Onde Estás Meu Senhor? - a questão dos refugiados no Brasil no período 2003-2018

AutorLucca Fantuzzi Soares
Páginas187-204
187
ONDE ESTÁS MEU SENHOR?
LUCCA FANTUZZI SOARES
Introdução
Segundo os dados da Coordenação-Geral do Comitê Nacional
para os refugiados (CONARE), só no ano de 2018, o Brasil reconheceu
1.086 pessoas com o status de refugiados – totalizando assim 11.231
pessoas. Conjuntamente, o país recebeu mais de 160 mil pedidos de
reconhecimento deste status. Também já encontra-se em sexto na
lista de países que mais recebe solicitações de refúgio no mundo e em
primeiro na América Latina1. Os números elevados de pedidos deveriam
suscitar amplos debates no Legislativo, Executivo e Judiciário, porém,
na atual conjuntura, o que se encontra, na verdade, são declarações
de caráter ultranacionalista e xenófobo, associando os refugiados ao
status de “escória do mundo”. Tais declarações, e, concomitantemente, o
apoio à também ultranacionalista e xenófoba Hungria de Órban, e aos
posicionamentos de Donald Trump nos EUA no que tange a questão
dos imigrantes ilegais de origem latina, evidenciam a diculdade de
pautar a temática dos refugiados no contexto brasileiro da gestão de Jair
Bolsonaro.
É a partir desta lógica que este artigo pretende atingir dois
1 Disponível em: rasil-e-o-sexto-
pais-com-maior-numero-de-pedidos-de-refugio-acumulados.shtml>. Acesso em nov.
2019.
a questão dos refugiados no Brasil no
período 2003-2018
CAPÍTULO XI
188
Estado, democracia e sociedade
objetivos: o primeiro, de estabelecer-se como uma base de dados do
período anterior ao de Bolsonaro - especicamente de 2003 a 2018,
passando pelo paradigma da política externa brasileira (PEB) ‘ativa e
altiva’ de Lula (AMORIM, 2013), à (des)continuidade da PEB de Dilma,
até a de Temer (de pouca relevância) - para determinar, através de uma
metodologia de historiograa comparada, o que foi feito referente à
temática dos refugiados no que tange o Ministério das Relações Exteriores
(MRE); e o segundo de tentar estabelecer uma análise de conjuntura do
que há de vir nos próximos anos, partindo do princípio de que a PEB de
Bolsonaro é a antítese da de Lula e tendo em vista que a hipótese inicial
é que à medida que a altivez e a atividade da PEB de Lula se esvaiu, o
temática de refúgio perdeu o destaque na atuação do MRE.
Quem são os Refugiados? - Contextualização sobre o termo
Refúgio. A palavra - cuja etimologia vem do latim (refugĭum) -
no dicionário2, signica o lugar para onde se foge para escapar do perigo.
Na mesma linha, a Constituição Brasileira - em especial a Lei nº. 9.474/9,
o Estatuto do Refugiado - reconhece enquanto refugiados aqueles que,
por conta de perseguições de variadas ordens, abandonam as terras onde
nasceram e buscam em outros países as condições para levar uma vida
digna e pacíca. O texto legal brasileiro tem inuência da Convenção das
Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, realizada em Genebra
no ano de 1951, que reconhece enquanto refugiados aqueles que fogem de
seus países por medo de perseguição. Essa normativa também estabelece
as condições para que esses direitos de reconhecimento sejam mantidos,
além de um atribuí-los um caráter temporário - este, abdicado com o
Protocolo de 1967. Porém, como aponta Shacknove (1985), o conceito
de “refugiado” não é estabelecido totalmente, tendo em vista que há
variadas argumentações que podem tanto coincidir com as das Nações
2 Denição da palavra ‘refúgio’ no dicionário online Michaelis, disponível em:
michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Ref%C3%BAgio>. Acesso em nov.
2019.
189
Direitos humanos
Unidas como contrastá-las. Observe que as que dialogam positivamente
com a Convenção de 1951 entendem que a base normal da sociedade
consiste num vínculo de conança, lealdade, proteção e assistência entre
os cidadãos e o Estado, e, portanto, haveria uma quebra, um rompimento
deste vínculo em casos de refugiados. Também consideram como marcas
e manifestações físicas deste rompimento, as perseguições e alienações, e,
por m, tais condições são necessárias e sucientes para a concessão do
direito de refúgio.
Por outro lado, o autor apresenta a denição da Organização de
Unidade Africana (OUA) - esta que, por apontar uma visão diferente no
que se refere à questão da ‘perseguição’ como fator condicionante para o
status de refugiado, acaba por, de certa forma, contrastar com a denição
dada pela ONU.
