Nota critica sobre a teoria dos sistemas, o neoliberalismo e o direito a cidade/Critical notes on Systems Theory, Neoliberalism and Right to the City.

AutorMinhoto, Laurindo Dias

Para a tradicao de critica da ideologia, como se sabe, uma formacao ideologica em sentido enfatico guarda uma relacao ambigua com o existente: ao mesmo tempo que mascara e legitima a dominacao, apresenta um teor de verdade cujo potencial de realizacao aponta paradoxalmente para alem do que existe. Portanto, e isso e decisivo, ela se poe tambem em tensao com o existente. E por essa razao que uma ideologia em sentido forte exige que os termos de sua promessa sejam levados a serio. Dessa perspectiva, o carater de falsidade da ideologia nao reside na promessa em si de que ela e portadora, mas na forma de apresentacao dessa promessa como algo que supostamente ja teria se efetivado de modo pleno na pratica. Alias, e exatamente esse traco que permite compreender o deslizamento semantico operado nas formacoes ideologicas na passagem da ordem liberal classica para o capitalismo tardio: em sentido forte, uma ideologia requer o procedimento da critica imanente e a sondagem daquilo que impede a realizacao do que promete; em sentido fraco, ao contrario, uma ideologia adere demais ao existente, duplicando-o de modo apologetico no nivel simbolico. A propaganda em principio nao existe para mascarar o que quer que seja ou, se se preferir, existe como veiculo por excelencia da mentira manifesta, na qual de resto (quase?) ninguem mais acredita. O que importa e a naturalizacao e a entronizacao do existente como algo absolutamente instransponivel. "There is no alternative." Vai nessa linha a conhecida formula adorniana para o imperativo categorico na sociedade de consumo de massa, cuja ideologia se apresentaria como mera mascara mortuaria do horror predominante: "converta-se naquilo que de qualquer modo voce ja e." Ao mesmo tempo que indica claramente o sentido apologetico de confirmacao tautologica do existente, a formulacao do paradoxo no modo imperativo expressa tambem quanta dominacao e quanto sofrimento sao requeridos no trabalho de producao dessa conformidade.

Nesse cenario, portanto, tudo parece sinalizar, com Adorno, para o nao-lugar da ideologia em sentido forte e da critica como critica imanente no "mundo totalmente administrado". Para dizer de outro modo: ainda seria possivel, e em que termos, pensar o presente como possibilidade de realizacao de seu melhor potencial? Que forcas sociais e criterios analiticos poderiam se apresentar para a tarefa da critica da sociedade contemporanea, uma sociedade em que, ate segunda ordem, a dialetica teria entrado em ponto-morto sine die? Como se sabe, esse o beco-sem-saida em que a tradicao de teoria critica do marxismo ocidental, especialmente a de extracao adorniana, teria se enredado e o ponto de partida para a reconstrucao do materialismo historico empreendida pelo projeto habermasiano de renovacao da critica da sociedade.

Isto posto, a aposta muito arriscada que pretendo apenas indicar aqui, e que por certo mereceria melhor especificacao em outra oportunidade, e a de que, contra as aparencias, a critica da sociedade contemporanea talvez pudesse encontrar um lugar muito privilegiado de pesquisa e renovacao exatamente no projeto teorico que quase sempre se toma como antipoda da teoria da acao comunicativa, nada mais nada menos que a nova teoria dos sistemas sociais desenvolvida por Niklas Luhmann.

Esquematizando ao maximo: partindo das diferencas que fazem diferenca, esse projeto teorico concebe a sociedade como um sistema social autopoietico, ao mesmo tempo fechado e aberto, que opera recursivamente com base em seus proprios elementos. Ao indicar os seus limites em relacao a seu ambiente (incluindo-se ai o individuo), e diferenciar-se em sistemas parciais altamente especializados que tambem constroem a sua identidade em relacao a seus respectivos ambientes (incluindo-se ai os demais sistemas parciais), a sociedade moderna acenaria com a possibilidade, historicamente inedita, do primado da diferenciacao funcional.

Absorvendo e reduzindo complexidade para, paradoxalmente, aumentar complexidade estruturada em seus proprios termos, os diferentes sistemas parciais que compoem a sociedade moderna formariam uma especie de mosaico de distintas racionalidades. Ao superar o primado de padroes historicos de diferenciacao hierarquica, geografica e segmentaria (que, no entanto, evidentemente nao desaparecem), a sociedade moderna se constituiria num arranjo social sem centro, nem vertice (policontextualidade).

O individuo, como sintese de vida e consciencia, vive por assim dizer a aventura da navegacao incerta dessa policontextualidade: as distintas abstracoes que o reconstroem no interior de cada sistema parcial (como consumidor, contribuinte, eleitor, paciente, aluno etc. certamente nao fazem jus a complexidade do individuo tomado como ser concreto, mas ao mesmo tempo essas abstracoes lhe ofereceriam algo como a possibilidade de navegar um ambiente social contingente e diversificado que (i nao seria capaz de reduzir sem sobra o individuo ao todo social; (ii) nem muito menos de operar a generalizacao da reducao abstrata do individuo a partir da imposicao unilateral de um unico criterio sobre os demais.

Vistas as coisas dessa perspectiva, a nova teoria dos sistemas sociais poderia ser eventualmente pensada como, ao mesmo tempo:

  1. uma redescricao sociologicamente sofisticada da sociedade moderna, em razao do alto teor de verossimilhanca empirica e potencial heuristico que a caracteriza (por comparacao, bastaria pensar apenas por um momento em algumas das formulacoes mais eloquentes de um Habermas...

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