A Normatividade dos Princípios
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A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS
(1) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.6.
(2) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.12.
(3) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.33.
(4) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p.19.
(5) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p.14.
A controvérsia sobre a essência da Constitui-
ção, com posicionamentos diametralmente opostos
defendidos por Ferdinand Lassale e Konrad Hesse,
é fulcral para a compreensão da normatividade dos
princípios e para a conclusão, sustentada por Robert
Alexy, de que a densificação dos princípios constitu-
cionais independe da existência de norma infracons-
titucional, bastando para tanto a utilização de um
discurso racional.
Segundo Lassale, sob o aspecto jurídico, é possí-
vel afirmar que “a Constituição é a lei fundamental
proclamada pela nação, na qual baseia-se a organi-
zação do direito público do país(1)”. Entrementes,
no entendimento do autor, a essência é bem diversa
da conceituação jurídica, pois a Constituição nada
mais é que a soma dos fatores reais do poder que re-
gem uma nação transcritos em uma “folha de papel”.
Sendo assim, mesmo que não se tenha o documen-
to constitucional, a folha escrita, os poderes exter-
nos à Constituição continuam sendo determinantes
para o pleno funcionamento do Estado, vez que “o
chefe da nação a quem obedecem o exército e os ca-
nhões também é uma parte da Constituição(2)”. Em
seu entendimento, por conseguinte, a Constituição
somente vincula o Estado na medida em que é politi-
camente ratificada pelos fatores reais de poder, a sa-
ber: a monarquia, as classes dominantes, a burguesia,
os trabalhadores, a Igreja, enfim, todos os atores so-
ciais que possuem interesses econômicos e políticos
a serem defendidos. Uma Constituição escrita, desta
sorte, será boa e duradoura na medida em que cor-
responder à Constituição real e tiver suas raízes nos
fatores do poder que regem o país(3). Segundo o autor,
a Constituição jurídica não terá qualquer relevância
social se os fatores reais de poder não a aplicarem
e não lhe conferirem concretude. Trata-se, portanto,
de vinculação absoluta da eficácia jurídica a uma efi-
cácia social que independe, inclusive, do conteúdo
jurídico que possua a Constituição. As normas cons-
titucionais, portanto, não são dotadas de eficácia, por
si sós, mas estão sempre vinculadas e dependentes
dos fatores reais de poder para sua legitimação e efe-
tividade.
Em posicionamento diametralmente oposto, Kon-
rad Hesse sustenta que a Constituição é formada por
princípios jurídicos que, como quaisquer outras nor-
mas jurídicas, possuem eficácia e espraiam seus efei-
tos por todo o ordenamento. Nesta ordem de ideias,
a Constituição ocupa o cerne de todo o ordenamento
jurídico. Assim, a Constituição será convertida em
força ativa se estiverem presentes, na consciência dos
principais responsáveis pela ordem constitucional,
não só a vontade de poder, mas também a vontade
de Constituição(4). De acordo com Konrad Hesse,
os fatores reais de poder estão implícitos no texto
constitucional, que possui força normativa própria,
motivadora e ordenadora da organização estatal. Para
o autor, a Constituição não significa apenas um “pe-
daço de papel”, como definido por Lassalle, mas é
um conjunto de normas com eficácia própria e força
vinculante.
Neste contexto, Hesse afirma que a separação radi-
cal, no plano constitucional, entre realidade e norma,
entre ser e dever ser, não leva a qualquer avanço na
indagação sobre a essência da Constituição. E pros-
segue o raciocínio asseverando que a eventual ênfase
numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente
aos extremos de uma norma despida de qualquer ele-
mento da realidade ou de uma realidade esvaziada de
qualquer elemento normativo(5). Desta maneira,
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
a Constituição não configura, portanto, apenas
expressão de um ser, mas também um dever ser, ela
significa mais do que simples reflexões das condi-
ções fáticas de sua vigência, particularmente as forças
sociais e políticas. Graças a pretensão de eficácia, a
Constituição procura imprimir ordem e conformação
a realidade política e social(6).