O termo “refugiado” também se aplica a qualquer pessoa que, devido
a agressão externa, ocupação, domínio estrangeiro ou eventos que
perturbem seriamente a ordem pública em parte ou em todo o país de
origem ou nacionalidade, seja obrigada a deixar seu local de residência
habitual. residência para procurar refúgio em outro local fora de seu
país de nacionalidade. (OAU, 1969 apud SHACKNOVE, 1985; tradução
nossa)
Shacknove (1985) ainda complementa, apontando as diferença
nos contextos que originaram as duas denições - já que enquanto a da
ONU surge num contexto pós-Segunda Guerra onde, de fato, havia a
questão da perseguição em voga, a da OAU argumenta que, apesar da
perseguição ser, sim, importante como ‘cortador do vínculo cidadão-
Estado’, não é a única responsável por isso, sendo somente mais um
dentre os outros “cortadores”, estes podendo ser agressão externa e
dominação ou ocupação de outros países. É interessante esta visão, já que
considera que a condição de refúgio pode advir de um Estado que não é
necessariamente feroz, mas, também, frágil, no sentido de ser dominado
por estrangeiros mais fortes. Além disso, Moreira (2006) arma que a
OUA - criada em 1969 - foi a primeira experiência regional na elaboração
de instrumentos de proteção aos refugiados. Outra experiência foi a da
190
Estado, democracia e sociedade
América Latina em meados dos anos 80 com a Declaração de Cartagena
que, também, ampliava o conceito de “refugiado”, colocando a violência
estrangeira como critério para refúgio.
Refúgio no Brasil – Quem são e de onde vem?
O relatório ‘Refúgio em Números’ produzido em 2019 com os
dados do ano anterior pelo Comitê Nacional para os refugiados revela o
panorama do Brasil no que tange à pauta. De acordo com o relatório, a
nacionalidade mais frequente nos refugiados já reconhecidos e abrigados
pelo Estado brasileiro é a síria (51%)3. Em compensação, o líder nas
solicitações de refúgio é a Venezuela (61.681 pedidos – correspondendo
a 77,05% do total de pedidos).
No endereço eletrônico ocial do ACNUR, é possível encontrar
os resultados de uma pesquisa feita pela Cátedra Sérgio Vieira de Melo
(CSVM) em parceria com o Núcleo de estudos, pesquisa e extensão sobre
migrações (Nepemigra) e da CSVM UFRGS entre os dias 13 de Junho
de 2018 e 20 de Fevereiro de 2019 cujo objetivo era traçar – através de
entrevistas – o perl socioeconômico de uma amostra de 500 refugiados
em 14 cidades em 8 diferentes Estados (Amazonas, Distrito Federal,
Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina
e São Paulo). Destes 500 da amostra inicial, foram entrevistadas 487
pessoas, o que corresponde a 97,4% do total. O relatório apresenta dados
a respeito de escolaridade, perl laboral, integração social, obstáculos à
integração e perspectivas futuras da população pesquisada.
A pesquisa apontou, também, que, a maioria dos entrevistados,
quanto ao gênero, são homens cisgêneros (48.67%) – seguidos por ‘não
especicados’ (27,52%), mulheres cisgêneros (23%) e transgêneros
(0,82%) -, já quanto à nacionalidade, a maior representatividade é a de
sírios (31,42%) – seguidos por congoleses (23,82%), angolanos (8,62%) e
colombianos (7,39%).
3 Coordenação-Geral do Comitê Nacional para os Refugiados.
191
Direitos humanos
A importância da PEB para o debate de conjuntura migratória
É discutida no artigo de Moreira (2015), sobre a política
externa de Lula no que tange às políticas voltadas para os refugiados, a
importância da política externa e da foreign policy para o campo teórico
e de análise de políticas e conjunturas migratórias.
É de se destacar que, da forma como a Convenção de 1951 foi edicada,
ao não prever o dever do Estado signatário de receber refugiados,
reforçou-se a lógica soberana estatal (REIS; MOREIRA, 2010). No
mesmo sentido, Haddad (2008) arma que a categoria de refugiado
só pode ser inteligível a partir da tríade Estado-território-cidadania,
reproduzindo e fortalecendo o papel precípuo estatal na gestão dos
uxos de refugiados. Ao atingir o território de outro Estado para solicitar
refúgio, tais migrantes forçados se deparam, portanto, com políticas
estatais que podem lhes ser mais favoráveis ou restritivas. Diversos
fatores pendem na política relativa a refugiados (refugee policy)4
adotada por um país. O peso da política externa (foreign policy) ganha
destaque, à medida que tais deslocamentos se originam de situações
de instabilidade política interna que geram repercussões regionais e
internacionais. Seguindo novamente Haddad (2008), supõe-se um
“problema” que seria da esfera doméstica passa a se internacionalizar –
e/ou se regionalizar. (MOREIRA, 2015, p.135)
A autora prossegue na enumeração, esta feita através de revisão
teórica, de outros elementos argumentativos que corroboram e justicam
a importância do campo da Política Externa no desenvolvimento de
políticas migratórias.
