Novos arranjos em psiquiatria da infância e adolescência no Brasil do século XXI: a prevenção e o controle de risco em foco

AutorLetícia Hummel do Amaral
Páginas141-174
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e74912
141141 – 174
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Novos arranjos em psiquiatria da
infância e adolescência no Brasil do
século XXI: a prevenção e o controle
de risco em foco
Letícia Hummel do Amaral1
Resumo
Discutiu-se, neste artigo, a emergência e a disseminação dos saberes especializados em psiquiatria
do desenvolvimento para a infância e adolescência no Brasil. Realizou-se, para tanto, uma inves-
tigação bibliográca e documental – em que se destaca a análise dos relatórios FAPESP anos I e II
(INPD, 2018, 2019) que descrevem suas pesquisas e atividades –, e por meio da qual foi possível
observar que esses novos arranjos em psiquiatria surgem a partir de sua aproximação às neuro-
ciências nas últimas décadas e conguram um modelo teórico cujos fundamentos se assentam
em explicações sobre o desenvolvimento cerebral. Estabelecendo uma agenda de pesquisas com
crianças e adolescentes recrutados diretamente de algumas escolas selecionadas, os especialistas
em psiquiatria do desenvolvimento objetivam identicar cada vez mais precocemente indivíduos em
risco de desenvolver os transtornos mentais e, assim, criar tecnologias diagnósticas e terapêuticas
que atuem no âmbito da prevenção. A análise das iniciativas realizadas por esse grupo de psiquiatras
– pesquisadores na Universidade de São Paulo (UNIFESP), Universidade Federal de São Paulo (USP)
e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – ao longo da última década permite armar
que a legitimação e difusão desse novo paradigma em psiquiatria na sociedade concorre fortemente
para a ampliação da medicalização da infância e do espaço escolar no país.
Palavras-chave: Psiquiatria do desenvolvimento. Prevenção. Controle de risco. Medicalização
da infância.
1 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil. Doutoranda do Departamento de So-
ciologia e Ciência Política da UFSC. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7769-5515. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9202021330413611. E-mail: leticiahummel@hotmail.com
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Letícia Hummel do Amaral
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1 Introdução
Este artigo objetiva analisar a emergência de um novo subcampo em
psiquiatria no Brasil no século XXI: a psiquiatria do desenvolvimento, que
se apresenta como um novo paradigma e cujo marco principal é a inau-
guração do Instituto de Psiquiatria do Desenvolvimento para a Infância e
Adolescência (INPD) em 2009. Conforme especialistas, pesquisas recentes
em psiquiatria e neurociências têm evidenciado que a maior parte dos trans-
tornos mentais tem origem na infância, especialmente no desenvolvimento
cerebral e, assim, sustenta-se ser possível não apenas identicar precocemen-
te indivíduos em risco para transtornos mentais, inclusive durante o período
intrauterino, mas também desenvolver estratégias e tecnologias diagnósticas
e terapêuticas que poderiam atuar no âmbito da prevenção, interrompendo
processos ditos patológicos, antes mesmo da manifestação da doença.
Várias pesquisas têm sido coordenadas no âmbito do INPD desde sua
criação (INPD, 2018, 2019). Para ns deste trabalho, analisa-se a maior e
mais onerosa delas, chamada “Conexão – mentes do futuro” ou Brazilian High
Risk Cohort Study (BHRCS), que envolveu as três universidades vinculadas
ao instituto: Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), Uni-
versidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), e avaliou cerca de 10 mil estudantes2 de 6 a 22 anos de ida-
de, buscando identicar aqueles em risco para transtornos mentais (CAM-
POS, 2019). Tal estudo consiste em uma coorte (pesquisa longitudinal, que
acompanha os participantes ao longo do tempo) de crianças e adolescentes
selecionados nas cidades de São Paulo e Porto Alegre. É digno de nota que
o recrutamento dos participantes para avaliação (n=9.937) tenha sido feito
diretamente junto às escolas de ensino básico das duas cidades, fato preo-
cupante que merece a atenção daqueles que pesquisam a medicalização do
espaço escolar no Brasil. Os relatórios FAPESP anos I e II (INPD, 2018,
2019) nos fornecem alguns dados importantes, tais como o tamanho da
amostra selecionada (n=2.511), as fases da investigação, os métodos de co-
leta, além de dados sobre as diferentes categorias em análise em tal pesquisa.
2 Dado obtido em matéria recente do Departamento de Comunicação da Unifesp sobre a pesquisa em questão.
Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dci/releases/item/4085-projeto-brasileiro-de-psiquiatria-investi-
ga-desenvolvimento-tipico-e-atipico-em-criancas-e-adolescentes
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 46 - Set./Dez. de 2020
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Assim, a partir de um olhar genealógico à luz de Foucault (2006, 2010,
2011) e por meio de pesquisa bibliográca e documental – com destaque
para a análise dos relatórios acima mencionados –, investigou-se a agenda de
pesquisas do INPD, seus fundamentos, objetivos e principais enunciados,
buscando desvelar as rupturas e continuidades em termos teóricos-epistemo-
lógicos que se apresentam no discurso psiquiátrico em perspectiva histórica.
Investigou-se, ademais, a organização interna do INPD, as relações de poder
que permeiam sua constituição, identicando seus principais agentes do dis-
curso e da prática. Assim, também foram tomados como objetos de análise
os projetos e programas realizados ao longo da última década e as estratégias
de disseminação e legitimação dos saberes especializados em psiquiatria do
desenvolvimento na sociedade, sobretudo no universo escolar.
Ressalta-se que é inegável os interesses mercadológicos da indústria
farmacêutica nas pesquisas realizadas no âmbito do INPD. Conitos de
interesse apontam que Bristol, Novartis, Eli-Lilly, Janssen-Cilag, Abott,
Shire, Artes Médicas e Roche apresentam-se como seus mais importantes
nanciadores privados, fornecendo subsídios para pesquisas, programas de
formação médico-continuada, honorários de palestrantes e serviços de con-
sultoria (MIGUEL et al., 2009). Beneciando-se, portanto, de credibilida-
de institucional e amplo nanciamento para suas iniciativas, observou-se
que a consolidação e a disseminação desse novo paradigma em psiquiatria
na sociedade, que a propósito já conseguiu espaço para orientar políticas
públicas, vêm concorrendo fortemente para a ampliação do processo de
medicalização da vida pela psiquiatria, sobretudo no domínio da infância.
2 Emergência da psiquiatria do desenvolvimento
no Brasil
Anos antes da inauguração do Instituto Nacional de Psiquiatria do
Desenvolvimento para a Infância e Adolescência (INPD), já estava em
pauta, no campo psiquiátrico, a necessidade de se fortalecer os estudos e
a formação prossional especializada em psiquiatria da infância e adoles-
cência. Em publicação do ano 2000 (ROHDE et al., 2000), por exemplo,
chama-se a atenção para novos estudos epidemiológicos internacionais que
indicavam que de 10 a 15% das crianças no mundo seriam portadoras de

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