A objetivação do controle difuso na ordem jurídica brasileira

AutorPedro Rafael Malveira Deocleciano; José Péricles Pereira de Sousa
Páginas5-20

Page 5

Introdução

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro passa por um momento de extrema relevância.12 Durante, praticamente, toda a evolução do controle das normas, vigorou o modelo do judicial review, sendo de rara utilidade o sistema europeu. No entanto, em decorrência da promulgação da Constituição de 1988, ocorreu uma considerável expansão do controle concentrado de constitucionalidade, não apenas com a manutenção de alguns instrumentos de controle já existentes, mas também com a criação de outros (ADC e ADPF), a regulação infraconstitucional e o aumento do rol de legitimados para a propositura dessas ações.

O ordenamento jurídico brasileiro, em que pese a prevalência do controle abstrato, abriga um sistema eclético e bastante peculiar, sendo, tradicionalmente segregado, levando em consideração: o interesse, a competência, a apreciação, os efeitos, etc. Não obstante esta divisão, o Supremo Tribunal Federal vem coordenando mudanças significativas no que diz respeito à aproximação de ambos os sistemas. Em verdade, mais apropriado seria dizer que existe uma objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Realidade respaldada na força normativa da Constituição.

E a experiência demonstra, a cada dia, que a tendência dominante - especialmente na prática deste Tribunal - é no sentido da crescente contaminação da pureza dos dogmas do controle difuso pelos princípios reitores do método concentrado'. Detentor do monopólio do controle direto e, também, como órgão de cúpula do Judiciário, titular da palavra definitiva sobre a validade das normas no controle incidente, em ambos os papéis, o Supremo Tribunal há de ter em vista o melhor cumprimento da missão precípua de guarda da Constituição, que a lei fundamental explicitamente lhe confiou' 3 .

A Emenda Constitucional nº 45/2004, responsável pela Reforma do Judiciário, além das inovações ao controle concentrado, trouxe também novas características ao recurso extraordinário. Modificações que, intencionais ou não, expressam exatamente o desígnio de transformar o recurso extraordinário em um utensílio do controle abstrato de constitucionalidade4. Page 6

Em decorrência dessa perspectiva de objetivação do controle difuso, faz-se premente uma releitura do sistema supra, avaliando, de maneira detida, as interseções existentes entre os dois modelos de controle das normas. E, por fim, analisar o papel do Senado Federal no que diz respeito à suspensão da execução da norma declarada inconstitucional por maioria absoluta dos membros do STF.

1 O controle difuso de constitucionalidade no STF

O STF, como guardião da Constituição, tem o objetivo de torná-la cotidiana na realidade social. Em decorrência desse dever, percebem-se, ultimamente, grandes avanços no exercício da jurisdição constitucional. E uma das mais importantes mudanças trata-se da objetivação do recurso extraordinário, ressaltada pelo visível prestígio às decisões plenárias proferidas em controle difuso.

Quando a causa chega ao Supremo Tribunal Federal em razão de recurso extraordinário, o controle de constitucionalidade continua sendo incidental ao julgamento da causa. Porém, a idéia de que a decisão proferida em razão de recurso extraordinário atinge apenas as partes tem sido mitigada na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorreu, inicialmente, após a fixação do entendimento de que, após o Supremo ter declarado, na via incidental, a inconstitucionalidade de uma lei, os demais tribunais estão dispensados de observar o art. 97 da Constituição Federal (reserva de plenário), podendo a inconstitucionalidade da lei, nesse caso, ser reconhecida pelos órgãos fracionários de qualquer tribunal. E, recentemente, surgiu no Supremo Tribunal Federal orientação que nega expressamente a equivalência entre controle incidental e eficácia da decisão restrita às partes do processo. Essa tese sustenta que mesmo nas decisões tomadas em sede de recurso extraordinário - ou seja, em controle incidental -, quando objeto de manifestação do Plenário do Supremo Tribunal Federal, gozam de efeito vinculante em relação aos demais órgãos da Administração e aos demais órgãos do Poder Judiciário5.

