Novos olhares sobre a responsabilidade civil na saúde: autonomia, informação e desafios do consentimento na relação médico-paciente

AutorGabriel Schulman e Vitor Almeida
Ocupação do AutorAdvogado/Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas21-37
NOVOS OLHARES SOBRE A
RESPONSABILIDADE CIVIL NA SAÚDE:
AUTONOMIA, INFORMAÇÃO
E DESAFIOS DO CONSENTIMENTO NA
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
Gabriel Schulman
Advogado. Doutor em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. (UFPR). Especialista em Direito
da Medicina pela Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito (UFPR). Professor
da Universidade Positivo, onde coordena a Pós-Graduação em Direito e Tecnologia
e nos cursos de especialização da PUC-Rio e USP. Membro da Comissão de Direito à
Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR) e do Comitê Executivo da Saúde
do CNJ. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/
UFRRJ). Professor dos cursos de especialização do CEPED-UERJ, PUC-Rio e EMERJ.
Vice-diretor do Instituto de Biodireito e Bioética (IBIOS). Membro do Instituto Brasileiro
de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Pós-doutorando em Direito Civil pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
É bom promover debates de dimensão curativa das plantas
medicinais com ação educativa sem que haja desavenças
para evitar doenças receitar ação preventiva. (Zé Antonio)1
Sumário: 1. Autonomia, informação e consentimento na era da medicalização: perspectivas
a partir de novos riscos e danos autônomos – 2. Autonomia do paciente, participação ativa e
consentimento informado: novos horizontes – 3. Desaos que brotam no campo da respon-
sabilidade civil médica – 4. Referências
1. AUTONOMIA, INFORMAÇÃO E CONSENTIMENTO NA ERA DA
MEDICALIZAÇÃO: PERSPECTIVAS A PARTIR DE NOVOS RISCOS E DANOS
AUTÔNOMOS
O paciente Luis2 sofreu traumatismo craniano. Após os tratamentos iniciais, sua
recuperação alcançou sensível avanço. Luís recuperou as habilidades de falar e caminhar.
1. ZÉ ANTONIO. Medicina popular decantada em cordel. RIO DE JANEIRO. Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde
– Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Disponível em:
cina-popular-decantada-em-cordel.html>. Acesso em: 05 dez. 2019.
2. Adotou-se um nome f‌ictício em atenção a promoção da privacidade.
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Para tratar os tremores que permaneciam, o especialista recomendou um procedimento
complementar, com 2 horas de duração e anestesia local. A despeito do que havia sido
acordado entre as partes, Luis foi surpreendido, posteriormente, ao descobrir que havia
sido submetido a procedimento diverso, mais complexo do que havia sido acordado.
A questão foi levada ao Poder Judiciário. Em sede pericial, avaliou-se não haver falha
na técnica empregada para o procedimento, ou, nos termos dos autos, não houve “erro
médico”. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal considerou que não seria possível
atribuição do dever de reparar ao médico, diante da inexistência de conduta culposa na
realização do procedimento.
Em sede de recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça condenou o médico e o
hospital à reparação por danos morais, no montante de R$ 200.000,00, dos quais metade
ao paciente e metade aos seus familiares3. A Corte reconheceu o acesso à informação
como direito autônomo, pressuposto indispensável para o exercício da autonomia do
paciente. Nesse sentido, entendeu-se, no caso em concreto, que a responsabilidade
civil médica restava conf‌igurada pela violação ao dever de informação. Vale realçar que
a falta de informação específ‌ica impediu o indispensável consentimento qualif‌icado do
paciente. Em acertada decisão, o Tribunal af‌irmou que tal situação ofende o direito à
autodeterminação, em nítida desvalorização da pessoa concretamente considerada por
trás da abstrata f‌igura do paciente.
Este caso disparador oferece importantes ref‌lexões.
O intenso processo de medicalização,4 nos mais diversos aspectos da vida humana,
descortina a questão da preservação e promoção da autonomia na tomada de decisão a
respeito da sua saúde e integridade psicofísica. Em franca ascensão, o discurso biomédico
condiciona a existência humana não somente em corpos debilitados e enfermos, mas
alcança a prescrição de comportamentos individuais e estilos de vida, em nítido movi-
mento de ampliação dos saberes médicos e proliferação das suas práticas interventivas
em domínio individual e coletivo.5
3. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.540.580, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Des. Convocado do TRF 5ª
Região), Rel. p/ Acórdão Min. Felipe Salomão, 4ª. Turma, julg. 02 ago. 2018, publ. 04 set. 2018.
4. CRAWFORD, Robert. Salutarismo e medicalização da vida cotidiana. RECIIS – Revista Eletrônica de Comunicação.
Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 1, 2019, jan./mar., passim. Cf. também BARBOZA, Heloisa Helena. A
proteção da pessoa humana no limiar do Século XXI: o f‌lorescer da biopolítica. In: BARBOZA, Heloisa Helena;
ALMEIDA, Vitor; LEAL, Livia Teixeira (Coords.). Biodireito: tutelas jurídicas das dimensões da vida. Indaiatuba:
Foco, 2021. p. IX-XXIII.
5. O processo de medicalização da vida humana, segundo Heloisa Helena Barboza, constitui “fenômeno social
difuso nas sociedades ocidentais, que se instaurou talvez de modo não deliberado, mas, sem dúvida, def‌initivo”.
Tal processo foi acelerado “no século XX, graças à marcante atuação da biomedicina”. Desse modo, “nascimento,
desenvolvimento e preservação da vida, e mesmo a morte deixaram de ser fatos naturais, transformando-se em
ações médicas, de todo inf‌luentes para o direito. Nascimentos e mortes ocorrem em hospitais, para grande parte
da população brasileira, incluídos os mais carentes. A medicina determina como nascer, quando morrer, como
viver: o que comer, o que fazer ou não, num processo contínuo de acompanhamento do indivíduo, de forma direta
ou indireta, como a que ocorre por meio de campanhas ou orientação pelos meios de comunicação em massa”.
BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes;
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Orgs.). Novas Perspectivas do Direito
Internacional Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 778-779.