A força normativa da Constituição significa que
os direitos fundamentais, os valores e princípios
que consubstanciam o seu texto não são meras pro-
messas retóricas, uma carta de boas intenções a ser
cumprida, algum dia, pelo Estado ou ao talante dos
governantes. Tratam-se, muito ao revés, de normas
jurídicas, e como tais são dotadas de eficácia plena
e de coercitividade, que devem ser aplicadas pelos
poderes constituídos e por particulares, em sua ple-
nitude. Em conformidade com este novo paradigma,
não existem normas programáticas, que, de acordo
com a teoria tradicional, são destituídas de eficácia.
As denominadas normas programáticas são progra-
mas de governo, a serem concretizados, ainda que
apenas possuam na atualidade eficácia jurígena e não
ainda social.
Este paradigma defendido por Konrad Hesse
encontra-se no cerne da teoria de Robert Alexy so-
bre a normatividade dos princípios. Em sua tese de
habilitação no doutorado(7), apresentada em 1984 na
Universidade de Göttingen, Robert Alexy desenvolve
a teoria da argumentação jurídica, aplicando-a espe-
cificamente aos direitos fundamentais. Nesta obra,
estabelece a supremacia axiológica no ordenamento
jurídico de um Estado democrático de direito. Em
seu entendimento, a declaração principiológica dos
direitos fundamentais asseguram direitos prima fa-
cie, e que destes é possível extrair, ainda que sem a
intermediação legislativa, direitos definitivos no caso
concreto. E esta densificação dos princípios é pos-
sível, racionalmente, através da aplicação das regras
da interpretação na justificação externa do discurso
jurídico.
Os princípios jurídicos são mandamentos de
otimização, que podem ser realizados em diferen-
tes graus. A determinação de um direito definitivo,
portanto, somente é possível no caso concreto, em
consonância com as condições fáticas e jurídicas sob
(6) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p.15.
(7) Requisito, na Alemanha, para que o portador do título de doutor possa ensinar e orientar outros doutorandos.
(8) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.12.
enfoque. Desta sorte, não existe uma escala de pre-
valência absoluta entre princípios; a sobreposição de
um ou de outro é sempre condicionada e adstrita aos
fatos e bens jurídicos envolvidos.
A densificação dos princípios para normas que
assegurem direitos denominados definitivos somente
pode ser realizada pelo discurso racional, seguindo-
-se de maneira imprescindível as formas e regras da
argumentação jurídica, a fim de ser alcançada a cor-
reção das conclusões.
Por esta razão, o estudo dos princípios constitu-
cionais é crucial para o estudo dos direitos sociais e
trabalhistas sob a perspectiva emancipatória e huma-
nista, e será realizado, cada um de per si, nos próxi-
mos tópicos.
4.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
O conteúdo material do princípio da dignidade
da pessoa humana é variável, de acordo com o mo-
mento histórico e com as condições culturais e até
mesmo geográficas em que é analisada a sua essência.
Trata-se, portanto, de um paradigma que tem por ca-
racterísticas a ambiguidade, a vagueza e a porosida-
de, devendo ser preenchido no caso concreto, pelo
intérprete, para efetivação dos direitos fundamentais.
O princípio da dignidade da pessoa humana, de
acordo com Fábio Konder Comparato(8), despon-
tou na Antiguidade, entre os séculos VIII e II a.C.,
como resultado da posição e reconhecimento social
do indivíduo. Somente eram dignos os membros das
classes mais abastadas. A partir do advento da reli-
gião cristã esta concepção se modificou e se difundiu
como imperativo ético, alicerçada precipuamente nos
ensinamentos teológicos acerca da igualdade entre os
homens. Esta isonomia do cristianismo, entretanto,
em seu período inicial, era apenas no plano divino,
vez que a religião admitiu, durante muitos séculos, a
legitimidade da escravidão e da inferioridade da mu-
lher em relação ao homem.
Durante a Idade Média, e principalmente devido
a São Tomás de Aquino, a dignidade da pessoa huma-
na adquiriu contornos mais próximos do que atual-
mente possui, pois foi elaborado o princípio tendo
A Normatividade dos Princípios
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por fundamento a igualdade material entre todas as
pessoas, a despeito de suas diferenças individuais,
biológicas, culturais ou sociais.
