Os novos rumos do direito societário

AutorWalfrido Warde
Páginas265-321
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OS NOVOS RUMOS DO DIREITO
SOCIETÁRIO
WALFRIDO WARDE
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho encerra uma crítica e uma proposição.
O direito societário foi concebido e se desenvolveu como um
instrumento de concentração econômica, de salvamento do capital e das
taxas de lucro do capital pelo Direito, que se sofisticou com a separação
entre a propriedade e o controle da globalização da empresa.1
O direito societário se alinha, portanto, a um sem número de
técnicas jurídicas manejadas por governos, sob intensa captura do poder
econômico, que respondem pela galopante desigualdade social e
econômica no Brasil e em todo o mundo. Isso é especialmente perceptível
ao estudioso de direito societário, sobretudo, se o desejo de servir ao
poder econômico não lhe afeta o juízo.
1 Cf. BERLE, A. A., MEANS, G. C. The modern Corporation and private property. New
Brunswick: Translation Publ., 1991. E, para uma visão crítica do fenômeno, WARDE
JR., W. J. Teoria geral da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, ou, em
concreto, WARDE, W. O Espetáculo da Corrupção: como um sistema corrupto e o
modo de combate-lo estão destruindo o país. São Paulo: Leya, 2018.
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WALFRIDO WARDE
O direito societário, sob essa constatação, necessita de profundas
reformas programáticas. E isso se faz sentir com força renovada em meio
à maior e mais devastadora pandemia de que se tem notícia.
A pandemia da COVID-19 encontra um mundo globalizado, à
míngua de fronteiras nacionais, sob a voragem das trocas econômicas
massivas e da financeirização exponencial do capitalismo. Não há cura,
não há vacina. O tratamento, para os casos mais graves, é a substituição
dos pulmões por respiradores mecânicos, à espera de que os anticorpos
ajam. A escassez de leitos de hospital, sobretudo nas unidades de
tratamento intensivo, indispensáveis aos casos mais graves, impõe um
isolamento social, mais ou menos intenso, para permitir que o contágio
entre em compasso com a cura e, encontrado esse ritmo, gente não
morra nas casas, nas ruas e nas intermináveis filas do nosso sistema de
saúde.
O isolamento social promete erodir, a bem da verdade já alveja,
duramente, as estruturas essenciais dos sistemas produtivos, por meio da
diminuição drástica do consumo e, com isso, das relações de troca
essenciais à geração de receita e de renda. Todos os ativos derivados da
economia real já perderam valor e deverão sofrer, sob uma economia
nacional e mundial morna, que deverá ainda desaquecer mais. A receita
das empresas e a renda dos trabalhadores é a base da arrecadação do
Estado, que, por sua vez, será, agora mais do que nunca, o esteio dos
regimes de produção capitalista.
Uma horda faminta, engrossada pela classe média empobrecida e
furiosa, deverá engrossar as fileiras da miséria.
O já vetusto direito societário será capaz de enfrentar esse desafio.
E não me refiro às situações comezinhas, às formalidades da vida das
sociedades. Mas ao papel estruturante que as sociedades empresárias
desempenham, precisamente porque esse papel agrava o problema, fabrica
concentração econômica e desigualdade.
É preciso implementar reformas que determinem novos rumos a
uma disciplina que, redefinida, poderá servir a uma afetação produtiva
e distributiva dos capitais.
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OS NOVOS RUMOS DO DIREITO SOCIETÁRIO
2. A COORDENAÇÃO DE CLASSES SOCIAIS MEDEIA A
RELAÇÃO ENTRE O IUS ABUTENDI E AS FORÇAS DE
OPOSIÇÃO À PROPRIEDADE PRIVADA
A ideia de coordenação de classes sociais medeia a relação entre
o ius abutendi e as forças de oposição à propriedade privada, por meio
do implante de um elemento solidarístico nas dimensões axiológica e
sociológica do Direito.
A concepção tradicional do direito de propriedade, sob forte
influência de uma consciência pré-jurídica do fenômeno que a ele se
refere, atribui ao “dono” um poder absoluto em relação à coisa sob o
seu domínio, para a usar (utendi), para dela gozar (fruendi) e mesmo para
a destruir (abutendi), segundo a sua vontade.
Essa concepção sofreu, ao longo dos séculos e dos muitos influxos
civilizatórios, uma gradativa redefinição semântica. E não será outra a
causa, senão uma antecedente redefinição do conteúdo da ética.
É certo que as visões coletivistas do mundo fizeram pressão sobre
a propriedade privada, ao ponto de ruptura, como as que, de fato,
trabalharam para o seu esvanecimento – com avanços e retrocessos – na
União Soviética, a partir da Revolução de Outubro de 1917 e, sob a
sua influência, com a internacionalização do comunismo.
O aparecimento do Estado do Bem-Estar Social foi uma resposta
liberal ao impulso de relativização da propriedade. E não é à toa que a
ideia de função social da propriedade apareceu, já nos anos 1910, na
Europa, como uma tentativa de coordenar as classes sociais; uma tentativa
precisamente projetada para suplantar o antagonismo de classes
denunciado pelo marxismo.
Tratou-se, a toda prova, de um esforço de transformação social
por meio do Direito.
A famosa aula de Léon Duguit, na Faculdade de Direito de Buenos
Aires,2 que daria vida ao trabalho seminal sobre “la proprietè fonction
2 Trata-se de conferência, a última de uma série de seis, proferida em Buenos Aires, em
setembro de 1911. Cf. DUGUIT, Léon. Le transformations générales du droit privé depuis

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