Objeto Jurídico do Crime

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas79-93

Page 79

2.1. Considerações preliminares e conceito

Bem representa tudo quanto satisfaça uma necessidade humana ou do agrupamento, a despertar um interesse pessoal (bens individuais) ou coletivo (bens supraindividuais ou difusos) a seu respeito. Se esse bem igualmente interessar ao mundo do Direito, que o regulamenta por meio de suas prescrições legais, recebe a denominação de bem jurídico. Se esta disciplina legal, num sentido de proteção e garantia, é procedida no ordenamento jurídico pelo Direito Penal, surge a figura do bem jurídico penalmente tutelado.

Ao elevar determinados comportamentos antissociais à categoria de crime, a lei penal tem a finalidade de preservar algum direito ou interesse no contexto da vida comunitária. O objeto de proteção do tipo legal delitivo constitui o chamado objeto jurídico ou objetividade jurídica, em suma, o bem jurídico penalmente tutelado, o objeto de proteção do tipo.

Na criação da norma jurídica incriminadora o Direito Penal não procede, como é evidente, de forma aleatória, como se definisse crimes por mero passatempo ou entretenimento. Sempre norteia o Direito Penal, na construção dos tipos penais, um fim que busca alcançar, id est, o escopo de proteção e garantia. Não por outra razão, todo preceito incriminador demarcado pelo Direito Penal apresenta um bem jurídico que a norma almeja tutelar. Assim, em qualquer tipo legal delitivo sempre está incrustado um objeto jurídico, que participa da estrutura típica do crime e, como elemento que o integra, torna-se um de seus pressupostos de existência.

2.2. Objetividade jurídica genérica e específica integração ao tipo. princípio da insignificância

O objeto jurídico penalmente tutelado, como visto, integra o tipo e, como um de seus componentes, condiciona a própria adequação do episódio concreto à norma incriminadora. Cumpre, portanto, para a tarefa de averiguação da subsunção típica do fato, ser identificada, no plano abstrato da definição, a respectiva objetividade jurídica.

Page 80

Para esse mister, é preciso notar que o Direito Penal, ao definir os crimes, inicialmente toma em consideração o objeto jurídico sob ótica abrangente, em visão de contexto e conjunto, para, ato contínuo, desmembrar e destacar, gradativamente, cada uma de suas partes, a fim de protegê-las dentro do todo.

Quando o bem jurídico é protegido em sua amplitude, ou seja, no seu quadro geral, fala-se em objetividade jurídica genérica. Quando o bem jurídico tutelado representa parte separada do contexto, uma fração destacada e particularizada do conjunto, fala-se em objetividade jurídica específica.

Para bem entender esse desdobramento do bem jurídico penalmente tutelado em objetividades genéricas e específicas, convém ilustrar hipoteticamente.

Digamos que diversas pessoas fossem proprietárias comuns de um avião e, por consenso geral, se dispusessem a proteger essa aeronave de possíveis ações que comprometessem a segurança do aparelho ou o danificassem. Criariam, então, para atender a esse propósito, preceitos incriminadores visando à preservação da aeronave. Sob esse prisma, todos os tipos legais delitivos criados convergiriam para a tutela do avião e ele constituiria o objeto de proteção dessas normas, considerado o aparelho no seu conjunto. O avião representaria, dentro da estrutura deste conjunto de tipos, a objetividade jurídica genérica.

A seguir, na medida em que os tipos decompusessem as partes integrantes do avião, tomado como gênero, e as tutelassem de forma individualizada, surgiriam as objetividades jurídicas específicas das normas incriminadoras. Assim, obedecido um critério ou escala de importância, em primeiro lugar se cuidaria de proteger o motor deste avião e seriam definidas como criminosas condutas que pudessem danificá-lo ou comprometer sua segurança. Em seguida, seriam tutelados, por meio de preceitos incriminadores, sua cabine de comando e painel de controle, proibindo-se, pela ameaça de inflição de pena, a realização de ações que lhes fossem nocivas. Ato contínuo, seriam ainda protegidos o trem de pouso ou aterrissagem, as hélices, a ala dos passageiros, o compartimento de carga e bagagem etc.

Nessa conjuntura, em todos estes tipos legais delitivos o avião constituiria seu objeto jurídico genérico e o motor, cabine de comando, hélices, trem de pouso etc. representariam os objetos jurídicos específicos, vinculados ao conjunto. Por via de consequência, se, dentro do gênero avião, o motor fosse sua objetividade jurídica específica e se descrevesse como delito "colocar areia no motor", é insofismável que se alguém pusesse areia em qualquer outro motor (carro, barco, máquina industrial...), que não o da aeronave, o episódio careceria de tipicidade, pela falta de identificação, na lesão ao bem jurídico, com a objetividade genérica protegida (motor de avião).

Na definição dos crimes, destarte, o bem jurídico penalmente tutelado é considerado, num primeiro plano, na sua compreensão de conjunto e, a seguir, de parte integrante atrelada ao todo.

Page 81

Para a identificação dos objetos jurídicos genérico e específico do crime é imperioso atentar, ad primum, que cada tipo legal delitivo está subordinado a um título e a um capítulo no modelo da lei penal. No título, a que se submete o tipo, é encontrada a menção à objetividade jurídica genérica e, no capítulo, a referência à específica.

No homicídio (art. 121, CP) e aborto (art. 124 a 126, CP), verbi gratia, constitui objeto jurídico genérico a pessoa (título I) e específico a vida (capítulo I). Nos delitos de calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP), ainda sob a objetividade jurídica genérica pessoa (título I), desponta como bem jurídico específico a honra (capítulo V), assim como, subsistindo o gênero pessoa, exsurge como objeto jurídico específico do sequestro ou cárcere privado (art. 148, CP) a liberdade pessoal (capítulo VI). Dessa maneira, no conjunto pessoa foram destacados para a proteção penal, como direitos personalíssimos integrantes do gênero, respectivamente, a vida, a honra e a liberdade.

No crime de violação de direito autoral (art. 184, CP), a propriedade imaterial (título III) é o objeto jurídico genérico e a propriedade intelectual (capítulo I) o específico.

Estupro (art. 213, CP) e ato obsceno (art. 233, CP), ambos tendo a dignidade sexual como objetividade genérica (título VI), apresentam nesse contexto, como bens jurídicos específicos, respectivamente, a liberdade sexual (capítulo I) e o pudor (capítulo VI).

Família é o objeto jurídico genérico da bigamia (art. 235, CP, título VII) e casamento (capítulo I) o específico, assim como a administração pública (título XI) ressurte como objetividade genérica do falso testemunho (art. 342, CP) e a administração da Justiça (capítulo III) como específica.

Algumas vezes, entretanto, na direção das exceções, o objeto jurídico específico não pode ser identificado no capítulo ao qual pertence o tipo. Nesses casos, a objetividade específica encontra-se implícita no preceito primário do tipo e nele deve ser identificada por meio do espírito da norma incriminadora. É o que sucede sempre que o capítulo contiver, em vez da alusão ao direito protegido, o nomen juris do crime.

No furto (art. 155, CP), por exemplo, onde o patrimônio representa o objeto jurídico genérico (título II), tem-se no capítulo I, a que se submete o tipo, a denominação jurídica do delito. A mesma situação ocorre na lesão corporal (art. 129, CP), que tem a pessoa (título I) como objetividade genérica, mas cujo capítulo (II) estampa o nome do próprio crime. Nesses casos, é inquestionável que furto e lesão corporal, menções verificadas nos capítulos, não representam o objeto de proteção e garantia, mas, pelo contrário, constituem exatamente o comportamento incriminado. Verifica-se, em face de tais quadros, que a objetividade jurídica específica encontra-se implícita no enunciado típico do crime. Deve ela, então, ser identificada dentro do preceito primário que descreve o ilícito. No furto, objeto jurídico específico é a propriedade (segundo alguns autores, com alguma controvérsia, também a posse - v. n. 7.1.2). Na lesão corporal, a integridade anátomo-fisiopsíquica do ser humano.

Page 82

Necessariamente o tipo legal delitivo apresenta seu objeto jurídico ou de proteção (genérico e específico). Desta sorte, na consagração hipotética do crime sempre há um direito protegido. Como corolário, na concreção do fato incriminado é imprescindível ocorrer violação ao direito que abstratamente era tutelado. Somente é possível a tipicidade, pela identificação entre os elementos descritivos e os fáticos, se o bem abstratamente protegido for aquele efetivamente atingido. A objetividade jurídica, tal como no exemplo retrofigurado do motor do avião, participa do preceito típico e retrata componente que condiciona a própria configuração jurídica do crime. Assim, resulta indiscutível que, para aferir-se da subsunção típica do fato concreto, impende cotejá-lo com o tipo que o descreve, a fim de dessumir se o direito protegido foi realmente aquele violado.

À guisa de ilustração, suponha-se que o art. 121 do CP descartasse a menção ao alguém de seu preceito primário e, mantendo seu título e capítulo inalterados, simplesmente dispusesse, na dicção do delito: "Matar - Pena: reclusão de seis a vinte anos". Se, diante deste enunciado típico, certa pessoa, armada com um revólver, fizesse disparos contra um animal e o matasse, é inconcusso que não perpetraria fato com visos típicos. Embora realizasse ação identificável com aquela inscrita no tipo (matar) e não obstante atingisse objeto jurídico correspondente ao mencionado no capítulo (vida), é bem de ver, no entanto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT