Nulidades no Processo Penal Brasileiro. Regras Gerais do Código de Processo Penal e do Projeto 156. A Necessária Leitura do Sistema de Invalidades à Luz das Categorias Próprias do Processo Penal

AutorGuilherme Rodrigues Abrão; Renata Jardim da Cunha Rieger
CargoAdvogado criminalista. Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Direito Penal Empresarial (PUC/RS) e em Ciências Criminais (Rede LFG) / Advogada criminalista. Mestranda em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade IDC)
Páginas18-25

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I Noções gerais

Seguindo os ditames de um Estado Democrático de Direito, pautado por uma Constituição Federal asseguradora de direitos e de garantias fundamentais, fazse necessário que haja, no ordenamento jurídico, em especial no Código de Processo Penal, regramentos básicos sobre a questão das invalidades dos atos processuais. Nessa linha, é possível afirmar que, portanto, “o legislador processual adotou o princípio da legalidade dos atos processuais”1, no qual “a tipicidade das formas é uma garantia para as partes e para a correta prestação jurisdicional”2.

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O instituto das nulidades, que se irradia do próprio princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição), vem consagrado no Código de Processo Penal (arts. 563/573) e pode ser compreendido, como comumente o é pela doutrina pátria, em quatro espécies, a saber: 1) irregularidades, 2) nulidades relativas, 3) nulidades absolutas e 4) atos inexistentes, pois, como observa Gustavo Badaró, “o ato típico é aquele que em sua prática obedece a todos os requisitos do modelo previsto em lei. Já a atipicidade pode variar em sua intensidade”3.

Todavia, em virtude das recentes e pontuais alterações processuais ocorridas em 2008, é preciso que se destaque a cautela de Aury Lopes Júnior ao “criticar (novamente) o sistema de reformas pontuais no processo penal, pois a inconsistência sistêmica novamente se manifesta quando analisamos a teoria das invalidades processuais”4. Dessa feita, a análise das teorias da invalidade dos atos processuais deve ser feita de acordo com a casuística, pautando-se pelo Código de Processo Penal, mas sem descuidar-se dos ditames constitucionais5.

I I. Meras irregularidades

Nas (meras) irregularidades é possível afirmar que a intensidade da atipicidade é mínima, ou seja, o defeito do ato é de mínima relevância e não afeta de sobremaneira o curso natural do devido processo (penal). Daí que “as irregularidades são concebidas como defeitos de mínima relevância para o processo, que em nada afetam a validade do ato”6.

Dessa forma, o ato processual irregular (por exemplo, erros de grafia sobre a identificação do acusado; inobservância de prazos para oferecimento de denúncia ou para a prática de certos atos processuais pelo juiz), justamente por apresentar mínima relevância, gerará efeitos e não irá macular o processo penal, pois não há, nesses casos, violação de preceitos constitucionais que balizam o devido processo (penal), não se questionando, portanto, a sua validade. Note-se, então, que o ato meramente irregular, consistente em um simples ato defeituoso, e por ser de mínima relevância para o processo, não irá dar margem a sua invalidade7.

I II. Atos inexistentes

Se as meras irregularidades não afetam o devido processo legal, o contrário pode ser dito acerca dos atos inexistentes, pois, nesses casos, não há que se falar em defeito, mas sim em falta ou ausência, haja vista que, no plano da “inexistência”, teoricamente “concebido como a ‘falta’ (e não como ‘defeito’, ainda que muitos confundam defeito com falta) de elemento essencial para o ato, que sequer permite que ele ingresse no mundo jurídico, ou ainda, o suporte fático é insuficiente para que ele ingresse no mundo jurídico”8.

Ainda que pareça lógico e evidente, é preciso asseverar que os atos inexistentes não ingressam no plano jurídico e, portanto, não há que falar-se em invalidade, pois, ora, o que não existe não pode ser avaliado como válido ou inválido. A inexistência do ato é preexistente à questão da validade, ou seja, somente será declarado válido ou inválido aquilo que exista, e tal não é o caso quando se trata de atos inexistentes (como por exemplo, sentença sem dispositivo; sentença proferida por outra pessoa que não magistrado).

Nesse sentido, cumpre transcrever as lições de Pontes de Miranda9:

“Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Sòmente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo o que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. Não se há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a morte, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tampouco a respeito do que não existe: se não houve o ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, jurídicos.”

