ao quadrante do preterdolo, que somente poderá, nessa hipótese, despontar como elemento subjetivo de um ou alguns dos crimes dentro do conjunto concursal.

Interessa-nos aqui o desdobramento de resultados que não leva à perda da unidade jurídica do crime, pois é onde a preterintenção deita as suas raízes.

A sucessão de eventos, que não rompe a singularidade do delito, acontece apenas nos crimes qualificados pelo resultado, sede única e exclusiva do preterdolo.

Por isso, cumpre examinar a preterintenção juntamente com os delitos qualificados pelo evento, objeto de análise no tópico seguinte.

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17.2. Crimes qualificados pelo resultado

Vimos, em trecho anterior, que há circunstâncias que se agregam e incorporam ao crime, já constituído, e não interferem na sua existência. Por tal razão, indiferentemente, estas circunstâncias podem ou não existir, sem que a sua presença ou ausência afete o aperfeiçoamento jurídico do delito. São elas chamadas circunstâncias acidentais, em contraposição às essenciais ou constitutivas, pois possuem campo de incidência limitado unicamente à esfera da gradação e dosimetria da sanctio juris (v. n. 8.1).

Não raro acontece, entretanto, de a lei penal tomar em consideração, como circunstância meramente acidental do crime, na função de qualificadora (v. n. 8.3), um efeito que decorre da ação típica e que é desnecessário à configuração do delito, vindo então esse efeito somente a desempenhar o papel de um fato que confere maior reprovabilidade ao crime.

Surge, assim, o crime qualificado pelo resultado.

A espécie em apreço pode surgir em duas situações.

Na primeira, outro evento, diverso daquele necessário e indispensável ao aperfeiçoamento típico do delito (v. n. 5.1), mas acidental ou casualmente produzido, é considerado pela lei como motivo de majoração da pena. Vale dizer: outro resultado, desnecessário à caracterização jurídica do crime, se acresce ao evento anterior, este de fundamental importância para a configuração do ilícito, sendo ambos causados pela conduta punível. Há heterogeneidade consequencial em vista do que pretendia o agente.

É o que sucede, verbi gratia, na hipótese de aborto qualificado (art. 127, CP). Como se sabe, a ação típica de provocar aborto não pode ser dissociada da produção de um efeito exterior necessário, que a complementa no plano físico. O delito pertence ao grupo dos crimes materiais, pois seu elemento nuclear requesta a projeção de uma transformação no mundo realístico, objetivamente constatável. Pela própria índole da ação incriminada (provocar aborto), não há como compreendê-la sem produzir, como consectário lógico e forçoso, a morte do produto da concepção, consequência da inter-rupção da gravidez. Esse é o resultado típico essencial à configuração jurídica do crime de aborto. Percebe-se, portanto, que o aborto não necessita, para a sua verificação, da morte da própria gestante. O perecimento do nascituro é o evento indeclinável. A morte da mulher grávida constitui ocorrência meramente casual e circunstancial, sem a qual o aborto da mesma forma se perfaz. Cabe perfeitamente cogitar da existência jurídica de um aborto sem a morte da mulher que a ele foi submetida. É inconteste, porém, que a manobra abortiva empreendida pelo agente pode levar aos dois resultados e produzir o essencial ao delito (morte do produto da concepção, como decorrência da interrupção do estado gravídico) e o simplesmente circunstancial, dispensável para a constituição jurídica do crime (morte da gestante, proveniente de qualquer fator relacionado: perfuração do útero, falta de assepsia, infecção etc). Morra ou não a mulher grávida, há aborto criminoso se é interrompida a sua gestação e sobrevém a morte do nascituro. Mas se também a gestante perece em consequência do aborto ou das

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manobras abortivas, agrega-se ao primeiro e imprescindível resultado outro evento, de característica casual na anatomia do delito, tomado em consideração pela lei como motivo para a exasperação da pena (art. 127, CP). Aí está a circunstância acidental qualificadora, concretizada pela produção de resultado estranho à essência do crime. Surge, então, o delito qualificado pelo evento.

