A omissão própria e a omissão imprópria: situação atual na dogmática jurídica penal

AutorRuy Celso Barbosa Florence
Ocupação do AutorMestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas135-152

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1. Considerações iniciais

Pensar em delito sempre esteve relacionado com a lógica de uma ação em sentido estrito, possibilitando aos comportamentos omissivos ocuparem um segundo plano dentro do Direito penal.

No entanto, os rumos tomados pelos povos civilizados durante o período da modernidade e industrialização encarregaram-se de criar novos comportamentos humanos, fazendo com que, na atualidade, a conduta omissiva seja vista tal qual uma alternativa entre as ações penalmente reprovadas. Não há como negar que o atropelamento de um pedestre tanto pode ocorrer em razão de se acelerar o veículo ou por não íreá-lo. E essa ocorrência pode, ainda, dependendo das circunstâncias, não ter nenhuma repercussão penal para a atual sociedade, entendida como uma sociedade de risco, que exige um outro olhar do Direito penal em relação às ações do homem que nela vive e a compõe.

Conforme adverte Niklas Luhmann1: "pode ocorrer que um ladrão roube minha prataria, mas qual é a relevância disso em

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comparação com a falência do meu banco, a demissão do meu emprego, a mudança do código de obras do meu município, a greve das minhas fábricas, ou até a greve em importantes serviços públicos?"

É sob essa perspectiva, de uma sociedade com outros valores em que aumenta a sensação de insegurança, e as ameaças nem sempre residem em comportamentos juridicamente proibidos, que as condutas jurídico-penais, incluída a omissão, têm sido ob-jeto de estudo e revisão por novas teorias.

Dentre essas teorias destacam-se as vinculadas ao sistema funcionalista ou teleológico-racional do delito.

2. As correntes funcionalistas

As denominadas correntes "teleológico-racionais" ou "funcionalistas" buscam construir um modelo de Direito penal mais poroso às remodelações político-criminais2.

Apresentam-se com a proposta de corrigir os modelos racio-nalistas e finalistas, criticando as estruturas ontológicas propostas por Hans Welzel, enfatizando que o Direito penal não deve partir dessas estruturas lógico-objetivas, mas exclusivamente de seus próprios fins3. Portanto, a ação passa a ser normativa e valorada sob o enfoque político-criminal.

Essas correntes tomam por base as diretrizes do neokan-tismo, especialmente a construção teleológica de conceitos e a materialização das categorias do delito, ordenando esses pontos segundo a missão constitucional do Direito penal, de proteger bens jurídicos por meio da prevenção geral ou especial4. Exceção feita quanto a este último aspecto pela teoria de Gúnther Jakobs5,

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que considera ser missão do Direito penal a proteção da validade das normas.

Com a pretensão de não só explicar o sistema jurídico, mas verificar o comportamento de todo o sistema social, as propostas íuncionalistas aceitam que o sistema penal recepcione outras ciências, como a Sociologia, a Filosofia, a Psicologia e a Criminologia, possibilitando a edificação de um Direito penal mais próximo da realidade, apto a acompanhar as transformações da sociedade.

A sistemática funcional consegue aliar a política criminal aos avanços científicos que lhe são informados pelas outras ciências, fazendo com que o teleologismo por ela pregado não represente um afastamento da realidade.

Entretanto, como pode parecer à primeira vista, a visão teleo-lógica não se distancia do dogmatismo, mas propõe critérios que auxiliem na solução de situações em que os dogmas axiológicos não se apresentem suficientes. Visando garantir a segurança jurídica nesses casos, evitando o arbítrio jurisdicional com a criação de diversificadas soluções aleatórias, baseadas em valores e princípios não coincidentes, o funcionalismo busca desenvolver critérios consistentes dentro da teoria do delito para receber os conceitos de política criminal, dotando-os de conteúdo científico6.

A transformação proposta pelos modelos funcionalistas leva, portanto, à reestruturação da dogmática da parte geral do Direito penal, sem petrificar-se em dogmas e ortodoxias, já que os contornos político-criminais do funcionalismo dão espaço a inúmeras possibilidades de construção7.

Por acreditarem na capacidade motivadora da norma, as propostas funcionalistas elegem o aspecto preventivo da pena, negando o seu caráter retributivo.

Na atualidade, duas grandes tendências do funcionalismo invadem, a partir da Alemanha, a ciência jurídico-penal da Europa, e estão sendo introduzidas no Brasil e em diversos outros países da América Latina.

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Uma delas, tida como radical, é sustentada por Giinther Jakobs, denominada de funcionalismo normativista, e como o próprio nome sugere, defende um funcionalismo preocupado principalmente com a manutenção do sistema normativo.

