Ocupação tradicional indígena: uma análise baseada nos jogos de linguagem de Ludwig Wittgenstein

AutorCristina Nascimento de Melo - Julio Cesar de Aguiar
CargoMestranda em Direito na Universidade Católica de Brasília - Doctor of Philosophy (PhD) in Law, pela Universidade de Aberdeen, Reino Unido
Páginas77-93
Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 11, n. 24, p. 01-165, maio/ago. 2016
OCUPAÇÃO TRADICIONAL INDÍGENA: UMA ANÁLISE BASEADA
NOS JOGOS DE LINGUAGEM DE LUDWIG WITTGENSTEIN
TRADITIONAL INDIGENOUS OCCUPATION: AN ANALYSIS BASED
ON LUDWIG WITTGENSTEIN'S LANGUAGE GAMES
Cristina Nascimento de Melo1
Julio Cesar de Aguiar2
Resumo: O arti go discute o conceito de ocupação tradicional
como requisito constitucional para a demarcação de terras indígenas a partir
da perspectiva d os jogos de linguagem de Ludwig Wittgen stein. Argumenta-
se que o jogo de linguagem constitucional correspondente traz uma regra
implícita segun do a qual, ao decidir disputas sobre terras indígenas, o
significado da frase "ocupação tradicional" deve ser "o cupação de acordo
com os costumes e tradiç ões das pessoas em causa”, não de acordo com
quaisquer usos modernos do mesmo, como aqueles inseridos no Códig o Civil
brasileiro. Como exemplo da relevância do tema, o artigo d iscute e critica o
uso pelos membro s do Supremo Tribunal (STF) da frase 'ocupação
tradicional', quando do julgamento do ca so conhecido como Limão Verde.
Palavras-chave: Jogos de linguagem. Tradicionalidade.
Ocupação. Demarcação de terra indígena. Multiculturalismo. Jurisdição
constitucional.
Abstract: The article discuss the concept of tra ditional occupation
as a constitutional requisite for the demarcation of indigenous territorie s from
the perspective of Ludwig Wittgenstein's languag e games. It argues that the
corresponding constitutional language game bri ngs a bout a n implicit rule
according to which, when deciding disputes regarding i ndigenous territories,
the meaning of the phrase 'traditional occupation' must be 'occupati on
according to the costu mes and traditions of the peopl e in question', instead of
according to any modern uses of it, like those inserted i n the Brazilian Civil
Code. As an example of the relevan ce of this issue, the arti cle discuss and
criticizes the use by the members of Brazilian Supreme Court (STF) of t he
phrase 'traditional occupation', when judging t he case known as Limão
Verde.
Keywords: Language games. Tradicionality. Occupation.
Indigenous land demarcation. Multiculturali sm. Constitucional jurisdiction.
Sumário: Considerações Inciais. 1. Ludwig Witt gensgtein e os
jogos de linguagem. 2. Os jogos de linguagem e as decisões judiciais sob a
ótica do E stado Multi cultural. 3. O caso da Terra Indígena Li mão Verde.
Considerações finais. Referências.
1 Mestranda em Direito na Universidade Cat ólica de Brasília, na área de concentração “Direito,
Instituições e D esenvolvimento”, vinculada à linha de pesquisa “Direito, Ciências, Instituições e
Desenvolvimento”. Procuradora da Repú blica. cristinamelo25@gmail.com
2 Doctor of Philosophy (PhD) in Law, pela Universidade de Aber deen, Reino Unido. Professor do
Mestrado da Uni versidade Católica de Bra sília. Procurador da Faze nda Nacional.
juliocesar.deaguiar@gmail.com.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A linguagem é um dos temas centrais da filosofia e não poderia ser
diferente. Talvez por permear todas as grandes questões da vida humana, de Platão
até os filósofos contemporâneos, ainda não foi possível atribuir ao termo um
sentido unívoco.
A complexidade da linguagem traz inúmeras implicações. A título de
exemplo, o conceito de um verbete para os índios, como “ocupação”, só faz sentido
no contexto cultural do povo em questão. Ao mesmo t em po, tal premissa é
implicitamente inserida na Constituição de 1988 ao fazer uso do termo
“tradicionalmente” para qualificar a ocupação ali assegurada.
Em ambos os casos, contudo, é preciso extrair das palavras os significados
conforme o uso e daí eleger os jogos lin guísticos resultantes. Sem tais jogos,
surgem obstáculos na formulação de canais de entendimento, que, em última
medida, podem esvaziar a própria proteção jurídica que se visa alcançar.
Rememora-se que o momento central da fil osofia da linguagem se deu no
início do século XX, c om a cha ma da “virada linguística” (linguistic turn),
movimento que despontou como crítica à tradição mentalista e metafísica da
linguagem, concebida tal qual uma estrutura lógica ou um sistema de signos com
regras internas, independentes do sujeito linguístico.
A visão pragmática surge não imediatamente, mas após a transição por
novas formulações que concebiam a linguagem como fenômeno essencialmente
cultural e, dessa forma, histórica e socialmente determinada - traço marcante dos
trabalhos de Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf.
Emerge em seguida, com Ludwig Wittgenstein e Austin, a “virada
pragmática” da linguagem, concebida primordialmen te como ação. Nesse contexto,
a linguagem deixa de ser vista a partir da sua relação com um objeto, mas sim pela
forma como é empregada. O sentido de uma palavra, portanto, é dado pelo seu uso
na linguagem (meaning is use).
Descartada a crença da existência de linguagem privada, eis que a
linguagem só é compreensível diante do uso dado pelo falante/ouvinte em um
determinado contexto, Wittgenstein apresenta os jogos de linguagem como as
diversas maneiras de se usar a palavras adotando-se regras identificáveis.
Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar como a
linguagem pode reverberar em uniformização de significados assimetricamente
impostos, distanciando-se de uma abordagem amparada na preservação do
patrimônio cultural brasileiro e no direito fundamental à terra das comunidades
indígenas.
Sendo a vivência sociocultural de um dos falantes muitas vezes
radicalmente distinta e, por isso mesmo, frequentemente ignorada pelos demais, os
laudos antropológicos assumem posição de de staque como instrumentos dialéticos
e funcionais aos jogos de linguagem. Através da abordagem antropológica é que se
poderá entender o uso dado a determinados termos como “tradicional” e
“ocupação” por aquele povo indígena que integra a lide.
Nessa linha, o caso da terra indígena Limão Verde, julgado pelo
Supremo Tribunal Federal no final de 2014, será o exemplo trazido de modo a
apurar, com base na form ula çã o dos jogos de linguagem de Wittgenstein, como as
significações dos verbetes operam em sede jurisdicional, bem como qual a

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