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A saúde protagoniza as atenções e passa a ser o foco central das sociedades contem-
porâneas, em nítido movimento que se denominou “healthism”6, que, em certa medida,
inundou o Poder Judiciários com demandas relativas ao bem-estar físico, mental e social,
cujo fenômeno se convencionou designar de “judicialização da saúde”.7
Sob certas concepções, hoje, “ter saúde” ou “ser saudável” não signif‌ica ausência
de doenças, e nem bem-estar físico, psíquico e social. As def‌inições englobam para além
da ausência de sintomas, um agir de acordo com performances e estilos de vida compre-
endidos como vitais no cotidiano para um padrão de “vida saudável”. Abre-se o debate
da saúde não apenas como um direito do cidadão, mas até mesmo como um dever, sob
a ótica de uma transição paradigmática da concepção de saúde a partir das práticas sa-
nitárias atuais ditadas pelo Estado.8
No Supremo Tribunal Federal, a temática foi trazida à pauta no contexto da vacinação
da COVID-19. Para a Corte, com base em interpretação conforme à Constituição do art.
3º, III, d, da Lei nº 13.979/2020, entendeu-se pela possibilidade de impor penalidades a
quem recusar-se a vacinar, desde que com as devidas evidências científ‌icas, critérios de
razoabilidade e proporcionalidade9. Ao mesmo tempo em que reconheceu os impactos
em relação a terceiros, a Corte negou a possibilidade de se implementar a imunização
forçada.10
Tal cenário revela a necessidade indeclinável de garantir a autonomia do paciente
como forma de promover a soberania da pessoa sobre sua própria vida, saúde e corpo,
de modo a afastar intervenções indevidas sobre esfera que se confunde com sua própria
6. O “healthism” ou, em livre tradução, “salutarismo” é termo utilizado “como forma de cristalizar algumas impor-
tantes contradições da nova consciência de saúde e dos movimentos por ela orientados (para um uso anterior,
consulte Irving Zola). Em linhas gerais, salutarismo é def‌inido aqui como a preocupação com a saúde pessoal
como foco primário – muitas vezes ‘o’ principal foco – para a def‌inição e realização do bem-estar. Um objetivo
que deve ser atingido primeiramente por meio da modif‌icação de estilos de vida, com ou sem ajuda terapêutica.
A etiologia da doença pode ser vista como complexa, mas o salutarismo trata do comportamento individual, de
atitudes e emoções como sintomas relevantes que necessitam de atenção”. CRAWFORD, Robert. Salutarismo e
medicalização da vida cotidiana. RECIIS – Revista Eletrônica de Comunicação. Informação & Inovação em Saúde, v.
13, n. 1, 2019, jan./mar., p. 104.
7. Cf. SANTOS, Alethele de Oliveira (Org.). Coletânea Direito à Saúde Dilemas do Fenômeno da Judicialização da
Saúde. Brasília, CONASS, 2018; SCHULMAN, Gabriel; SILVA, Alexandre Barbosa. (Des)judicialização da saúde:
mediação e diálogos interinstitucionais. Revista Bioética – Conselho Federal de Medicina, v. 25, n. 2, p. 290-300,
2017; MAPELLI JÚNIOR, Reynaldo. Judicialização da saúde: regime jurídico do SUS e intervenção na administração
pública. São Paulo: Atheneu, 2017; WANG, DANIEL WEI L.; et. al. Os impactos da judicialização da saúde no
município de São Paulo: gasto público e organização federativa. Revista de Administração Pública v. 48, p. 1191-
1206, 2014.
8. Segundo Fermin Roland Schramm: “Se olharmos não somente os aspectos criticáveis da saúde pública, como a
medicalização do corpo social, mas também – e – dialeticamente – seus aspectos positivos e razoáveis, as atuais
estratégias biopolíticas não podem, sem mais, ser reduzidas à dimensão do autoritarismo biomédico aplicado aos
estilos de vida de indivíduos, grupos e populações. Podem ser vistas, mais corretamente, como uma tensão dialética
entre “uma medicalização do social e do individual” e “uma socialização e individualização da medicina, a qual,
desta maneira, excede a si mesma e se transf‌igura de forma radical”. SCHRAMM, Fermin Roland. A saúde é um
direito ou dever? Autocrítica da saúde pública. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v. 2, n. 2, p. 187-200, 2006,
p. 198.
9. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 6586, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJe: 17.12.2020.
10. Para uma leitura sucinta do tema: SCHULMAN, Gabriel. Vacinação obrigatória: uma ref‌lexão sobre solidariedade
e liberdade na saúde. Gazeta do Povo, 17 de nov. de 2020.
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existência11. Nessa direção, indiscutível que o princípio do consentimento informado,
laconicamente previsto no art. 15 do Código Civil, porém af‌irmado em diversas Reso-
luções de diferentes Conselhos prof‌issionais para casos específ‌icos, como o Conselho
Federal de Medicina, é o vetor para as intervenções médicas, cirúrgicas ou não. Tal prin-
cípio, ancorado na autonomia privada e na dignidade da pessoa humana, exige de forma
essencial a prestação de informação adequada e clara, ajustada para o paciente-alvo.
Sobretudo, a partir de uma leitura constitucional, a compreensão das vulnerabili-
dades é imprescindível para a densif‌icação, especialização e adequação do conteúdo da
informação transmitida para o exercício da autonomia existencial de crianças, adolescen-
tes, pessoas com def‌iciência, mulheres, usuários de drogas, idosos, etc. É fundamental
preservar e promover a autonomia de grupos vulneráveis, cujos riscos à integridade
psicofísica são sempre maiores, reforçando a necessidade de consentimento específ‌ico
na medida de suas vulnerabilidades e em respeito à sua dignidade.12
O binômio esclarecimento-consentimento, já consagrado na esfera dos ensaios
clínicos, amplia sua repercussão como pressuposto de uma nova compreensão das
atividades de autodeterminação sobre o corpo em suas mais variadas projeções – tais
como tratamentos clínicos, autonomia sobre a sexualidade e sobre o gênero, direitos
reprodutivos, entre outros.
Ademais, torna-se ainda mais dramático a obtenção do consentimento nas hipóteses
de incapacidade dos vulneráveis13 ou incompetência para a tomada de decisão a respeito
de procedimento, intervenções ou pesquisas em seu próprio corpo, o que exige redobrada
atenção para se buscar preservar a autonomia possível da pessoa.14
As resistências a um processo de livre consentimento informado e, de modo geral, o
protagonismo do paciente são de variadas ordens, mas residem, sobretudo, na perenidade
do paternalismo médico, que se baseia no domínio exclusivo do saber e da técnica pelos
experts e na crença de uma tomada de decisão sempre mais acertada por parte da equipe
médica em detrimento das escolhas individuais, ainda que acráticas e não compatíveis
com a intangibilidade da vida.
Na medida em que “consentir equivale a ser”15, indiscutível que o trinômio infor-
mação-autonomia-consentimento se transforma em fórmula-base para as relações entre
11. SZASZ, Thomas. Faith in Freedom: Libertarian Principles and Psychiatric Practices. New Brunswick (Estados
Unidos): Transaction Books, 2004; O’NEILL, Onora. Paternalism and partial autonomy. Journal of Medical Ethics,
v. 10, p. 173-178, 1984.
