O novo CPC e o recurso de embargos de divergência no STJ

AutorMauro Luiz Campbell Marques
Páginas107-122

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1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 concebeu o Superior Tribunal de Justiça para, entre outras notáveis atribuições, pacificar a interpretação da legislação infraconstitucional em todo o país. A nobre função, em regra, é exercida nos julgamentos dos recursos especiais e agravos em recursos especiais pelos órgãos julgadores do tribunal da cidadania.

A legislação processual estabeleceu os embargos de divergência como o principal mecanismo de uniformização da jurisprudência interna no âmbito das cortes superiores. Assim, são cabíveis nos casos em que, embora a situação fática e jurídica dos julgados seja a mesma, haja divergência na interpretação da legislação aplicável à espécie entre seus órgãos julgadores.

Recentemente apresentei artigo jurídico denominado “Aspectos de admissibilidade dos embargos de divergência no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” na obra coletiva O Papel da Jurisprudência do STJ (coordenação Isabel Gallotti, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014). Nesse trabalho, contextualizei e ressaltei a importância dos embargos de divergência como instrumento processual para concretizar e estabilizar a jurisprudência.

Em tempos de necessária racionalização do sistema recursal brasileiro, é comum o questionamento pelos operadores do direito a respeito da função dos embargos de divergência nos tribunais superiores. Na esfera do Superior Tribunal de Justiça, constituem eles instrumento de inegável valor para o cumprimento da sua missão constitucional, a pacificação da interpretação da legislação infraconstitucional brasileira.

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Entretanto, não é possível falar em uniformização de jurisprudência quando órgãos julgadores de um tribunal divergem sobre o mesmo tema. A instabilidade de decisões judiciais, com a aplicação de teses antagônicas para casos semelhantes, principalmente na esfera de atuação de uma corte uniformizadora, atinge diretamente o princípio da segurança jurídica.

O direito federal é um só, porém analisado dentro do contexto de cada Estado-membro e de cada região – dotados que são de características próprias e diversas entre si –, cumpre ao Superior Tribunal de Justiça zelar pela aplicação uniforme do direito federal infraconstitucional em âmbito nacional.

Evidentemente, o conflito entre entendimentos é necessário à evolução das teses debatidas no Judiciário, mas a mudança de orientações jurisprudenciais consolidadas no âmbito dos tribunais superiores deve ser tratada como exceção, para proteger a confiança depositada pelos jurisdicionados e operadores do direito nas decisões proferidas pelos órgãos máximos do Poder Judiciário.

A preservação da legislação federal infraconstitucional é corolário da estabilidade das decisões do tribunal da cidadania, sob o risco de transmitir interpretações difusas e desconexas que dificultem ou confundam os opera-dores do direito e a própria sociedade. A mensagem dirigida ao público alvo deve ser clara, direta e, preferencialmente, linear em seus comandos.

Nas palavras de Athos Gusmão Carneiro2, a “uniformidade das decisões dos tribunais e dos juízes é altamente conveniente à segurança jurídica e, pois, ao interesse público. Aos cidadãos e às pessoas jurídicas, postos em situ-ação de conflito potencial ou efetivo, interessa saber, e muito, as consequências de determinadas condutas na vida pessoal e no âmbito dos negócios. A instabilidade na aplicação do direito é fator de indecisão, e conspira contra o progresso de uma comunidade”.

Apesar da função uniformizadora da interpretação infraconstitucional atribuída ao Superior Tribunal de Justiça, é comum a ocorrência de significativo número de teses divergentes entre os seus órgãos fracionários. Nesse contexto, apesar da introdução da sistemática de julgamento do art. 543-C do CPC, os embargos de divergência ainda guardam efetiva relevância.

Merecem especial atenção as palavras de Araken de Assis3:

O rol dos recursos dispensáveis decerto não inclui os embargos de divergência. Ao contrário, tal meio de impugnação desempenha função relevante e

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imprescindível. Há que existir remédio para debelar a divergência intestina dos tribunais superiores. A incerteza da jurisprudência proveniente dos órgãos encarregados de uniformizar a interpretação e aplicação das normas constitucionais e federais repercute, qual efeito dominó, em todas as esferas da Justiça.

O mau uso dos embargos de divergência, segundo as estatísticas disponíveis, que indicam a rejeição da larga maioria por motivos inerentes à admissibili-dade, não é problema que lhe seja específico. A interposição de recursos fadados ao desprovimento, por espírito de emulação, constitui fenômeno geral e muito mais intenso nas instâncias ordinárias.

É necessário lembrar que o julgamento proferido nos embargos de diver-gência gera efeitos apenas entre as partes, mas serve indiscutivelmente como paradigma jurisprudencial sobre os temas nele enfrentados. O precedente firmado no recurso remete à pacificação da tese jurídica debatida e à necessi-dade de aplicação do entendimento em casos análogos.

Nelson Nery Júnior e Rosa de Andrade Nery4 afirmam que as decisões dos tribunais superiores proferidas em embargos de divergência têm duas eficácias subjetivas: a) quanto ao objeto litigioso (Streitgegenstand), a lide fixada pelo recorrente, as decisões vinculam e obrigam somente as partes entre as quais foi proferida, não beneficiando nem prejudicando terceiros (CPC 472); b) quanto à tese jurídica nelas fixada, as decisões fixam paradigmas para o futuro, que não vinculam nem obrigam terceiros, mas servem de parâmetro para juízes e tribunais decidirem, com implicação inclusive no juízo de admissibilidade de recurso (v.g., CPC 518 § 1.º e 557 caput) ou de remessa necessária (CPC 475 § 3.º), e até no juízo de mérito de recurso (v.g., CPC 557 § 1.º-A).

Por outro lado, os projetos aprovados no Congresso Nacional (PLS 166/2010, aprovado pelo Senado Federal, e o PL 8.046/2010, aprovado pela Câmara dos Deputados), que estabelecem o novo Código de Processo Civil, propõem significativas alterações no recurso de embargos de divergência, no tocante ao seu cabimento e aspectos de admissibilidade.

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é estabelecer o confronto entre a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e as inovações sugeridas no novo Código de Processo Civil5 (redação do PL 8.046/2010) em relação aos embargos de divergência.

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2. Hipóteses de cabimento dos embargos de divergência no âmbito do STJ e a ampliação prevista pelo novo CPC

O art. 546, I, do atual Código de Processo Civil6 prevê o cabimento de embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça, em face de julgados de turma que divirjam do julgamento de outra turma, da seção ou da Corte Especial, em sede de recurso especial ou agravo de instrumento/agravo (art. 544 do CPC) que tenham apreciado o mérito do recurso especial7, bem como em agravo regimental que julgue o recurso especial.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça proclamou, em inúmeras oportunidades, o descabimento de embargos de divergência quando não ocorrer o exame do mérito do recurso especial8 e que “não se admite a inter-posição contra decisum que não abrangeu o mérito do recurso especial, tampouco para o fim de corrigir eventual equívoco do julgado na sua má interpretação sobre a controvérsia versada”9.

Em síntese, a jurisprudência do tribunal da cidadania está consolidada no sentido de somente admitir embargos de divergência em julgado de turma que tenha analisado o mérito do recurso especial, na aplicação de direito material ou do direito processual.

O novo Código de Processo Civil preserva o atual ordenamento processual ao dispor no art. 1.056, I e § 2º (respectivamente): “É embargável o acórdão de turma que em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito”; “A divergência que autoriza a interposição de embargos de divergência pode verificar-se na aplicação do direito material ou do direito processual.”

Entretanto, a nova proposta de ordenamento processual apresenta uma série de alterações em embargos de divergência, ampliando significativamente as hipóteses de cabimento e seus limites de cognição.

O doutrinador Cassio Scarpinella Bueno10, ao analisar os projetos do novo Código de Processo Civil que tramitaram no Congresso Nacional, afirma que os “dispositivos ampliam as hipóteses de cabimento dos embargos de divergência previstas no atual art. 546. Trata-se, no particular, de iniciativa louvável para ampliar a discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça – e sua constante atualidade e atualização – sobre questões de índole material e processual que, como querem ambos os Projetos, servirão, em última análise, como verdadeiros indexadores da jurisprudência nacional”.

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A primeira grande alteração a ser analisada está contida no inciso IV do art. 1.056, que admite o cabimento de embargos de divergência “nas causas de competência originária”. A inovação sugerida permite algumas considerações de ordem técnica.

A primeira é no sentido de que, salvo o habeas corpus, todos os processos que discutem competência (reclamação e conflito de competência), as ações constitucionais (mandado de segurança, mandado de injunção e habeas data) e as ações originárias (ação...

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