Os 'Novos Danos' à Pessoa Humana Decorrentes de Práticas Abusivas

AutorPastora do Socorro Teixeira Leal
Páginas300-313

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1. Introdução

Em face da irradiação dos preceitos constitucionais nas relações privadas, em especial as laborais, o princípio da dignidade da pessoa humana passou a exigir maior proteção aos bens, aos interesses, aos direitos e às relações jurídicas cujo conteúdo esteja vinculado à necessidade de concretização de respeito ao referido princípio.

Amplia-se, assim, a exigência de cumprimento de regulações jurídicas tutelares da vulnerabilidade humana e nesta senda aparece a categoria a possibilidade de reconhecimento de “novos danos” como sendo um dos mecanismos aptos à consecução dessa finalidade.

Pensar os “novos danos” pressupõe uma reformulação de paradigma do pensamento jurídico com o objetivo de atender às novas demandas decorrentes de matriz regulatória calcada na proeminência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Esta exigência coaduna-se com a necessidade de pensar os fenômenos jurídicos de forma complexa. Uma das vias para isso é o “diálogo de fontes” que pressupõe a articulação coerente do sistema jurídico, a partir da consideração de sua unidade axiológica sustentada em princípios inafastáveis como o da dignidade da pessoa humana, fundamento do ordenamento jurídico brasileiro.

Os “novos danos” podem ser vistos sob vários ângulos, que vão desde a ampliação do conteúdo das possibilidades de novas categorias danosas e necessidade de contenção do abuso do poder privado, em especial do econômico, em virtude da cláusula geral de tutela da pessoa humana, até o reconhecimento ampliado de danos transindividuais.

De outra banda, urgem construções teóricas sobre o tema para não deixar que sua efetivação fique por conta e dependa exclusivamente do longo e controverso caminhar da jurisprudência.

Investigar os “novos danos” pressupõe correlacioná-los com práticas abusivas, cujo exemplo mais destacado é a do dumping social, que pode se manifestar, por exemplo, em contratos laborais e consumeristas nos quais um dos polos é sujeito ou categoria vulnerável, jurídica, social e econômica.

Pesquisar temática complexa e controversa como a dos “novos danos”, ampliação da possibilidade de novas categorias de danos, parte da premissa de que é imprescindível tornar concretas e efetivas as normas tutelares de proteção em face da vulnerabilidade da pessoa humana em seus diversos planos jurídicos, internacional e nacional.

A relevância de reforço de tutela da pessoa humana em sua perspectiva existencial pressupõe o diálogo de fontes jurídicas internacionais e nacionais e a superação da dicotomia público e privado, bem como justifica-se pela necessidade da proteção multinível dos direitos humanos, o que equivale ao reconhecimento da possibilidade de controle de convencionalidade pelo judiciário no plano interno nos casos de danos à pessoa humana, pela via do dano moral, inserido no texto constitucional como garantia fundamental (art. 5º, incisos V e X), além da possibilidade de controle de constitucionalidade, uma vez que o núcleo de tutela é a dignidade do ser humano que se irradia por todo o sistema jurídico.

2. Os “novos danos” à pessoa humana: um conceito em construção

Os danos à pessoa humana sempre estiveram no rol dos temas jurídicos de maior complexidade, quer quanto a sua configuração, quer quanto a sua quantificação.

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Prosperou no discurso jurídico denominar-se de danos morais os danos à pessoa humana, esfera do ser, em contraposição aos danos materiais, esfera do ter.

Neste trabalho consideramos que os danos à pessoa humana equivalem ao dano moral, em sentido amplo, doravante analisado.

Muito embora o termo “dano moral” tenha sido positivado no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1988, prestes a completar trinta anos, trata-se de categoria jurídica cujo conteúdo ainda está em construção, quer na teoria, quer na prática dos tribunais.

Entre os desafios para a construção do núcleo conceitual do dano moral estão a insuficiência legislativa e teórica, o que provoca certa arbitrariedade na delimitação de seus contornos pelo judiciário brasileiro.

No sistema legal brasileiro, o termo “dano” não está definido pelo legislador que o remete à técnica das claúsulas gerais, cuja determinação compete ao judiciário. Esta abertura sistêmica sustenta-se na impossibilidade de o legislador conseguir tipificar todos os casos de danos, especialmente de danos morais.