A outra, de caráter teleológico, e que encontra em Claus Ro-xin seu maior defensor, apoia um funcionalismo moderado, voltado para a proteção dos bens jurídicos, utilizando como instrumento a política criminal.

2. 1 Funcionalismo moderado

Tendo Claus Roxin o seu maior defensor, o funcionalismo moderado ou teleológico-racional persegue uma unidade sistemática de política criminal e Direito penal8. Parte da observação de que na Alemanha, fruto das propostas de Franz von Liszt, a dogmática e a política criminal constituem domínios separados, faltando-lhes a necessária comunicação.

O objetivo do funcionalismo sustentado por Claus Roxin é o de superar o dualismo metódico de Franz von Liszt, introduzindo a política criminal no seio da elaboração dogmática9.

Enquanto para Franz von Liszt a política criminal é o limite extremo da dogmática, entende Santiago Mir Puig10 que Claus Roxin a coloca como seu limite interno, adiantando, assim, a sua função.

A partir desse alicerce, Claus Roxin confere significado polí-tico-criminal às concretas categorias do delito: tipicidade, antiju-ridicidade e culpabilidade, buscando sistematizá-las segundo esse significado.

Por intermédio da aliança entre a sistematização e as considerações de política criminal, entende o autor ser possível obter maior segurança jurídica que decorre também da claridade do sistema.

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O funcionalismo moderado defende que a finalidade do Direito penal deve ser a de proteção dos bens jurídicos. Não apenas de bens jurídicos derivados de um conceito puramente individualista, como prega a Escola de Frankfurt, e que tem Winfried Has-semer o maior divulgador11, mas todos aqueles bens provenientes da Constituição e do Estado de Direito, baseados na liberdade do indivíduo12.

Na construção das categorias específicas do delito, o funcionalismo moderado recorre, muitas vezes, a constatações fáticas, extraindo daí os elementos para fundamentar e limitar a aplicação da lei penal.

Claus Roxin13 esclarece que a valoração político-criminal é apenas um primeiro passo, o fundamento dedutivo do sistema, que deve ser complementado pela indução, ou seja, por um exame apurado da realidade e das situações a serem valoradas a partir de diferentes grupos de casos. Assim, o jurista deve proceder dedutiva e indutivamente ao mesmo tempo.

Entende Claus Roxin14 ser esse método muito mais próximo à vida, equitativo e flexível, do que um sistema determinado com base em definições. Por ser aberto aos fatos novos, não deixa casos sem solução jurídica.

2. 2 Funcionalismo radical

Considerando seu maior representante e divulgador, Gún-ther Jakobs prega um sistema funcionalista que busca a superação do finalismo de Hans Welzel e suas estruturas lógico-objetivas.

Em nome da estabilização social propõe a racionalização do sistema normativo penal, que deve caminhar em direção a seus fins.

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O ponto de partida da teoria de Gúnther Jakobs está na função primordial do Direito penal, que é a de defender a sociedade, e a vigência da norma é encarada como um bem jurídico-penal.

Nesse esquema, o Direito penal é o instrumento apropriado para garantir a funcionalidade de determinada sociedade, e esta funcionalidade só será garantida se as normas forem respeitadas.

Por isso, esse sistema tem a afirmação da validade das normas como o mais importante fim do Direito penal, deixando em segundo plano a proteção a bens jurídicos.

A teoria funcionalista-sistémica da sociedade assumida por Gúnther Jakobs tem raiz nos estudos sociológicos de Niklas Luh-mann, segundo os quais o jurídico é um subsistema do sistema social global15. Dentro do sistema social, as possibilidades do agir humano são inúmeras e aumentam com o grau de complexidade da sociedade em questão16. Como não está só, o homem interage e, ao tomar consciência da presença de outros, surge uma perturbação, por não saber ao certo o que esperar do outro nem o que o outro espera dele17. São essas expectativas que orientam o agir e interagir dos homens em sociedade, diminuindo a complexidade, dando mais previsibilidade e segurança à vida18.

Baseado em Niklas Luhmann, entende Gúnther Jakobs que cada pessoa é portadora de certos papéis sociais, geradores de expectativas nas outras pessoas, que é o que delas se espera no cumprimento de seus papéis.

Assim, uma pessoa é garante das expectativas que gera e a quem compete organizar-se de modo a não produzir decepções, não violar normas penais. De um pedestre espera-se que não se atire diante de um veículo em movimento. De um eleitor espera-se que não venda o seu voto, nem fraude de nenhuma forma a eleição.

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Ao lado desse papel geral e comum, as pessoas têm um status especial, por exemplo, como mãe, pai, médico e outros.

Tanto em relação ao papel social...

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