Normas processuais coletivas do código de defesa do consumidor ? um diálogo necessário com o processo do trabalho para a mudança de paradigma da solução de conflitos

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas201-210

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O diálogo de fontes envolvendo as normas processuais insertas no Código de Defesa do Consumidor e no Processo do Trabalho tem sido cada vez mais intenso na área do Processo Coletivo, promovendo um verdadeiro acesso à Justiça quanto às microlesões ocorridas no cotidiano das relações de trabalho.1

Observe-se que ambos os diplomas, Consolidação das Leis do Trabalho e Código de Defesa do Consumidor, aproximam-se principiologicamente porque partem da hipossuficiência de um dos polos da relação jurídica material para igualá-las juridicamente. Parte-se da premissa de que uma das partes da relação jurídica tem o poder econômico, ditando a forma como a relação material ocorrerá, e por esse fato, justifica-se a intervenção estatal, a fim de que os contratos de adesão – tanto para o consumidor quanto para o trabalhador – sejam mais justos. A comunicação dessas fontes também ocorre em razão de um princípio comum: prima-zia na aplicação das normas de direitos fundamentais, pois tanto a CLT quanto o CDC versam sobre direitos fundamentais que devem ser concretizados da melhor forma possível.

No plano processual, verifica-se que a primeira legislação tipicamente brasileira a tratar de uma tutela coletiva foi o Código Comercial de 1850 regulamentando a falência, pois o concurso de credores contra um só devedor pode ser considerada uma forma de acesso coletivo à Justiça, antes mesmo das ações coletivas.

Outra ação antiga formatada para o acesso coletivo à uma decisão foi o dissídio coletivo, regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho (art. 856 e seguintes, de 1º de maio de 1943), muito embora o órgão encarregado de julgar esse conflito fosse administrativo, o Departamento Nacional do Trabalho, que após um pouco mais de três anos transformou-se na Justiça do Trabalho, por meio da Constituição dos Estados Unidos do Brasil (18 de setembro de 1946, art. 122).

Essas são ações precursoras ao atual entendimento da tutela coletiva de direitos, que após a Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, realizou uma importante mudança de paradigma no sistema individualista bipolar de acesso à justiça, pois os litígios tutelados pelas ações coletivas envolvem “uma parte amorfa e fluida, representada judicialmente por um terceiro não titular do direito material e, a outra parte, uma pessoa legalmente reconhecida (física ou jurídica)2.

No Brasil, o problema da tutela coletiva como atualmente conhecido – solução para conflitos de massa – foi sistematizado doutrinariamente pela primeira

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vez em 1979, por Barbosa Moreira, em trabalho publicado no Studi in onore di Enrico Tullio Liebman, vol. IV, na Itália, cidade de Milão, sob o título “Ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos”.3 Apesar dos antecedentes históricos, observa-se que os países que adotam o sistema da civil law possuem uma dificuldade maior para estruturar a tutela coletiva dos direitos, sendo o Brasil considerado uma das exceções à regra.

O objetivo do presente estudo é demonstrar, a partir da interpretação concretizante e em diálogo de fontes, novas formas de otimizar a prestação jurisdicional para solucionar conflitos repetitivos com efetividade, celeridade, economia processual e de infra-estrutura, observando que essas questões chegam ao Poder Judiciário de modo atomizado, aumentando o volume de processos nas unidades de jurisdição, esgotando até mesmo a capacidade de trabalho humana dos Tribunais.

Para se ter uma dimensão do problema, na Itália, por exemplo, não obstante os estudos de Cappelletti e Garth, foi somente em 1998, por meio da Lei n. 281, que se instituiu a possibilidade de uma sentença gené-rica para ações ajuizadas por associações de consumidores, mas que, todavia, devem ser executadas individualmente.4

Atualmente, o acesso coletivo brasileiro é formado por um microssistema56 que inicialmente agregou a Constituição da República, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, dentre outras normas infraconstitucionais (Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, Lei de Improbidade Administrativa etc.). O único ramo jurídico que adaptou o sistema foi o Processo do Trabalho em razão da peculiaridade da apresentação da defesa em audiência, 20 minutos conforme o art. 847 da CLT, dos prazos diferenciados para os recursos com caráter reformador como a apelação – inaplicável à Justiça do Trabalho, que tem regra expressa, ou seja recurso ordinário com prazo e preparos distintos do tronco comum do Processo Civil – 8 dias e preparo envolvendo o pagamento de custas e um valor destinado à garantia futura da execução processual ao invés da utilização da taxa judiciária – dentre outras peculiaridades procedimentais.