Na segunda situação, o crime é qualificado pelo próprio resultado naturalístico (homogeneidade consequencial), considerado, porém, para a função circunstancial, numa intensidade, magnitude e proporção maiores que as necessárias ao aperfeiçoamento típico do delito.

No crime incrustado no art. 129 do diploma penal, por exemplo, a lesão corporal produzida em outrem constitui seu resultado. Um simples ferimento já é suficiente para consumar o delito (um corte, hematoma, contusão, escoriação, equimose, luxação...). Não é necessário que o dano à integridade física alheia atinja o extremo de uma deformidade permanente ou de uma mutilação de membro, da perda de sentido, órgão ou função, de uma incapacidade permanente para o trabalho. No entanto, se estas consequências - constitutivas do próprio resultado do crime - ocorrerem, surge uma causa para agravar a sanctio juris, posto consideradas pela lei, na sua exorbitância e proporção excedentes ao resultado necessário, como eventos qualificadores do delito (cf. art. 129, § 2º, CP). Não existe, aqui, outro evento, mas o próprio resultado do crime, porém considerado pela norma penal numa produção mais acentuada que a necessária1019.

Em ambas as hipóteses, consoante às expressas edita o art. 19 do CP, "pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente" (g.n.).

No dispositivo está a consagração legal do preterdolo.

De tal arte, para corporificar-se o crime qualificado pelo resultado, é imperioso que o sujeito ativo proceda com dolo no evento essencial ao delito e, no mínimo, com culpa - em face da previsibilidade - no resultado circunstancial subsequente.

Fulano realiza manobras abortivas em Beltrana, pois almeja a interrupção de sua gravidez com a consequente morte do nascituro (dolo). Contudo, por falta de assepsia no instrumental empregado ou falta de aptidão na sua utilização, Fulano provoca em Beltrana grave infecção ou mesmo a perfuração do útero, causando-lhe a previsível morte (culpa). Embora Fulano desejasse o primeiro evento (aborto), a sua vontade não abrangia o segundo, embora previsível, de natureza circunstancial (morte da gestante). Procedeu o agente, portanto, com dolo no resultado antecedente e culpa no resultado consequente. Conclusão: crime de aborto qualificado pelo evento, em razão do preterdolo.

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Igual: Márcio desfere forte pancada, valendo-se de instrumento contundente pesado, contra as costas de Felipe, com o intento de feri-lo. Fratura-lhe a coluna cervical e acarreta na vítima incapacidade permanente para o trabalho, deformidade permanente (pois o faz tornar-se giboso) e debilidade permanente da função de deambular. Sendo propósito de Márcio somente ferir Felipe (dolo no resultado do crime), não escapava da órbita do previsível que, ao vibrar o golpe contra as costas da vítima com aquele instrumento, pudesse produzir-lhe consequências maiores, embora não queridas (culpa no evento subsequente). Daí a tonalização da lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, CP), ex vi da preterintencionalidade.

Se, entretanto, o resultado consequente afastar-se da esfera da previsibilidade

(v. n. 16.4), crível é que o preterdolo não se compõe e, assim, deixa de existir o crime qualificado pelo evento. Nesse caso, a responsabilidade penal do sujeito ativo fica restrita ao resultado que deliberadamente procurou e o imprevisível evento superveniente não qualifica o delito.

Calha ilustrar.

O aborto é resultado qualificador do delito de lesão corporal (art. 129, § 2º, n. V, CP). Fulano agride Beltrana, que se encontra grávida, com o propósito exclusivo de feri-la. Em consequência, a Beltrana sobrevém o aborto. É insofismável que se Fulano soubesse do estado gravídico da ofendida, a eventual ocorrência do aborto não lhe escaparia à perspicácia e tirocínio, mormente se lhe desfechasse socos e pontapés contra a região torácica e abdominal. Nesse caso, seria inegável o...

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