O oculto

AutorPaulo Somlanyi Romeiro
Ocupação do AutorAdvogado, doutor em Direito Econômico, Tributário e Financeiro pela Faculdade de Direito da USP (FADUSP)
Páginas201-262
CAPÍTULO 3
o ocULTo
Uma vez que, como vimos, boa ta rde da doutrina ins iste na
ideia de um urban ismo neutro, científico e racional e de um di-
reito urbanístico que teria evoluído da ciência do urbanismo,
entendemos ser fundamental, para se compreender o que é o
direito urbanístico, levar em consideração as relações entre o
poder, o direito e a verdade e entre a teoria da soberania e o
poder discipli nar, que levam à compreensão do di reito urbanís-
tico como um mecanismo da sociedade de norma lização que
oculta o exercício do poder discipli nar.
3.1. Direito, poder, verdade e discurso científico
“Força do verdadeiro, vontade de saber, poder da
verda de”1, assim Foucault resume a história do Ocidente. O
direito urbanístico contribui para a legiti mação da prática do
urbanismo, por meio da construção e repetição de um discurso
de verdade acerca de um urbanismo como ciência, destinado a
pôr ordem ao caos. A nosso ver, a anál ise que Michel Foucault faz
1 FOUCAULT, Michel. O go verno dos vivos, 2014, p. 93.
Direito urbanístico: entre o caos e a injustiça
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dos regimes de verdade e d a associação do poder e do dir eito com
a verdade, a parti r da própria ideia da constr ução histór ica de
um homem do conhecimento, é bastante relevante para desna-
tural izar a forma como a doutrina ju rídica urbaníst ica brasileira
produz e reproduz uma ideia sobre o urbanismo.
Para o autor, as múltiplas rela ções de poder existentes em
qualquer sociedade f uncionam a parti r da produção e circulação
do discurso. Di reito e verdade se organiz am de forma especial na
sociedade moder na2. Formam o triângu lo poder, direito e ver-
dade3. Foucault se propõe a percorrer o que ele chama de o
“como” do poder.
Tentar apreender seus mec anismos, entre do is pontos de refe-
rência ou dois li mites: de um lado, as reg ras de direito que deli-
mitam form almente o poder, de outro lado, a outr a extremidade,
o outro lim ite, seriam os efeitos de verd ade que esse produz, que
esse poder conduz e que, por s ua vez, reconduzem esse poder4.
Para Foucault, além de est armos “obrigados ou condenados
a confessar a verdade ou a encontr á-la”5, estaríamos submetido s
2 De ac ordo com o autor, “Em uma socieda de como a nossa, mas no f undo
em qualquer socie dade, existem relaçõe s de poder múltiplas que atra-
vessam, ca racterizam e con stituem o corpo socia l e que essas relações
de poder não podem se d issociar, se est abelecer nem funcion ar sem uma
produção, uma a cumulaç ão, uma circu lação e um f uncionamento do
discur so. Não há possibil idade de exercício do poder s em uma certa
economia dos d iscursos de verdade qu e funcione dentro e a par tir des-
ta dupla exi gência. Somos submetidos pelo po der à produção da verda-
de e só podemos exercê-los a través da produçã o da verdade. Isto va le
para qualq uer sociedade, mas cr eio que na nossa as rela ções entre poder,
direito e verd ade se organiza m de uma maneira e special”. FOUCAULT,
Michel. Microf ísica do poder, 2007, p. 179-180.
3 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, 2005, p. 21.
4 Id em, ibidem, p. 21.
5 FOUCAULT, Michel. Mic rofísica do poder, 2007, p. 180.
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à verdade também por ela ser lei e pro duzir “o discurso verda dei-
ro que decide”6. Para o autor, “somos julgados, condenados,
classificados, obrigados a desempenhar tarefa s e destinados a
um certo modo de vi ver ou morrer em funç ão dos discursos ver-
dadeiros que tra zem consigo efeitos específicos de poder”7.
Regras de d ireito, mecani smos de poder, efeitos de verda-
de, ou regras de poder e poder dos discursos verdadeiros, são o
campo que o autor se propõe a investigar8. Par timos do pressu-
posto, portanto, de que o direito produz, ou ao menos contribu i
para produzi r, discursos de verdade que trazem consigo efeitos
específicos de poder. O que entendemos ser uma das chaves
possíveis e necessárias para compreender a relação entre o di-
reito urban ístico e o urbanismo (tomado como prát ica e ciência),
por este emitir efeitos de p oder, amparado nos di scursos produ-
zidos pelo direito u rbanístico. Processo no qual o direito urba-
nístico e o urbanismo se tornam ao mesmo tempo legiti mador e
legitimado u m do outro. Para o autor, nesses casos “não esta mos
diante de um a verdadeira obrigação de verdade, mas antes do
que poderíamos chamar de coercitiv idade do não verdadeiro ou
coercitivid ade e constrangência do não verific ável”9.
Para o autor, que procura explic ar, em Do governo dos
vivos10, o que vêm a ser os regimes de verdade, no sentido de
responder à objeção à utilização apenas do Cristian ismo como
exemplo, esses regimes se relacionam com aquilo que sabemos
que é falso, ou do que não se tem cert eza da verdade, ou que não
pode ser demonstrado ser verdadei ro ou falso, algo que precisa
6 FOUCAULT, Michel. Mic rofísica do poder, 2007, p. 180.
7 Id em, ibidem, p. 180.
8 Id em, ibidem, p. 180.
9 FOUCAULT, Michel. Do g overno dos vivos, 2014, p. 87.
10 Idem, ibidem.

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