12. Cf., por todos, BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. A tutela das vulnerabilidades na legalidade consti-
tucional. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Orgs.). Da dogmática à
efetividade do Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional – IV Congresso do
IBDCIVIL. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2017, p. 37-50.
13. WONG, Grace Josephine, et al. Capacity to make health care decisions: its importance in clinical practice, Psy-
chological Medicine, v. 29 n. 2, p. 437-446, 1999.
14. Cf., no caso de consentimento para atos na saúde de pessoas com def‌iciência, PEREIRA, Paula Moura Francesconi
de Lemos. Arts. 11 a 13. In: BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor (orgs.). Comentários ao Estatuto da Pessoa
com Def‌iciência à luz da Constituição da República. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 92-102. SCHULMAN, Gabriel.
Consentimento para atos na saúde à luz da convenção de direitos da pessoa com def‌iciência: da discriminação ao
empoderamento. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA. Bruna Lima; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo
(Orgs.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com def‌iciência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 271-297.
15. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti, Roma-Bari, Laterza, 2012, p. 260.
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os prof‌issionais da saúde e pacientes, uma vez que o exercício da autonomia para f‌ins
de saúde e integridade psicofísica depende da informação adequada para um consenti-
mento efetivamente livre e esclarecido. Ao passo que o dever de informar se torna um
padrão de conduta exigido nas relações entre médicos e pacientes, inevitavelmente, a
responsabilidade civil é convocada como ferramenta para compensar os danos sofridos
em razão de intervenções e procedimentos realizados sem o devido consentimento ou
com informações equivocadas ou incompletas.
As transformações em curso atingem o direito de danos e a responsabilidade dos
prof‌issionais da saúde. A ideia de “erro médico” calcada em danos físicos ou psíquicos
causados aos pacientes em razão de condutas culposas, em sentido subjetivo ou psicoló-
gico, cede terreno para a responsabilização civil médica orientada a partir de uma noção
normativa de culpa, ancorada em deveres específ‌icos de conduta prof‌issional a depender
das circunstâncias de cada caso concreto.16
Nesse passo, o dever de informar os pacientes a respeito das intervenções médicas
inscritas em seu corpo é nodal no exercício da autonomia existencial em questões sen-
síveis e limítrofes em um mundo altamente medicalizado e no qual a ideia de saúde é
profundamente supervalorizada. A autonomia do paciente é enaltecida a partir do vetor
fundante da cláusula geral de dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, o respeito
às suas decisões se torna peça-chave a guiar a relação médico-paciente.17
A informação é um dever imputado ao médico e seu efetivo cumprimento depende
de esclarecimentos específ‌icos em relação ao caso da pessoa-paciente, “não se mostrando
suf‌iciente a informação genérica”. O esclarecimento deve ser feito de maneira efetiva,
clara, lastreado em um processo de livre e esclarecido consentimento realizado de forma
pessoalizada18, o que torna sem valor19 a mera obtenção do consentimento de forma
genérica20 (blanket consent).21
16. Conforme leciona Eduardo Nunes de Souza, “[A]af‌irmada sua natureza subjetiva, a análise da responsabilidade
civil do médico exige cautela. Com efeito, o direito civil contemporâneo não se coaduna com o tradicional con-
ceito psicológico de culpa, exigindo, em vez dele, a atenção a standards de conduta, procedimentos-padrão cuja
observância permite evidenciar a conduta diligente do prof‌issional. Tais procedimentos, de difícil tipif‌icação em
abstrato, devem ser extraídos da prática prof‌issional da própria comunidade médica, conduzindo o julgador a
um imprescindível diálogo com especialistas. O desaf‌io atual, portanto, consiste na busca de mecanismos para
harmonizar o parecer do perito médico diante do caso concreto e o juízo realizado pelo hermeneuta, a quem cabe
juridicizar e conferir segurança à aplicação das normas e procedimentos prof‌issionais”. SOUZA, Eduardo Nunes
de. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 2, abr.-jun./2013.
Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Souza-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf. Acesso
em 26 dez. 2019.
17. Cf. PEREIRA, Paula Moura Francesconi Lemos. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do paciente e a
responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Sobre o consentimento
para atos de f‌im de vida, conferir: DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 4ª ed. Indaiatuba: Foco, 2018. p. 14 e ss
18. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de; TEIXEIRA. Eduardo Didonet. Consentimento livre, dignidade e saúde pública:
o paciente hipossuf‌iciente. In: RAMOS, Carmen Lucia Silveira; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena
et al. (orgs.) Diálogos sobre Direito Civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar,
2002.
19. CURRAN, William Public health and the law. Informed consent and blanket consent forms. American journal of
public health, Jun; 1971, v. 61, n. 6, p. 1245-6.
20. ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil na área médica. Actualidad Jurídica Ibero-
americana, v. 8, p. 373-420, 2018. p. 387.
21. Para resgatar o caso com o qual se iniciou este estudo, vide item 5 da ementa: “Haverá efetivo cumprimento do
dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especif‌icamente ao caso do paciente, não se
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O presente trabalho se debruça justamente sobre os (novos) contornos e desaf‌ios
da responsabilidade civil médica em razão da violação do princípio do consentimento
informado, expressão da autonomia existencial do paciente nas relações médicas.
2. AUTONOMIA DO PACIENTE, PARTICIPAÇÃO ATIVA E CONSENTIMENTO
INFORMADO: NOVOS HORIZONTES
How does your patient, doctor?
DoctorNot so sick, my lord,
As she is troubled with thick coming fancies,
That keep her from her rest.
MACBETH
Cure her of that.
Canst thou not minister to a mind diseased,
Pluck from the memory a rooted sorrow,
Raze out the written troubles of the brain
And with some sweet oblivious antidote
Cleanse the stuff’d bosom of that perilous stuff
Which weighs upon the heart?
Doctor
Therein the patient
Must minister to himself.22
Se, no estágio atual, encontram-se superados não apenas a soberania da decisão do
prof‌issional da saúde, como também a concepção do consentimento como mera forma-
lidade, os passos seguintes são tão importantes, quanto nebulosos.
