Da correlação entre a acusação e a sentença no processo penal brasileiro contemporâneo: o art.384,caput, do CPP e a ofensa ao sistema acusatório e às funções privativas do ministério público

AutorMárcio Carvalho Faria
CargoMestrando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da UERJ.
Páginas263-295

Page 263

1. Introdução

O presente trabalho tem por objeto de análise a necessária correlação existente a acusação e a sentença, diante dos princípios constitucionais da imparcialidade do juiz e do contraditório, em comparação, sobretudo, com os institutos da ementatio libelli e da mutatio libelli. A partir de deles, notadamente este último, far-se-á uma verificação, à luz das características básicas do sistema processual penal acusatório, se há alguma mácula ao art. 129, I, da Constituição Federal de 1988 (CF/88).

Na primeira parte da pesquisa, serão objeto de perquirição o princípio da congruência, a iniciativa exclusiva do Ministério Público para a ação penal pública e o sistema acusatório, além de uma análise, sucinta, da coisa julgada. Nesse momento, tentar-se-á firmar as bases do trabalho, o qual, mais especificamente, buscará demonstrar, a posteriori, se os institutos da emendatio e da mutatio foram recepcionados pela Carta Magna.

Na segunda parte da pesquisa, analisar-se-á mais pormenorizadamente os referidos institutos, destacando-se o que a doutrina e a jurisprudência têm observados a respeito. Conclui-se pela não-recepção do art. 384, caput, CPP, pela Constituição Federal, sendo imperiosa que tal situação venha a ser melhor analisada pelas mais altas Cortes do País. O método de procedimento a ser utilizado é o jurídico-interpretativo, uma vez que se fará uma análise crítica das regras constantes nos arts. 383 e 384, CPP - frente a uma gama de princípios que norteiam o sistema acusatório pátrio, objetivando se chegar a uma justificação para esta construção.

Nesse trabalho será feita uma pesquisa qualitativa, utilizando a documentação indireta como técnica de pesquisa e, dentro desta, a pesquisa documental e a bibliográfica. AquelaPage 264realizar-se-á através da pesquisa jurisprudencial, especificamente, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça; esta, por sua vez, terá como base a doutrina voltada ao Direito Processual Penal, à Teoria Geral do Processo e ao Direito Constitucional. Com isso, através da pesquisa em ramos diversos do Direito, buscar-se-á a justificativa e respectivas conseqüências para a (in)aplicação da mutatio libelli e da emendatio libelli.

No referente aos setores do conhecimento, a pesquisa assumiu feição interdisciplinar, pela concatenação de elementos pertinentes à Teoria Geral do Processo, ao Direito Processual Penal e ao Direito Constitucional, em necessário e constante intercâmbio.

2. O princípio da congruência, a inércia do judiciário e o sistema acusatório

Um dos principais dogmas da processualística (amparada, principalmente, na ordem constitucional vigente), consiste na adstrição da prestação jurisdicional àquilo que as partes e a lei2 assim determinam, na medida em que, como é cediço, o Judiciário é inerte e não pode, salvo raras exceções, manifestar-se ex officio sobre algo que não lhe foi alvo de atribuição, sob pena de arbitrariedades e/ou nulidades. Trata-se de máxima net procedat judex ex officio, como se sabe.

Tais "atribuições" do Judiciário são, em regra, definidas pela demanda, na qual o autor formula um pedido. Este, por seu turno, acaba por delimitar o âmbito de atuação dos julgadores, sendo-lhes vedada qualquer atuação jurisdicional que o extrapole3. São os contornos do pedido, destarte, que orientam o Judiciário na prestação de sua função precípua, qual seja, a jurisdicional.

Há, portanto, a necessidade de que o ofício dos julgadores seja consentâneo com aquilo que lhes foi colocado a decisão, sob pena de grave ofensa ao "acesso à ordem jurídica justa", na feliz e conhecida definição do professor Kazuo Watanabe (art. 5º, XXXV, CF/88). Essa "correlação" é o que a doutrina convencionou chamar o princípio da congruência, conforme se verifica das palavras de Moreira4:

Chama-se demanda ao ato pelo qual alguém pede ao Estado a prestação de atividade jurisdicional. Pela demanda começa a exercer-se o direito de ação e dá-se causa à formação do processo. Só por exceção existe, em nosso direito, processo civil sem demanda que o instaure: é o princípio da iniciativa daPage 265parte (ne procedat iudex ex officio; nemo iudex sine actore), consagrado no art. 262.

Através da demanda, formula a parte um pedido, cujo teor determina o objeto do litígio e, conseqüentemente, o âmbito dentro do qual toca ao órgão judicial decidir a lide (art. 128). Ao proferir a sentença de mérito, o juiz acolherá ou rejeitará, no todo, ou em parte, o pedido do autor (art. 459, 1ª parte). Não poderá conceder providência diferente da pleiteada, nem quantidade superior ou objeto diverso do que se pediu (art. 460); tampouco deixar de pronunciar-se sobre o que quer que conste do pedido. É o princípio da correlação (ou da congruência) entre o pedido e a sentença (ne eat iudex ultra vel extra petita partium),só afastável ante exceção legal expressa.

