Nossas vidas importam?' a vulnerabilidade sociojurídica da população LGBTI+ no Brasil: debates em torno do estatuto da diversidade sexual e de gênero e da sua atual pertinência

AutorManuel Camelo Ferreira da Silva Netto e Carlos Henrique Félix Dantas
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Mestrando em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Páginas213-230
“NOSSAS VIDAS IMPORTAM?”1
A VULNERABILIDADE SOCIOJURÍDICA
DA POPULAÇÃO LGBTI+ NO BRASIL:
DEBATES EM TORNO DO ESTATUTO
DA DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
E DA SUA ATUAL PERTINÊNCIA
Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em
Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Pesquisador do Grupo
de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE/CNPq). As-
sociado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogado. Mediador
Humanista. E-mail: manuelcamelo2012@hotmail.com.
Carlos Henrique Félix Dantas
Mestrando em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-gra-
duando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/
MG). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogado. E-mail:
carloshenriquefd@hotmail.com.
Sumário: 1. Introdução. 2. A população LGBTI+ e sua vulnerabilidade sociojurídica: a hetero-
cisnormatividade como uma estrutura de opressão que afeta as expressões de sexualidade e as
identidades de gênero não hegemônicas. 3. O Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero como
instrumento de emancipação da população LGBTI+. 4. Considerações nais. 5. Referências.
“Quando se fala de resultados práticos em aquisições políticas para
a diversidade sexual, muita coisa cou a desejar, no tocante aos órgãos
tanto legislativos quanto executivos, como já se viu fartamente”
(TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso, 2018).
1. Ensina Judith Butler que “abjeção” é a característica de todas aquelas vidas que não são consideradas “vidas”,
ou seja, aquelas tidas por prescindíveis. A autora geralmente utiliza esse conceito para tratar de temas ligados a
estudos sobre gênero e sexualidade, tendo em vista o fato de que a violação do sistema sexo-gênero por pessoas
que apresentam expressões de sexualidade e identidades de gênero não hegemônicas tornam-nas ininteligíveis e
desimportantes para o campo social. Desse modo, o questionamento feito neste título toma por base essa concepção
butleriana de “desimpotância” da vida de pessoas desviantes do padrão heterocisnormativo para chamar atenção
para a vulnerabilidade sociojurídica referente à população LGBTI+ que será discutida no texto (Cf. PRINS, Baukje;
MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002, p. 161. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11634.pdf.
Acesso em: 11 jul. 2019).
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MANUEL CAMELO FERREIRA DA SILVA NETTO E CARLOS HENRIQUE FÉLIX DANTAS
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1. INTRODUÇÃO
Ainda hoje, o intenso preconceito histórico-social existente com relação aos mem-
bros da população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêne-
ros, intersexuais e outros, outras ou outres)2 acaba por gerar restrições nos seus direitos
fundamentais e da personalidade. Essa postura discriminatória, por sua vez, decorre do
estigma fortemente presente nas relações pessoais dessa população e da heterocisnor-
matividade hegemônica no contexto sociojurídico, acarretando, por isso, no que se pode
entender enquanto uma vulnerabilidade latente nas relações sociais.
À vista disso, em função, sobretudo, da crise vivenciada no direito, na transição
do Estado Liberal para o Social, no século XX, sabe-se que a pessoa humana se tornou o
centro do debate das ciências jurídicas, estabelecendo-se, por isso, uma cláusula geral de
proteção. Dessa forma, estabelece-se que o Direito existe em função da pessoa humana, de
modo a que seu objetivo central é reconhecer e proteger a fruição de direito e liberdades
inerentes à condição humana. Af‌inal, a existência de normas e condutas que violem os
direitos fundamentais e da personalidade estão, em certa medida, em descompasso com
o ordenamento jurídico vigente.
Nesse diapasão, é cediço reconhecer que o exercício da cidadania plural, de acordo
com as subjetividades da pessoa humana, especialmente no que se refere à população
LGBTI+, deve ser condizente com o respeito da diversidade sexual e de gênero para
além de uma heterossexualidade e de uma cisgeneridade compulsórias. A partir disso,
o esforço contramajoritário – no sentido de reconhecer direitos violados dessa parcela
populacional – dá-se principalmente por via jurisprudencial, existindo lacunas norma-
tivas específ‌icas que garantam com objetividade a proteção de suas vidas e existências.
Diante disso, este trabalho parte da seguinte problemática: apesar dos avanços
obtidos no campo jurisprudencial, com efeitos vinculantes, subsiste a pertinência da
criação de um microssistema normativo próprio para tutelar a população LGBTI+ nas
suas relações sociojurídicas?
Sendo assim, buscou-se analisar a atual pertinência da aprovação do Estatuto da
Diversidade Sexual e de Gênero enquanto uma norma jurídica específ‌ica para promover
2. A escolha do uso dessa sigla, para os f‌ins deste trabalho, deu-se em razão da sigla “LGBTI” ter sido a escolhida
para f‌igurar no corpo do Projeto de Lei do Senado (PLS) 134/2018, que trata do Estatuto da Diversidade Sexual e
de Gênero, objeto desta pesquisa. Sabe-se, no entanto, que tal movimento político-social não apresenta um con-
senso com relação à sigla; tendo ela, inclusive, sofrido diversas transformações ao longo dos anos: “GLS” (gays,
lésbicas e simpatizantes), “GLBT” (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), “LGBT” (lésbicas, gays, bissexuais
e transgêneros) etc. (Cf. SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. Diversidade sexual e suas nomenclaturas. In: DIAS,
Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 97). Essas mudan-
ças, por sua vez, deram-se, sobretudo, para trazer maior visibilidade para grupos identitários que tendem a ser
mais invisibilizados pela sociedade (a exemplo das mulheres lésbicas, que além da homofobia, também sofrem
com opressões ligadas ao gênero feminino, e as pessoas intersexuais, que costumam ser estigmatizadas pela sua
não adequação aos padrões de sexo-gênero vigentes na sociedade) ou para respeitar a multiplicidade identitária
constante dessa camada populacional (a exemplo das pessoas trans, as quais, nem sempre, identif‌icam-se com
o termo “transgênero”, motivo pelo qual há o destaque também para as pessoas transexuais e travestis). De toda
forma, como não há como agregar toda a pluralidade desse grupo em uma sigla apenas, recorre-se normalmente
ao “+” para indicar que existem também outras identidades que são abrangidas, razão pela qual se optou neste
trabalho por utilizá-lo para remeter a essas outras identidades, as quais também irão/deverão ser contempladas
pelas disposições do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero.
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