A partir do caso inicialmente apresentado, em que o paciente Luís não teve a opor-
tunidade de compreender para que pudesse, de forma adequada, consentir, resta claro
que a falha na prestação de informações é fonte autônoma do dever de reparar. Indo mais
além, é preciso ter em conta que a consagração do binômio esclarecimento-consenti-
mento atrai novas questões, tais como os critérios que sinalizam a adequada prestação
das informações, os meios de demonstração do consentimento, a natureza do dever de
informar, a existência ou não de relevância da prestação do tratamento consistir obri-
gação classif‌icada como de meio ou de resultado, a diferenciação entre procedimentos
estéticos e estritamente terapêuticos, a personalização para pacientes com singularidades
em razão de idade, capacidade cognitiva, maturidade, sofrimento psíquico, entre outros.
Há questões complexas também sobre a possibilidade (e os limites) da recusa23 a
procedimentos, a imposição de tratamento24, dispensa do consentimento, ou mesmo a
mostrando suf‌iciente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o
consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado”. BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.540.580, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Des. Convocado do TRF 5ª Região),
Rel. p/ Acórdão Min. Felipe Salomão, 4ª. Turma, julg. 02 ago. 2018, publ. 04 set. 2018.
22. SHAKESPEARE, William. Macbeth. Disponível em: . Acesso em
25 nov. 2019.
23. Como apontam Buchanan e Brock, faz-se necessário levar em conta o conf‌lito entre autodeterminação e bem-es-
tar, já que pode haver um conf‌lito entre a proteção do direito do paciente decidir e o interesse na tutela da saúde
do paciente. BUCHANAN, Alan; BROCK, Dan. Deciding for Others: The Ethics of Surrogate Decision Making.
Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p. 319.
24. Consinta-se referir: SCHULMAN, Gabriel. Saúde mental, drogas e internação forçada. Indaiatuba: Foco, 2020.
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renúncia ao direito de receber informações25. Também é preciso pensar sobre os dife-
rentes modelos de relação paciente-médico, diferentes concepções de autonomia e de
modelo de deliberação do processo de consentimento para atos em saúde. Embora nem
todas as questões possam aqui ser aprofundadas, a seguir, procura-se apresentar alguns
elementos que possam contribuir para uma ref‌lexão sobre o tema.
No campo da Telemedicina, de maneira interessante a Resolução do Conselho Re-
gional de Medicina do Ceará n. 56/2020 def‌ine a necessidade de se indicar a “plataforma
utilizada para comunicação, possibilidade de gravação e arquivamento da consulta, ima-
gens e outros documentos”26. O cuidado sobre os mecanismos de transmissão de dados
pessoais, além de atenderem ao direito ao corpo e ao consentimento, harmonizam-se
com o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, do direito fundamental à prote-
ção de dados pessoais e da autodeterminação informativa27, com uma dimensão muito
mais ampla do que o tradicional sigilo prof‌issional inerente às prof‌issões da saúde, cujo
conteúdo se traduz, sobretudo, em um dever de guardar para si a informação.
Com base nos elementos usualmente oferecidos pela literatura médica e jurídica,
pode-se estabelecer como elementos essenciais para a prestação do dever de informar
o esclarecimento correto acerca dos riscos envolvidos, das alternativas possíveis e dos
efeitos de cada procedimento médico. A partir desses elementos, é possível estabelecer
um conjunto de perguntas que podem (ou eventualmente devem) estar presentes como
parte do processo de informação para que seja devidamente preenchido o dever de
esclarecer. Entre as possíveis questões a serem enfrentadas, sugere-se: Qual o impacto
de um certo procedimento? Quais os riscos de sua realização? Quais as consequências
de um adiamento? Há alternativas razoáveis? Há efeitos colaterais? Qual o tempo de
recuperação? Haverá restrições a qualidade de vida? Qual o prognóstico usual? Quais os
cuidados necessários no pós-operatório? Enf‌im, quais as vias e perigoso em cada caso?
A adoção de modelos fechados pode também não oferecer uma resposta completa
para as questões propostas. Nesse sentido, deve-se ter em conta também que há diferentes
modelos de relação médico paciente, com variações de aspectos tais como os objetivos
do médico na interação, as obrigações do prof‌issional de saúde, o papel atribuído aos
valores de paciente e a distintas concepções sobre autonomia do paciente.28
Ref‌letir sobre tais questões é importante para que não se promova a superação
apenas do consentimento como ato formal, mas também do próprio dever de informar.
Uma melhor def‌inição desses aspectos se faz necessária, o que envolve avaliar a
fundamental mudança em curso da própria relação paciente-médico. Mesmo que timi-
25. O “exercício do direito de não-saber deixará de ser considerado um gesto positivo excepcional, que carece de
documentação”. OLIVEIRA, Guilherme de Nota sobre a informação para o consentimento (a propósito do Ac. do
STJ de 09.10.2014) / Guilherme de Oliveira Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, a.12
n.23-24 (2015), p.149-153. p. 152.
26. BRASIL. Resolução n. 56/2020 do Conselho Regional de Medicina do Ceará. Dispõe sobre o atendimento médico por
Telemedicina durante a pandemia de SARS-CoV2/COVID-19. DOU: 03.04.2020.
27. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 6387. Relª. Minª. Rosa Weber. Tribunal pleno. DJe: 11.11.2020.
28. Tais critérios são propostos por EMANUEL, Ezekiel J; EMANUEL, Linda L. The Physician-Patient Relationship,
Journal of the American Medical Association – JAMA, v. 267, n. 16, April, 1992, p. 2221-2226.
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damente, observa-se um gradativo fenômeno de superação do paternalismo médico29
hipocraticamente considerado – cujo desiderato era o de sempre tomar decisões no lugar
do paciente – para ceder espaço a uma relação dialógica, na qual convoca-se o paciente
a uma participação ativa na tomada de decisões a respeito da sua vida e saúde.30
Se, por um lado, a centralidade do prof‌issional de saúde resta superada, aclarar a
maneira como ocorrerá a colaboração entre paciente e médico é uma tarefa que preci-
sa ser enfrentada. Nas palavras de Ronald Dworkin, o paternalismo consiste em uma
“interferência na liberdade de ação do indivíduo, justif‌icada por razões que se referem
exclusivamente ao bem-estar, ao benefício, à felicidade, às necessidades, aos interesses
ou valores da pessoa coagida”31. Uma de suas facetas se expressa no chamado paterna-
lismo médico, que dominou a relação médico-paciente nos últimos tempos e ainda se
encontra presente na formação dos prof‌issionais médicos.32
O enfraquecimento da ética paternalista no campo biomédico e, por consequência,
a prática do consentimento informado como expressão da autonomia de pacientes é
recente nas rotinas dos serviços de saúde33. O respeito aos pacientes e a sua vontade é o
29. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil,
Coimbra, Coimbra Editora, 2004.
30. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, Corpo e Autonomia Privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
31. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 156.