Enfim, é evidente que “os atos inexistentes são nãoatos, em relação aos quais não se cogita de invalidação, pois a inexistência é um problema que antecede a questão da validade. Não há que se falar em nulidade do ato inexistente”10. Assim, reitera-se: não se discute a validade/invalidade dos atos inexistentes, pois a sua inexistência é prévia a tal questão, bem como, em tese, jamais poderá um ato inexistente causar efeitos processuais (daí que prescinde de declaração judicial). Todavia, se causar efeitos (como por exemplo, alguém preso em virtude de uma sentença penal condenatória proferida por alguém sem jurisdição), necessitará, evidentemente, de declaração judicial para que se determine sua inexistência e consequente reconhecimento de que não produz efeitos.

I III. Nulidades absolutas e relativas

No entremeio das meras irregularidades e dos atos inexistentes, a doutrina encontra as nulidades absolutas e relativas, que irão diferenciar-se, entre outros fatores, especialmente, devido ao seu grau de intensidade da atipicidade processual, como se passa a demonstrar.

I III.I. Nulidades absolutas

As nulidades absolutas são aquelas que apresentam um grave defeito e maculam indelevelmente algum dos princípios constitucionais que norteiam o devido processo penal, sendo, portanto, “aquela que decorre da violação de uma determinada forma do ato, que visava à proteção de interesse processual de ordem pública. No processo penal há nulidade absoluta toda a vez que for violada uma regra constitucional sobre o processo”11.

Nessa senda, é possível identificar que tais nulidades violam normas que tutelam verdadeiro interesse público ou ainda, como referido, acabam por violar determinado princípio constitucional. Assim, justamente por apresentar relevante interesse público e ser tida como insanável (pois não se convalida, e muito menos é convalidada pela preclusão), tais nulidades podem ser declaradas de ofício pela autoridade judicial e em qualquer grau de jurisdição (ou ainda, é claro, por meio de provocação da parte interessada), não sendo necessário demonstrarse qualquer prejuízo, pois se trata de prejuízo presumido.

I III.II. Nulidades relativas

Já as nulidades relativas, segundo a doutrina majoritária, são aquelas mais graves que os atos meramente irregulares, mas que não chegam a macular matéria de ordem pública, sendo, portanto, menos graves que as nulidades absolutas. É, nesse sentido, “aquela que decorre da violação de uma determinada forma do ato que visa à proteção de um interesse privado, ou seja, de uma das partes ou de ambas”12.

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Assim, compreende-se que as nulidades relativas, ao contrário das absolutas, seriam aquelas que violam normas que tutelam o interesse privado das partes e que não podem ser declaradas de ofício, sendo fundamental a provocação da parte interessada, sob pena de ocorrer sua convalidação. Além do mais, diz-se, com frequência, que é preciso que a parte suscitante demonstre o prejuízo sofrido, conforme art. 563 do Código de Processo Penal (lógica essa inversa à das nulidades absolutas, pois o prejuízo em tais casos seria presumido, não havendo necessidade de ser demonstrado).

A classificação não parece adequada. Isso porque, como bem observa Aury Lopes Júnior, as nulidades relativas acabaram se transformando em um importante instrumento a serviço do utilitarismo e do punitivismo, sendo recorrente a manipulação discursiva para tratar como mera nulidade relativa aquilo que é, indubitavelmente, uma nulidade absoluta. Ou seja: “a categoria de nulidade relativa é uma fraude processual a serviço do punitivismo”13.

II O regime das nulidades no Código de Processo Penal e no projeto de reforma 156
II I. O princípio do prejuízo ou da instrumentalidade das formas

O art. 563 do Código de Processo Penal estabelece que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Em tese, tal princípio somente seria aplicável aos casos de nulidade relativa, nos quais seria exigida a demonstração do efetivo prejuízo para a nulidade do ato ser declarada, o que, como visto anteriormente, não precisaria ocorrer em casos de nulidades absolutas, pois o prejuízo seria presumido14.

Lamentavelmente, na seara processual penal, muitas vezes opera-se na lógica de que os fins justificam os meios, ou seja, cumprida a finalidade do ato praticado, independentemente de como se tenha procedido (com ou sem violação às normas cogentes), estará a ser um ato juridicamente válido. É assim dizer, “segundo o princípio da instrumentalidade das formas, não se anula um ato se, embora praticado em desacordo com a forma prevista em lei...

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