O marco fundamental na filosofia moderna acer-
ca da dignidade da pessoa humana encontra-se, in-
dubitavelmente, em Kant, no século XVIII. Para o fi-
lósofo prussiano, o homem, como todo ser racional,
existe como um fim em si mesmo, não podendo se
tornar objeto (meio) de que uma outra vontade possa
se servir. O embasamento da dignidade, portanto, é a
autonomia da vontade. Afirma que:
A lei moral é santa (inviolável). O homem, con-
quanto bastante profano, deve conceituar a humani-
dade em sua pessoa como santa. Tudo o que existe na
criação e sobre a parte que se tenha suficiente poder,
poderemos empregar como simples meio; unicamente
o homem, e com ele toda a criatura racional, é fim em si
mesmo. É ele, efetivamente, o sujeito da lei moral, que
resulta santa graças à autonomia da sua liberdade(9).
Segundo Kant, a verdade encontra-se nos juízos
universais, absolutos e necessários, sendo um a prio-
ri, ou seja, existindo independente das vicissitudes
da experiência, que é sempre parcial e relativa. As-
sim, a dignidade humana também é uma ideia aprio-
rística, na medida em que existe independentemen-
te das circunstâncias históricas e na medida em que
independe das condições sociais (status, condições
econômicas ou de escolaridade etc.) ou fáticas nas
quais o indivíduo vive. A pessoa, portanto, é digna
porque é um ser racional e, como tal, tem autonomia
da vontade. Por esta razão, não seria jamais admis-
sível que uma vontade sobrepujasse a outra. A par
de todas estas considerações, conclui-se que o pen-
samento de Kant é alinhado com o jusnaturalismo,
que à sua época já não possuía uma matriz teológica,
mas racionalista.
Conquanto o pensamento jusnaturalista tenha
prevalecido durante toda a Idade Moderna, tendo
sido o principal combustível ideológico para as re-
voluções burguesas do século XVIII, que marcam o
início da Idade Contemporânea, o fato é que a De-
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, e a Declaração de Independência dos Estados
(9) KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.69.
(10) PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 1976. Disponível em: .parlamento.pt/Legislacao/
Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em: 19 jun. 2020.
(11) ESPANHA. Constituição Espanhola. Disponível em: .boe.es/aeboe/consultas/enlaces/ documentos>. Acesso
em: 19 jun. 2020.
Unidos, de 1776, em momento algum se reportam ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
O princípio constou pela primeira vez em um do-
cumento na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela
Assembleia Geral da ONU, em Paris. A partir de en-
tão, muitas outras declarações e convenções interna-
cionais o têm mencionado, e atualmente encontra-se
incorporado ao texto constitucional de inúmeros Es-
tados, inclusive o Brasil.
Nesta linha, afirma a Constituição da Repúbli-
ca Portuguesa, de 02 de abril de 1976, logo em seu
art.1º, que “Portugal é uma República soberana, ba-
seada na dignidade da pessoa humana e na vontade
popular e empenhada na construção de uma socieda-
de livre, justa e solidária”(10). Já a Constituição Espa-
nhola, em vigor desde 1978, em seu art.10, também
dispõe que “a dignidade da pessoa, os direitos invio-
láveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento
da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos
dos outros são fundamentos da ordem política e da
paz social”(11).
A Carta Magna de 1988 também proclama, em
seu art.1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana
como fundamento do Estado democrático de direito
e da República Federativa do Brasil.
O princípio da dignidade da pessoa humana,
como conformador de todo o ordenamento jurídico
pátrio, não é absoluto, podendo entrar em choque
com outros princípios e podendo também ser ponde-
rado e sopesado a depender das circunstâncias fáti-
cas. Por mais relevante que seja, não existe princípio
jurídico absoluto. A par de toda esta digressão acerca
de sua evolução histórica, é possível afirmar, com es-
peque em Luís Roberto Barroso, que
O princípio da dignidade da pessoa humana iden-
tifica um espaço de integridade moral a ser assegurado
a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É
um respeito à criação, independente da crença que se
professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-
-se tanto com a liberdade e valores do espírito como
com as condições materiais de subsistência. O desres-
peito a este princípio terá sido um dos estigmas do
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