Dentre as várias questões enfrentadas pelo Supremo, anota-se o recurso extraordinário n. 388.830-7/RJ, que invoca a nova orientação. Quando da apreciação do referido recurso, o ministro Gilmar Mendes, apesar de a questão suscitada ser fundamentada em determinados dispositivos da Constituição, resolveu conhecer e dar provimento ao expediente com base em diferentes dispositivos constitucionais e, ademais, em um julgado do Pleno, levando em consideração que o acórdão recorrido divergia do posicionamento deste. Page 7

No recurso extraordinário, alega-se violação aos arts. 59 e 239 da Constituição Federal [...] Ocorre, porém, que não se verificou a violação ao art. 239 da Carta Magna, tendo em vista que o STF, em diversas oportunidades, declarou a constitucionalidade de alterações do PIS por legislação infraconstitucional, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 [...] Entretanto, o acórdão recorrido divergiu da orientação firmada no julgamento do RE 357.950, Pleno, sessão de 09 de novembro de 2005, em que ficou assentada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718, 1988. Assim, apesar de não se vislumbrar no presente caso a violação ao art. 239 da Constituição, diante dos diversos aspectos envolvidos na questão, é possível que o Tribunal analise a matéria com base em fundamento diverso daquele sustentado. A proposta aqui desenvolvida parece consultar a tendência de não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva6. (grifo nosso)

A propósito, o assunto rende discussão em diversos tópicos, cada qual merecendo destaque, posto que de relevo para o entendimento desta nova tendência.

1. 1 Amicus curiae

A figura do amicus curiae (amigo da Corte), segundo a doutrina, significou uma providência que confere caráter pluralista ao processo objetivo de controle de constitucionalidade, levando em conta que se tornou aceitável a participação de órgãos ou entidades no processo objetivo, tendo por finalidade esclarecer matéria relevante ou controversa em pauta no Pretório Excelso. Nos moldes do arts. e 18, da Lei 9.868/99, tornou-se possível, através de despacho irrecorrível do relator, a admissão destes terceiros como auxiliares da Corte, propiciando a esta uma melhor aferição da matéria a ser julgada.

A mesma lei tratou de inserir dispositivos no CPC que conferem a participação de terceiro em questões incidentais de controle de constitucionalidade nos Tribunais. Walter Claudius Rothenburg citado por Dirley da Cunha Júnior entende que "não há negar que, com a previsão contida nos §§ 1º, 2º e 3º do art. 482 do CPC, pretendeu-se emprestar um caráter de concentração e objetivação ao controle difuso-incidental exercido no âmbito dos Tribunais"7.

O STF vem considerando conveniente a participação do amicus curiae (inclusive a sustentação oral) em sede de controle difuso, admitindo a nova tendência de objetivação deste processo constitucional. O RE n. 416827/SC realça essa orientação: Page 8

"Por maioria, o Tribunal, considerando a relevância da matéria, e, apontando a objetivação do processo constitucional também em sede de controle incidental, especialmente a realizada pela Lei 10.259/01, resolveu questão de ordem no sentido de admitir a sustentação oral da Confederação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas e da União dos Ferroviários do Brasil"8.

Esse sentimento de objetivação foi ainda mais acentuado pela possibilidade da participação de terceiros, quando da análise da repercussão geral, em sede de recurso extraordinário. Situação acrescentada pela Lei 11.418/06, inserindo nova disposição ao Código de Processo Civil (art. 543-A, § 6º)9. Assim, no ímpeto de atestar a relevância da matéria a ser apreciada pelo STF, em decorrência da comprovação dos requisitos estabelecidos na lei da repercussão geral, a participação do amicus curiae realça o caráter abstrato de uma discussão inicialmente subjetiva, enfatizando, assim, objetivamente, a questão constitucional observada, semelhante a outros casos concretos.

1. 2 Modulação dos efeitos no controle difuso

A perspectiva de fusão dos modelos de controle de constitucionalidade na realidade brasileira é algo bem palpável quando se trata do que se convencionou chamar de modulação dos efeitos. Esse mecanismo, previsto no art. 27 da Lei 9.868/99, oportunizou ao Supremo Tribunal Federal indicar o limite temporal da eficácia de suas decisões em controle concentrado, caso seja comprovada situação de defesa da segurança jurídica ou relevante interesse social10.

Estes efeitos poderão ter caráter: retroativo (ex tunc), prospectivo (ex nunc) ou pro futuro (designação de um momento a posteriori para a ocorrência dos efeitos). Nesse sentido, a título de breve observação, pode-se afirmar que esta modulação impede em imputar quais os efeitos, por exemplo, de uma decisão em ADI ou ADC, pois apenas a matéria e suas implicações, objeto de julgamento pelo STF, indicarão o melhor juízo.

O ministro Gilmar Mendes defende que, apesar de vigorar, em regra, o princípio da nulidade da norma, este poderá ser afastado quando confrontado, por exemplo, com o princípio da segurança jurídica ou outro de relevante interesse social, tendo como mediador desta ponderação o princípio da proporcionalidade11...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT