A Genética do Crime: Perigos Ocultos entre Falácias, Reducionismos, Fantasias e Deslumbramentos

AutorEduardo Luiz Santos Cabette
Páginas262-341

Eduardo Luiz Santos Cabette. Delegado de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP.

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“Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”. Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.

“Nada se sabe, tudo se imagina”.

Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107.

Introdução

O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.

A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse ramo científico.

Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos, surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma basePage 263 marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).

Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genéticas pode influenciar os estudos criminológicos, ocasionando uma importante alteração de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória do pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos, prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.

Uma inicial incursão acerca da evolução histórica do pensamento criminológico, será capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da genética no campo criminológico hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de velhos paradigmas etiológicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram equivocadas e ilusórias.

Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de alguma maneira atingir a existência humana, ensejando vilipêndios a tudo aquilo que caracteriza o “ser” do homem.

1 Esboçando uma evolução histórica da criminologia

O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estudos criminológicos1 encontra-se no surgimento do Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal preocupava-se com o estudo dos postulados jurídico – penais, procurando desenvolver uma formulação teórico – dogmática do Direito Penal, o advento da Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltando os olhos daPage 264 pesquisa científico – criminal para o estudo do fenômeno do crime e, especialmente, da figura do criminoso.

O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois que defende a irradiação do método científico para todas as áreas do saber humano, até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas desse referencial teórico então dominante.

O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao método das ciências naturais, objetivando limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de mensuração e descrição. Por isso é que seu resultado acaba sendo a limitação do Direito às normas legais, evitando a consideração de fatores axiológicos, metafísicos etc.

O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao método de experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o fenômeno da criminalidade.

A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo método científico, dando destaque nunca dantes constatado ao estudo do homem criminoso e à pesquisa das causas da delinqüência.

Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com sustentação em dados empíricos ofertados pela demonstração experimental de leis naturais seguras e imutáveis.

O criminoso passa a ser objeto de estudo, uma fonte de pesquisas e experimentos com vistas à descoberta científica das causas do fenômeno criminal.

A obstinada busca de causas explicativas do agir criminoso em oposição às condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação do “livre arbítrio”,Page 265 apontado até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitimador da responsabilidade criminal.

É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista, pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja apropriar-se de um conhecimento que propicie o domínio seguro de leis constantes a regerem o mundo e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele desviado.

A conseqüência imediata foi a consideração do criminoso como um “anormal”. A partir daí, bastaria dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar, de forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana aparentemente homogênea ou normal.

O primeiro grande passo dado por um pesquisador nesse sentido foi a doutrina preconizada por Cesare Lombroso, destacando-se a publicação de sua conhecida obra “O homem Delinqüente”, em 1876.

Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de “homo sapiens”, o qual apresentaria determinados sinais, denominados “stigmata”, de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chamado “criminoso nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões do crânio, maxilar inferior procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura dos braços, mãos e pés, pouca sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade sexual etc.). Todos esses sinais indicariam um “regresso atávico”, tendo em conta sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso intentou demonstrar uma ligação entre a epilepsia e aquilo que chamava de “insanidade moral”.

Percebe-se claramente o conteúdo determinista das teorias lombrosianas, o qual conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora,Page 266 se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, tendo em vista uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigido por forças naturais irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sendo, jamais poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sendo as práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a sociedade legitimada a defender-se, impondo-lhe desde a prisão perpétua até a pena de morte.2

A doutrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por estudos ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica entre homens que perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpridores da lei.

Não obstante, deve ser atribuído a Lombroso o mérito de ser o primeiro a impulsionar os estudos que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua Antropologia Criminal, os estudos do homem delinqüente, razão pela qual tem sido considerado o verdadeiro “Pai da Criminologia”.3 A partir dele começam os mais diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o comportamento criminoso.

Inúmeras investigações científicas nos mais variados campos das ciências naturais e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas do fenômeno criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.

Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais destacados: Biologia Criminal, Criminologia Genética4, Psiquiatria Criminal, Psicologia Criminal, Endocrinologia Criminal, Estudos das Toxicomanias etc.

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Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação etiológica endógena do crime e do homem criminoso. Procura-se apontar uma causa da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da criminalidade.

Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia Sociológica”, tendo como seu mais destacado representante Enrico Ferri.

A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”, pondo a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da criminalidade, olvidava as importantes influências...

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