32. Dentre as críticas ao consentimento informado do ponto de vista da área médica, vale transcrever: “Clinicians
critical of the doctrine of informed consent (or informed choice, which is a more meaningful expression) might argue
that there is not enough time to spend talking about personal values and patient preferences when there are lives to be
saved and operations to be performed. Clinicians can also argue that valuable clinical time should not be spent discussing
things which patients do not need to know and are unlikely to understand. These arguments may have some validity,
but they should not be used as an excuse for failing to involve patients in their care. Time constraints are an everyday
reality in the business of providing patient care, and what may be advisable is a sensible policy on delegating all or part
of the process of seeking patients’ consent (provided the person appointed to the task has the appropriate knowledge).
Affording the luxury of extensive consultations with senior staff would be counterproductive if ultimately it resulted in
denial of care or unnecessary delays for other patients further down the line”. WORTHINGTON, R. Clinical issues on
consent: some philosophical concerns. Journal of Medical Ethics, n. 28, p. 377-80, 2002, p. 378. Em tradução livre:
“Críticos da doutrina do consentimento informado (ou escolha informada, que é uma expressão mais signif‌ica-
tiva) podem argumentar que não há tempo suf‌iciente para falar sobre valores pessoais e preferências do paciente
quando há vidas a serem salvas e operações a serem realizadas. Os médicos também podem argumentar que um
valioso tempo não deveria gasto para discutir aspectos que os pacientes não precisam compreender e dif‌icilmente
entenderão. Esses argumentos podem ter alguma validade, mas não devem ser usados como desculpa para não
se envolver os pacientes nos cuidados com sua saúde. As restrições de tempo são uma realidade cotidiana na
atividade de prestação de atenção à saúde do paciente, e o que pode ser recomendável é uma política sensata para
delegar todo ou parte do processo de busca do consentimento dos pacientes (desde que a pessoa nomeada para
a tarefa tenha o conhecimento adequado). Proporcionar o luxo de consultas longas com funcionários seniores
seria contraproducente se, em última análise, resultasse na negação de atendimento ou atrasos desnecessários
para outros pacientes na f‌ila”.
33. De acordo com Vera Mincoff Menegon, as trajetórias entre o consentimento informado e as rotinas de serviços
de saúde “mostram o entrelaçamento entre os campos biomédico, jurídico-legal e f‌ilosóf‌ico, apresentando em
sua matriz, conforme conceito de Hacking, ref‌lexões éticas sobre direitos e deveres de pacientes e prof‌issionais,
alimentadas por situações-chave, tais como: processos por erro médico; o julgamento e Código de Nüremberg (e
mais tarde a Declaração de Helsinque) e os avanços da biotecnologia moderna, com a concomitante formação do
campo bioético. É comum citar o Código de Nüremberg, formulado no f‌inal de 1946 e que utiliza a nomeação con-
sentimento voluntário do paciente humano, como marco do consentimento informado. Esse código, entretanto,
vincula-se mais à obtenção de consentimento para pesquisa do que para rotina assistencial, cuja trajetória remete
aos processos legais impetrados contra médicos, ocorridos nos Estados Unidos, a partir da passagem para o século
XX. Nessa ocasião institui-se a necessidade de comunicar possíveis riscos antes da intervenção; na década de 1950
é nomeado de consentimento informado, em sua versão na língua inglesa, informed consente”. MENEGON, Vera
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NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA SAÚDE
fundamento legitimador da exigência do consentimento submetido às práticas, procedi-
mentos, intervenções médicas. Dessa forma, com a existência, sob o prisma bioético, da
primazia do princípio do respeito à autonomia34 do paciente envolvido numa intervenção
clínica, af‌irma-se que a pessoa tem competência e direito à escolha autônoma, devendo-
-se, ao menos, se considerar, na díade médico-paciente, a decisão como compartilhada.
Vale sublinhar o reconhecimento do consentimento livre e esclarecido como direito
fundamental. Como def‌ine o Código de Nuremberg, “1. O consentimento voluntário do
ser humano é absolutamente essencial”. Em sintonia, o Pacto de San José da Costa Rica,
assegura, art. 5º, item 1, que “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade
física, psíquica e moral”. Não custa lembrar que o consentimento é também assegurado
como direito fundamental às pessoas com def‌iciência intelectual,35 legalmente incapa-
zes36, como sublinha o Comissariado para Direitos Humanos do Conselho da Europa,37 a
Corte Interamericana de Direitos Humanos38 e também o Conselho Federal de Medicina.39
Desse modo, o consentimento informado requer sempre uma atuação participativa
entre médicos e pacientes40. Como bem observa Worthington, “[...] a validade ética do
consentimento livre e esclarecido não depende da palavra escrita, mas da qualidade da
interação entre um paciente e um especialista. Formalizar o registro é apenas uma parte
do processo [...]”41. Nessa perspectiva, a partir do paradigma assumido de valorização
da vontade do paciente, busca-se a f‌ixação de critérios para o exercício juridicamente
seguro e ef‌icaz da autonomia existencial em atos de saúde, em que somente poderiam ser
Mincoff. Consentindo ambigüidades: uma análise documental dos termos de consentimento informado, utilizados
em clínicas de reprodução humana assistida. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 3, Rio de Janeiro, 2004, p. 846.
34. BEAUCHAMP TL, CHILDRESS JF. Principles of biomedical ethics. 4th ed. New York: Oxford, 1994.
35. BARIFFI, Francisco José. El Régimen jurídico internacional de la capacidad jurídica de las personas con discapacidad.
Madrid: Grupo Editorial Cinca, 2014. p. 280-281; V., tb., ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com
def‌iciência e os perf‌is da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019, pp. 146-193.
36. LEITE, Gustavo Pereira. Consentimento informado e pessoa com def‌iciência psíquica/intelectual. In: MENEZES,
Joyceane Bezerra de. (Org.). Direito das pessoas com def‌iciência psíquica e intelectual nas relações privadas após a
Convenção de Nova York e a Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 733-762. p. 738. A Resolu-
ção CFM nº 1.598/2000, a qual “Normatiza o atendimento médico a pacientes portadores de transtorno mental”,
estabelece: Art. 6º – Nenhum tratamento deve ser administrado a paciente psiquiátrico sem o seu consentimento
esclarecido, salvo quando as condições clínicas não permitirem a obtenção desse consentimento, e em situações
de emergência, caracterizadas e justif‌icadas em prontuário, para evitar danos imediatos ou iminentes ao paciente
ou a outras pessoas.
37. CONSELHO DA EUROPA; Comissariado para Direitos Humanos. Who gets to decide? Right to legal capacity for
persons with intellectual and psychosocial disabilities. França: Abril, 2012. p. 11 e 16.
38. Conf‌ira-se a sentença do caso Ximenes Lopes. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso
Ximenes Lopes versus Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006.
39. A respeito, conf‌ira-se a Resolução CFM nº 1.598/2000 e a Recomendação do CFM n. 01/2016, que “Dispõe sobre
o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica”.
40. “O consentimento livre e esclarecido, também chamado de vontade qualif‌icada, constitui elemento essencial na
relação médico-paciente, é um ato de decisão voluntária e consciente do paciente, livre de qualquer vício, que
ocorre quando este, após devidamente informado e orientado pelo médico, é capaz de decidir acerca do tratamento
médico, aceitando ou recusando a indicação médica”. PEREIRA, Paula Moura Francesconi Lemos. Relação médi-
co-paciente: o respeito à autonomia do paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 114.
41. WORTHINGTON, R. Clinical issues on consent: some philosophical concerns. Journal of Medical Ethics, n. 28,
pp. 377-80, 2002, p. 378, apud ANDANDA, Pamela. Consentimento livre e esclarecido. In: DINIZ, Débora; GUI-
LHEM, Dirce; SUGAI, Andréa; SCHÜKLENK, Udo (Orgs.). Ética em pesquisa: experiência de treinamentos em
países sul-africanos. 2. ed., rev. e ampli., Brasília: Letra sLivres e Editora UnB, 2008, p. 50.
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válidas as vontades manifestadas caso o emitente tivesse competência para decidir sobre
o ato específ‌ico, houvesse recebido e compreendido todas as informações pertinentes
para sua situação, sem, ainda, ter sido vítima de qualquer espécie de coação.
Assim, estabelecem-se como elementos do consentimento a capacidade para
consentir ou competência, informação ou esclarecimento, compreensão dos dados
expostos e voluntariedade, não só para participar ou aceitar, mas também para recusar
ou se retirar da pesquisa/procedimento a qualquer momento. Além disso, acrescenta-se
que ele deve ser exercido por meio de um processo contínuo e ininterrupto, através do
qual a interação entre médicos e pacientes deve permanecer mesmo após a assinatura
de algum documento escrito que venha a formalizá-lo, não sendo a forma solene parte
integrante de sua essência. Basicamente, o consentimento informado se compõe da
competência ou capacidade, informação adequada e específ‌ica e do consentimento
voluntário.
Funda-se o processo de consentimento livre e informado, que culmina no termo
formalmente documentado, na essencialidade da autonomia dos partícipes no terreno
médico, servindo como uma forma de resguardar os prof‌issionais e outros integrantes
destas relações, na tentativa de antever seus possíveis efeitos. Contudo, o consentimento
informado atua como instrumento de preservação da autonomia privada existencial ao
permitir que a vontade válida do paciente seja respeitada. Indiscutível que a autono-
mia privada desvincula-se exclusivamente da liberdade de celebrar negócio jurídicos
patrimoniais e, atualmente, sobretudo, abarca as questões ligadas ao desenvolvimento
pessoal, à autorrealização existencial de cada indivíduo dentro de suas singularidades
e vulnerabilidades, com âncora na cláusula geral de tutela e promoção da dignidade da
pessoa humana.
A autonomia existencial42 tem por objetivo a realização de escolhas ligadas não ao
patrimônio, mas aos atributos que constituem a identidade que individualiza e caracteriza
cada pessoa em sua teia social. Desse modo, é fundamental para a garantia do seu pleno
desenvolvimento, “que a pessoa possa escolher a forma de vida que mais lhe realize, bem
como concretize o seu projeto de vida individual”.43
No campo da saúde, os atos de autonomia nas decisões afetas ao próprio corpo44,
saúde e vida são cruciais para o viver com dignidade. O consentimento informado espelha,
dessa forma, a esfera de liberdade dos indivíduos – a autonomia privada, constituindo
o principal instrumento jurídico posto à disposição das pessoas envolvidas nas práticas
médicas. O principal objetivo por trás do imperativo de buscar consentimento válido
dos pacientes antes de uma intervenção é defender e reforçar o conceito de autonomia
do paciente.
42. V. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial. Revista Brasileira de Direito Civil – RBD Civil, Belo
Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Dignidade, autonomia e escolhas
existenciais. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, v. 4, p. 253-278, 2015.
43. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson de Paula. Autonomia e solidariedade na disposi-
ção de órgãos para depois da morte. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 18, 2010. Disponível em:
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1357/1145>. Acesso em 25 nov. 2019.
44. V. MORAES, Maria Celina Bodin de; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A autonomia existencial nos atos
de disposição do próprio corpo. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez., 2014.
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NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA SAÚDE
O consentimento informado valoriza os pacientes e permite que eles participem da
tomada de decisões críticas, desde que aceitem desempenhar um papel ativo e tenham
capacidade/competência para fazê-lo. A rigor, o respeito à autonomia do paciente é to-
talmente compatível com a tendência hodierna de valorização aos direitos do paciente
no contexto geral da prestação de serviços de saúde. É de se buscar, no entanto, os de-
saf‌ios a obtenção de um consentimento informado nos casos de pacientes vulneráveis
ou incapazes de exprimir sua vontade de forma válida. Tal tarefa torna-se ainda mais
importante quando se tem que, a despeito da omissão legislativa45, não resta dúvida que
o consentimento do paciente, legitimamente prestado, constitui hipótese apta a afastar
o dever de reparar.46
3. DESAFIOS QUE BROTAM NO CAMPO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
MÉDICA
Expostas as premissas, identif‌ica-se a consagração da autonomia como elemen-
to-chave do novo momento das relações médico-paciente. Esse novo contexto traz à
tona, por outro lado, um importante conjunto de novos desaf‌ios, para os quais, não há
respostas totalmente seguras. Uma leitura crítica do consentimento deve ser apta a su-
perar não apenas a adoção de termos de consentimento genéricos, como também deve
ser capaz de estabelecer critérios para uma avaliação do efetivo concretização do ciclo
informação-consentimento. À luz de uma visão concreta, é preciso ter em conta inúmeros
desaf‌ios, entre os quais, o privilégio terapêutico (hipótese em que o paciente não deve
ser informado) e os limites da possibilidade de compreensão do paciente.
Outros elementos relevantes envolvem a própria possibilidade de desinteresse
do paciente em tomar a decisão. Uma pesquisa realizada pelo Institute of Medicine com
pacientes de língua inglesa identif‌icou que mais da metade dos pacientes preferia não
ter que tomar decisões, e 44% sinalizaram preferir conf‌iar nos médicos para obter as
informações necessárias para tratamentos, do que buscar por si as informações47. Como
lidar com a inércia do paciente ou sua opção por concordar com o que o médico entender
como mais adequado?
A respeito, é de grande importância observar que a pesquisa não sustenta um modelo
que ignora o paciente. Como explica o estudo:
45. SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 53. FACCHINI NETO, Eugê-
nio. Da Responsabilidade Civil no Novo Código. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 76, p. 17-63, 2010.
p. 58. Vale salientar que, a despeito do silêncio da legislação sobre o consentimento como excludente do dever de
reparar, há inúmeras disposições normativas que reaf‌irmam sua essencialidade, inclusive a Lei n. 8080/90, art.
7º, Lei de Saúde Mental (Lei n. 10.216/2011); Lei Brasileira da Inclusão (Estatuto da Pessoa com def‌iciência – Lei
n. 13.146). Sublinha-se ainda seu fundamento constitucional e seu caráter de direito fundamental.
46. Segundo Giselda Hironaka: “apresentar-se-á como situação de descarte da responsabilidade, porque destrói a
relação de causalidade aquela circunstância em que a vítima efetivamente sofre dano, mas é certo que o mesmo
se produziu sob a sua própria aquiescência”. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade
civil: circunstâncias naturalmente, legalmente e convencionalmente escusativas do dever de indenizar o dano.
Revista IMES. Direito, São Caetano do Sul, v. 3, p. 62-74, 2001. Dados os estritos limites deste artigo, deixa-se de
aprofundar o instigante tema das excludentes do dever de reparar.
47. LEVINSON, Wendy et. al. Not all patients want to participate in decision making. Journal of General Internal
Medicine, v. 20, n. 6, 2005, p. 531–535.
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the vast majority of people want to discuss options and share their opinions about treatment with phy-
sicians. During discussions about options, patients can clarify their views and can share their personal
reections about the advantages and disadvantages of treatment approaches. This deliberation is a
bilateral interaction in which physician and patient weigh the choices in light of an individual patient’s
wishes, desires, and personal circumstances. Our ndings support the idea that this component of
decision making is widely valued by patients.48
Além disso, embora o levantamento apresente limites, assinala a importância de se
levar em conta padrões e preferências nem sempre iguais, nem racionais. Igualmente,
deve-se ter presente a possibilidade de o paciente optar por recusar o recebimento de
informações. Ao lado deste aspecto, há um difícil equilíbrio entre a proteção do pa-
ciente de si mesmo e sua autonomia. Se prima facie a autodeterminação deve abranger,
inclusive como pressuposto lógico, a possibilidade de recusar tratamentos e tomar
decisões aparentemente ruins ou incomuns, de outro lado exige apurada avaliação
da compreensão do paciente tal como, aliás, deve ocorrer também quando o paciente
escolhe dentro do que é considerado o padrão esperado. Naturalmente a proteção do
paciente é importante, todavia, é indispensável notar que não há autonomia se restrita
a concordar com o que o médico espera, é o que se extrai das lições de lições de Stuart
Mill49 e Gerald Dworkin.50
O dever de informação, sob tal perspectiva, não se resume a apresentar dados ao
paciente. É preciso integrá-lo no processo de tomada de decisão. Em sintonia, Liana
Fraenkel e Sarah McGraw51 sublinham a importância do incentivo, pelo médico, da
participação do paciente. Embora possa soar contraditório que ao mesmo tempo em
que haja crítica a centralidade do médico, haja a percepção de que o paciente por vezes
não apresenta tanto interesse na prática, quanto nos modelos teóricos, tal circunstância
reforça os deveres dos prof‌issionais de saúde, eis que alcançarão o dever de promover a
aderência do paciente.
Para Fraenkel e McGraw são motivadores da participação do paciente: “i-) grau
conhecimento, ii-) incentivo ativo à participação na decisão; ii-) apreciação da respon-
sabilidade / direitos do paciente de desempenhar um papel ativo papel na tomada de
decisão; iv-) conscientização da escolha; v-) tempo”. Trata-se de aspectos úteis para
assegurar uma tomada de decisão mais qualif‌icada, com participação efetiva.
48. LEVINSON, Wendy et. al. Not all patients want to participate in decision making. Journal of General Internal
Medicine, v. 20, n. 6, 2005, p. 531–535. Em tradução livre: “A vasta maioria das pessoas deseja discutir suas op-
ções e compartilhar suas opiniões sobre tratamentos com os médicos. Durante a discussão sobre as opiniões, os
pacientes podem esclarecer suas visões e dividir com o prof‌issional ref‌lexões sobre as vantagens e desvantagens
das diferentes abordagens de tratamento. A deliberação é uma interação bilateral na qual o paciente e o prof‌issional
de saúde ponderam as possibilidades à luz dos desejos individuais do paciente, seus sentimentos e circunstâncias
pessoais. Os resultados de nossa pesquisa corroboram a ideia de que este componente do processo de decisão é
amplamente valorizado pelos pacientes”.
49. MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario (Canada): Batoche Books: Kitchener, 2001, p. 85.
50. DWORKIN, Gerald. The Theory and Practice of Autonomy. Cambridge (Reino Unido): Cambridge University Press,
2008, p. 123. (Coleção: Cambridge Studies in Philosophy).
51. FRAENKEL Liana; McGRAW Sara. What are the essential elements to enable patient participation in medical
decision making? Journal of General Internal Medicine. v. 22, n. 5, May, 2007, p. 614-619, p. 615.
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NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA SAÚDE
O próprio processo de comunicação com o paciente passa a ser alvo de atenção.52
Grosso modo, implica deslocar a atenção do que foi informado para aquilo que foi apre-
endido. Naturalmente não se propõe aqui a prevalência do que o paciente ouviu (ou quis
ouvir). No entanto, não se pode desprezar que a distância entre os dois pontos assinala
também demanda a construção de pontos importantes no processo informacional.
Tradicionalmente o campo da responsabilidade civil enfoca a possibilidade (ou
não) de f‌ixação de um dano reparável. Na seara da saúde, como adverte a Organização
Mundial da Saúde, os registros de demandas judiciais são uma potencial fonte de estudo
para aprimoramento das práticas e, não obstante, são raramente empregadas para tal
f‌inalidade.53 O estudo mais adequado pode identif‌icar correlações entre corte de gastos
e resultados, uso de Medicina defensiva (com indicações desnecessárias por medo de
ações judiciais), ou mesmo subnotif‌icações. É interessante notar que no caso da China,
as ações de responsabilidade civil saltaram de 75 em 2010 para 6947, em 2014, das quais
mais de um quarto se devem a alegação de falta de consentimento.54
Entre as novas perspectivas, pode-se af‌irmar que a falta ou a insuf‌iciência de
informações ao paciente é fonte autônoma do dever de reparar, assim como a falta de
consentimento. Portanto, a falha na intervenção corporal não é indispensável para que
haja a imposição do dever de reparar na esfera dos atos da saúde. Na medida em que a
informação é pressuposto para o consentimento, que por sua vez é indispensável para
atender à autodeterminação do paciente. A contrario sensu, a falta de informação adequada
atinge o consentimento e, por sua vez, impõe o dever de reparar.