Também considerado como o princípio da "inalterabilidade da demanda", para Rangel5 a congruência pode ser definida como "a correlação que deve existir entre o que se pediu e o que foi concedido. Trata-se de uma garantia processual decorrente do princípio constitucional da ampla defesa visando impedir surpresas desagradáveis ao réu comprometendo sua dignidade enquanto pessoa humana".

De origem romanas, tal princípio ganhou força com o Estado liberal, tendo em vista a supervalorização do princípio dispositivo, do qual é corolário. Nas palavras de Didier Jr. et al:6

O individualismo então reinante se contrapunha à idéia do intervencionismo estatal, razão por que o juiz, como longa manus do Estado costumava ser, por dever e por ideologia, um sujeito inerte e passivo, a quem competia sempre aguardar a provocação da parte para praticar atos no processo. Essa concepção influenciou muito a doutrina e a legislação brasileiras. Por conta disso, desde a Consolidação Ribas, implementada por Joaquim Ribas e editada em 1876, até o atual Código de Processo Civil, tem vigência, em nosso ordenamento jurídico, com fórmulas mais ou menos semelhantes, o princípio da correlação entre a decisão e o pedido.

Mais importante que isso, é a idéia de que a congruência está intimamente ligada à garantia constitucional do contraditório. Isso porque, como se sabe, o direito a participar e influenciar as decisões judiciais, garantido pela CF/88, só é pleno naquilo em que a outra parte aventou. Noutros termos: o réu não se defende de tudo, mas apenas e tão somente daquilo que o autor lhe imputou, sobretudo nos processos criminais. Se, em sentença,Page 266o juiz condena o acusado com arrimo em fatos totalmente diversos daquele sobre os quais o réu exerceu a sua defesa, certamente o contraditório será ofendido.

Especificamente na órbita criminal, portanto, a correlação ganha aspectos ainda mais relevantes, vez que a decisão judicial não pode abarcar fatos que não constaram da peça inicial acusatória, o libelo. Assim não fosse, certamente restaria prejudicada a ampla defesa, pois o réu, caso não houvesse tal correlação, deveria ter que se defender daquilo que sequer imaginava...

Oliveira7, de seu modo, ratifica tal entendimento, dizendo que a correlação não deixa de ser uma

(...) garantia do indivíduo ao devido processo legal. Assim, o réu não poderá ser condenado pela prática de fato não constante da denúncia ou queixa, ou ainda por fato diverso daquele ali mencionado, sem que antes se proceda à correção da inicial (...).

Shimura8,com maestria, explicita o tema:

Do mesmo modo que sucede no processo civil, ocorre no processo penal. A peça inicial acusatória, seja denúncia, seja queixa-crime, deve descrever perfeitamente bem a espécie delituosa que constitui a causa petendi, a razão do pedido, o fato que originou o pedido. No que refere à qualidade e quantidade da pena, o pedido é sempre genérico, vez que, conforme os critérios adotados pelo Código Penal, compete exclusivamente ao Juiz dosá-la. Portanto, como sucede na esfera cível, no campo penal não se admite julgamento ultra, extra ou citra petitum. Se o Promotor denuncia por lesão corporal, o Juiz não pode condenar o réu por furto, sob pena de estar decidindo extra petitum. Denunciado por dois crimes, a sentença não pode analisar somente um deles; seria julgamento citra petitum. Acusado de lesão corporal leve, o Juiz não pode condená-lo por lesões graves, caso em que a sentença seria ultra petitum.

Tal regra, como não poderia ser diferente, tem encontrado guarida na jurisprudência, consoante se lê a partir de trecho de julgado do Superior Tribunal de Justiça, in litteris:

PENAL. PROCESSO PENAL. AUMENTO DA PENA. INOBSERVANCIA DO ART. 384 DO CPP.

I – O princípio da correlação entre a imputação e a sentença representa uma das mais relevantes garantias do Page 267direito de defesa, que se acha tutelado por via constitucional.

II – Qualquer distorção, sem observância do disposto no art. 384, da Lei Processual Penal, significa ofensa àquele princípio e acarreta nulidade da sentença (RSTJ 68/340; Resp

III- Recurso conhecido e provido para anular o feito a partir da sentença de 1. grau.

(REsp 44.619/AM, Rel. Ministro PEDRO ACIOLI, SEXTA TURMA, julgado em 09.05.1994, DJ 30.05.1994 p. 13521 - destaques acrescentados)

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. MUTATIO LIBELI. ART. 384, CAPUT, DO CPP. OBSERVÂNCIA. CONDENAÇÃO. PROVAS DO INQUÉRITO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. TESTEMUNHO POLICIAL. EFICÁCIA PROBATÓRIA. VALORAÇÃO DAS PROVAS. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. PRECEDENTES MATÉRIA RESERVADA À APRECIAÇÃO EM SEDE DE REVISÃO CRIMINAL.

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