No entanto, a ampliação necessária da tutela cole-tiva, antes prevista na Lei de Ação Civil Pública, para outras matérias, e não apenas às afetas à atuação do Ministério Público e os legitimados específicos e em número diminuto, como na redação original, apesar da redação do inciso IV do art. 1º da Lei n. 7.347/1985: “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, sem sequer mencionar os interesses individuais homogêneos, foi realizada pelo Código de Defesa do Consumidor que no art. 81 ampliou a utilização dessa tutela para qualquer interesse ou direito difuso, coletivo e individual homogêneo, ampliando o rol dos legitimados previstos na lei da Ação Civil Pública no art. 82 para a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal e as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código – no caso o de Defesa do Consumidor, dispensando a autorização assemblear para as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código – novamente o de Defesa do Consumidor.

Assim, a partir da década de 90, a própria Lei da Ação Civil Pública (LACP) foi influenciada pela normatização processual coletiva do Código de Defesa do Consumidor (CDC), sendo alterada desde 94 até 2007 para abranger um rol ainda mais extenso de legitimados.

Interesse distingue-se de direito na medida em que o interesse jurídico tem seu conteúdo valorativo já prefixado na norma7, ou ainda pode-se afirmar que o interesse “é a relação entre a necessidade de uma pessoa

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e o bem idôneo a satisfazer tal necessidade, determinada na previsão geral e abstrata de uma norma jurídica”8.

O interesse jurídico pode ser definido como a relação entre a necessidade de um sujeito e um bem, material ou imaterial, valorado pela norma9, enquanto o direito é o objeto tutelado efetivamente pela norma jurídica.

E nesse sentido, há uma coincidência entre os conceitos de interesse e direito, por ausência de diferença prática entre os termos expressos no inciso III do art. 129 da CF/88 pois a utilização do termo interesse pelo legislador ordinário equivale a direito10, uma vez que o ordenamento pátrio não tutela interesses puros.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, foi concebida como um projeto jurídico a ser realizado por meio de regras, princípios e valores11 – essa diretriz constitucional foi concretizada recentemente no art. 1º da Lei n. 13.105/2015 (CPC2015) –, e, nesse mister, não se deve considerar interesse jurídico como sinônimo de direito. Mesmo porque o direito na ideia suso desenvolvida, configura-se um plus relativamente aos interesses, tendo em vista a presença do elemento coercibilidade.12 Portanto, o “direito seria o interesse juridicamente protegido”13. Prova desse fato é que os “’interesses juridicamente protegidos’ não podem ser tutelados pelo mandado de segurança ou qualquer ação porque justamente são desprovidos da coercibilidade”14.

A doutrina italiana não distingue interesses difusos de interesses coletivos como fazemos no Brasil15, uma das diferenças efetuadas pelo ordenamento pátrio consiste no tratamento da coisa julgada difusa e coletiva, regulamentadas respectivamente no art. 103, incisos I e II do Código de Defesa do Consumidor, sendo a primeira com efeito erga omnes e a segunda com efeito estendido para a categoria coletiva abrangida por aquele direito.

Pode-se afirmar que interesses difusos são aqueles inerentes a uma comunidade indeterminada ou indeterminável, mas que está atrelada por uma mesma origem fática. Rodolfo de Camargo Mancuso, em monografia sobre o tema16, elenca quatro características dos interesses difusos: indeterminabilidade dos sujeitos, indivisibilidade do objeto, intensa conflituosidade e duração efêmera ou contigencial.

Já os interesses coletivos em sentido estrito são aqueles inerentes a um grupo de pessoas que estão ligadas pela mesma relação jurídica. Destaca-se a afirmação de Souza Maia de que “o interesse coletivo não é simplemesmente a aglutinação de interesses individuais. [...] É o espírito coletivo organizado, despojado do sentimento individual que caracteriza o ‘ideal’ coletivo. [...] Concerne ao fim institucional da corporação, associação ou grupo intermediário”17.

Diferença crucial entre os interesses difusos e coletivos em sentido estrito é a determinação dos sujeitos deste, posto que pertencentes ao mesmo grupo ou categoria, em oposição à indeterminabilidade dos sujeitos daquele, o que ensejará um tratamento diferido na coisa julgada produzida por cada tipo de interesse, como citado.

Portanto, devido à similitude dos interesses é que a doutrina os classifica como metaindividuais ou cole-tivos em sentido amplo. Entretanto, há um outro tipo de interesse positivado no Código de Defesa do Consumidor por meio do art. 81, parágrafo único, inciso III: o interesse individual homogêneo.

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A grande diferença dos interesses...

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