Embora a definição de dano material também se reporte à técnica da claúsula geral, desde o Código Civil de 1916, a legislação brasileira já enunciava alguns critérios: danos emergentes que correspondem ao que a vítima perdeu e lucros cessantes referentes ao que deixou de auferir em face da privação do bem danificado ou perdido. No Código Civil vigente, mencionados parâmetros foram reiterados e encontram-se previstos no art. 403 que estabelece: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

Os parâmetros acima reportados não são suficientes para a identificação e a mensuração do dano moral. Como se pode constatar, não há pressupostos legais aptos a guiar a configuração do dano moral.

Tradicionalmente, a identificação do dano pressupõe a violação a bem jurídico. No que tange à “ameaça” a bem jurídico, há sérias controvérsias doutrinárias quanto à possibilidade de configurar dano moral1.

Quanto a isso, a doutrina francesa do mise en danger2 vem auxiliar, uma vez que a exposição ao risco, qual seja a ameaça, é suficiente para configurar o dano.

Assim, tem-se duas perspectivas sob as quais é possível vislumbrar a configuração do dano: uma naturalística, que pressupõe a demonstração empírica da violação e outra normativa, que considera haver dano não somente diante da violação como também quando houver exposição ou ameaça ao bem ou ao interesse tutelado pelo ordenamento jurídico. Na seara laboral, de forma intuitiva até, tem se reconhecido o dano de ameaça, como no caso de bancário que é obrigado a transportar valores. Assim, haverá dano mesmo que não haja assalto, sendo suficiente a mera exposição da integridade física e psíquica do trabalhador.

No que tange à demonstração da ocorrência do dano material sua identificação é mais simples, uma vez que macula bens jurídicos cuja existência pode ser demonstrada pelas vias probatórias tradicionais. Contudo, em se tratando de dano moral o problema se complexifica. Com efeito, a ameaça ou violação de bens ou de interesses jurídicos de cunho moral é bem mais difícil de precisar, até mesmo porque o desafio consiste em identificar quais sejam esses bens e interesses para, em seguida, avaliar como se dão os contornos da ameaça ou da violação a eles.

Um outro obstáculo reside naquilo que denominamos de “banalização do mal” que decorre tanto da distorção do imaginário popular quanto do senso comum dos juristas. Neste sentido, é comum encontrar-se decisões considerando que não se pode exagerar no reconhecimento de danos morais, uma vez que a assunção de perdas e de dissabores é natural na sociedade. Exemplo disso é a tese do “mero aborrecimento”. Quanto a essa temática, já nos posicionamos no sentido de que o sistema legal não faz qualquer ressalva no sentido de que mesmo que violados interesse juridicamente tutelados não haveria dano moral.

Com efeito, a tese do mero aborrecimento, em uma perspectiva ampliada, repassa os ônus dos dissabores para as vítimas desonerando o mercado, que passa a não recorrer a meios que diminuíam ou extingam as situações de dissabores. Incentiva-se, assim, a ocorrência destas violações. É uma questão de mercado: aquele que não tomou atitudes concretas para diminuir as situações dos ditos “dissabores” gastou menos e tem mais competitividade no mercado de consumo, pois isto se reflete no seu preço. Tendo maior competitividade do que aquele que gasta para evitar os “meros dissabores”,

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e ganhando o mercado de preços com isto, o efeito imediato é o de extinguir ou de incentivar com que o fornecedor diligente mude sua postura e passe a agir no sentido de violar os direitos dos consumidores, equivale à figura denominada de dumping social tutelado. O mesmo entendimento aplica-se aos agentes econômicos que lucram com a degradação do trabalho humano.

Outro aspecto problemático resulta do fato de que a legislação sobre responsabilidade civil sempre cuidou apenas dos danos materiais, o que dificulta sobremaneira tratar dos delineamentos jurídicos dos danos morais.

Corrobora a assertiva supra, o fato de que o Código Civil, embora seja um diploma de recente vigor (2002) nada previu de consistente que pudesse auxi-liar no delineamento do dano moral. Referido diploma normativo, como já destacado acima, limitou-se a tratar dos requisitos clássicos para a configuração do dano material (art.403 supratranscrito) limitando-se apenas a positivar o termo “dano moral” no art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, sem oferecer, contudo, qualquer parâmetro para seu delineamento, tarefa que por essa razão passou a incumbir à doutrina. Ocorre que tampouco os doutrinadores desincumbiram-se a contento desse mister, sendo muito pontual e limitada a literatura jurídica sobre a matéria.

Tudo o que antes foi dito revela não somente a importância, mas também a relevância de discutir e buscar estruturar o que seja o conteúdo conceitual e a extensão do dano moral como categoria jurídica, especialmente por se tratar de mecanismo de tutela da dignidade da pessoa humana. Acentua ainda mais essa necessidade o fato de as demandas judiciais terem recrudescido vertiginosamente...

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