Ademais, é preciso advertir que a sistemática segundo a qual se possa admitir a
presunção de que o paciente teria consentido, segundo uma análise hipotética, como é
admitida, por vezes, no ordenamento português,55 tende a fragilizar os avanços obtidos
que colocam como central o efetivo consentimento. Quanto mais concreta a análise,
tanto mais acertada será a apreciação. Neste sentido, reitere-se a comparação feita com a
recente Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais que demanda consentimento específ‌ico
e inequívoco.
Como exposto, a transformação das relações paciente-médico demanda novas re-
f‌lexões, com profundas repercussões para as discussões do direito de danos. A gradativa
superação do paternalismo médico, com a valorização da autonomia do paciente, tanto
na esfera da ética médica, quanto no plano jurídico, oferece respostas importantes, ao
mesmo tempo em que proporciona novas questões. A consagração do caráter essencial
do consentimento do paciente e seu reconhecimento como direito fundamental constitui
ponto de partida para novas indagações. As mudanças em curso exigem uma (re)leitura
crítica do processo de consentir, bem como de seus critérios.
52. LEVINSON, Wendy. Patient-centred communication: a sophisticated procedure. British Medical Journal. v. 20, n.
10, may, 2011, p. 823-825, p. 823.
53. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Bulletin of the World Health Organization, n. 95, Genebra, WHO, 2011.
Disponível em: https://www.who.int/bulletin/volumes/95/6/16-179143/en/. Acesso em 21 nov. 2019.
54. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Bulletin of the World Health Organization, n. 95, Genebra, WHO, 2011.
Disponível em: https://www.who.int/bulletin/volumes/95/6/16-179143/en/. Acesso em 21 nov. 2019.
55. PEREIRA, André Gonçalo Dias Pereira. O consentimento informado em Portugal: breves notas. Revista Eletrônica
da Faculdade de Direito de Franca. v.12, n.2, dez. 2017, p. 21-34, p. 31.
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Vale enfatizar, a simples af‌irmação da importância do consentimento de forma
vazia pode terminar por substituir a soberania da decisão do médico, pela utilização do
consentimento como simples burocracia – ou até mesmo como maliciosa tentativa para
fugir de responsabilidades. A percepção de diferentes modelos de relação paciente-mé-
dico, obriga problematizar tais questões, até mesmo para que se possa def‌inir parâmetros
mais claros para a avaliação do preenchimento do dever de informar que, por sua vez, é
pressuposto para a efetiva deliberação do paciente e por consequência, constitui condição
sine qua non para a validade do consentimento.
De modo a procurar organizar alguns critérios ou ao menos considerações úteis
sobre a temática sob exame, permita-se sintetizar algumas proposições aqui lançadas:
a. É preciso uma leitura humanista do processo de consentimento, com o reconheci-
mento da proteção da pessoa concreta e de seus diferentes fundamentais, inclusive
na deliberação para atos que envolvem tratamentos e outras formas de disposição
de corpo (inclusive esterilização, aborto, cirurgias terapêuticas e estéticas);
b. Não há consentimento adequado, sem informação adequada; a falta de consen-
timento impõe o dever de reparar, o qual pode ser imposto também em favor dos
familiares, inclusive por dano em ricochete;
c. Assim como o consentimento não constitui mera burocracia, o ato de informar
também não deve ser visto como simples formalidade. Deve-se esclarecer o
paciente, de maneira pessoalizada e adequada ao seu quadro clínico, idade, ca-
pacidade de compreensão;
d. Consentir não é ato, é processo substancial. Não há validade no consentimento
se não se admitir ao paciente compreender e assumir riscos.
e. Não é essencial constar todas as possibilidades de tratamentos e riscos para que
a informação seja considerada prestada;
f. O consentimento não se presume, portanto, mesmo quando devidamente presta-
da a informação o consentimento deve ser colhido. Essa circunstância se reforça
pelo fato de o consentimento ser um processo e, portanto, pode não estar claro
ao paciente o momento em que deve expressar sua concordância ou divergência
sobre o procedimento sugerido;
g. Os riscos inerentes ao procedimento (e a sua não realização) devem ser escla-
recidos, mas riscos remotos podem ser omitidos; a avaliação da relevância da
informação deve levar em conta a pessoalização da estatística, ou seja, levar em
conta o perf‌il do paciente (histórico familiar, idoso, mulher, preferências, etc.);
h. Em sintonia com as diretrizes do Código de Defesa do Consumidor, a informação
deve ser inteligível, clara, adequada; como aponta a Lei Geral de Proteção de Da-
dos Pessoais (Lei n. 13.709/2018), o consentimento deve ser uma “manifestação
livre, informada e inequívoca”;
i. O consentimento, se prestado adequadamente, constitui hipótese excludente do
dever de reparar;
j. O consentimento do paciente é sempre revogável;
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NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA SAÚDE
k. Deve ser admitida a renúncia, pelo paciente, ao direito de saber, a qual, todavia,
é também revogável. Eventual renúncia do paciente à informação deve ser devi-
damente documentada por escrito. A qualquer tempo o paciente pode demandar
novas informações e esclarecimentos;
l. A consagração dos direitos fundamentais à proteção de dados pessoais e à au-
todeterminação informativa repercutem no consentimento para atos na saúde.
O consentimento do paciente para realização de determinado procedimento
não pode ser esticado para alcançar o consentimento nos tratamentos de dados
pessoais, sobretudo quando houver compartilhamento com terceiros ou outras
práticas que o paciente não pode supor ou compreender sem receber a devida
explicação. Na medida em que o consentimento não se presume, e deve ser in-
formado, os riscos relativos ao tratamento de dados pessoais devem compor o
processo de consentimento.
4. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com def‌iciência e os perf‌is da curatela. Belo Horizonte:
Fórum, 2019.
ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Dignidade, autonomia e escolhas existenciais. Revista Fórum de
Direito Civil – RFDC, v. 4, p. 253-278, 2015.
BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO, Carlos Alberto
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