Dentre os interesses de política externa, são computados, assim,
elementos de caráter estratégico, político, ideológico e securitivo,
entre outros (TEITELBAUM, 1984; LOESCHER, 1996). A inuência
internacional sobre a política relacionada aos refugiados também pode
ser notada em outras dimensões. Tal política pode ser concebida como
uma oportunidade para Estados que pretendem superar experiências
passadas, restaurando suas reputações em termos de respeito a direitos
humanos, a m de obter legitimidade por parte de seus vizinhos e da
comunidade internacional. (MOREIRA, 2015, p.135)
192
Estado, democracia e sociedade
Análise de casos concretos
Tendo, por m, nalizado a sua parte teórica e conceitualista,
este artigo segue para sua última seção argumentativa: a análise dos
casos concretos de Lula da Silva, Dilma Rousse e Michel Temer. Para
realizar a análise, esta seção foca em temas centrais como políticas
públicas voltadas para refugiados, intervenções em órgãos e instituições
internacionais e, por m, uma análise dos discursos presidenciais nas
Assembleias da ONU, numa tentativa de vericar a incidência do tema
nos discursos e se, de fato, caso tenham sido tratados, as políticas foram
feitas ou se resumiram-se à falas não efetivadas.
* A PEB “ativa e altiva” de Lula e os reassentamentos para refugiados
No que tange a política externa, o MRE, no período de 2003 a
2010, a cargo do Ministro Celso Amorim, assumiu um caráter expansivo;
ativo e altivo - como o próprio Ministro veio a cunhar. A substituição
da autonomia pela participação por uma autonomia pela diversicação,
focada no multilateralismo e no amplo protagonismo do país - e, em
especial, do próprio presidente - no campo internacional, foram algumas
das principais características de uma política externa voltada para
conquistar o equilíbrio internacional e uma maior independência do Sul
Global em relação aos países centrais do Norte -. Não à toa se deu o foco
massivo à integração regional, tanto no Mercosul e na América do Sul
e Central, bem como o continente africano e os países asiáticos. Além
do foco na integração regional e na cooperação Sul-Sul, uma temática
recorrente da PEB de Lula foram os direitos humanos, principalmente na
corrente do combate à miséria e à fome.
O governo Lula manteve a ênfase no tema dos direitos humanos, não só
como diretriz de política externa, mas também como pauta da agenda
interna. Novos órgãos foram criados no âmbito da Secretaria Especial
de Direitos Humanos, que passou a ser vinculada à Presidência da
193
Direitos humanos
República (CORRÊA, 2007). Houve continuidade na elaboração do
Programa Nacional de Direitos Humanos, com o lançamento do terceiro
plano no nal do segundo mandato (III PNDH). Um elemento de
destaque do governo foram os investimentos na área social, lançando
programas com o objetivo de erradicar a fome e a miséria (Fome Zero e
Bolsa Família) (MOREIRA, 2015, p. 139).
É interessante notar, conforme aponta Moreira e, também, Reis
(2011), como a política migratória do período foi altamente inuenciada
pelos paradigmas e diretrizes da política externa ativa e altiva de Lula, no
sentido que a busca pelo protagonismo fez com que o Brasil levasse aos
fóruns internacionais a discussão das temáticas de direitos humanos e de
refugiados.
A temática, no governo Lula, resvalou-se em dois campos:
integração regional e a política de reassentamentos. A primeira ca
evidente ao analisarmos as assinaturas dos Acordos de Residência entre
os países do MERCOSUL, Bolívia e Chile, também em 2009.
O refúgio é uma política de Estado no Brasil. É um elemento importante
da democracia brasileira e sua tradição de abertura. É um dos pilares da
política de direitos humanos.
(...) Nós esperamos aumentar as oportunidades de reassentamento no
Brasil. A longa experiência do Brasil em ter um órgão tripartite em que
governo, sociedade civil e ACNUR trabalham juntos em políticas para
refugiados tem sido bem-sucedida.
(...) O processo de integração social e econômico dos refugiados tem
sido um constante desao. Acreditamos que o engajamento de outros
países em programas de reassentamento abre as portas para cooperação
Sul-Sul. O Brasil está pronto a compartilhar sua experiência com
parceiros interessados (ARQUIVO DO ITAMARATY, DELEGAÇÃO
DO BRASIL EM GENEBRA, 2006, grifos de RIBEIRO, 2015 apud
MOREIRA, 2015).
A segunda, a de reassentamentos, na verdade, não começou no
governo Lula, tendo sido iniciada já 1999 durante o governo FHC em
conjunto com a ACNUR, teve uma continuidade a partir de 2003, com
foco especial na América do Sul.
194
Estado, democracia e sociedade
Em 2003, chegaram ao país 16 colombianos reassentados (JUBILUT;
CARNEIRO, 2011). No ano seguinte, realizou-se em Brasília uma
reunião entre representantes da sociedade civil e dos governos de
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, em que se
lançaram as bases para a proposta de reassentamento “solidário” na
região. Essa iniciativa tinha como fundamentos: a tradição regional
de proteção aos refugiados na América Latina; o ressurgimento do
reassentamento como solução durável; o princípio internacional
de solidariedade e de compartilhamento de responsabilidades.
Representantes do governo brasileiro, com apoio do ACNUR, sugeriram
o estabelecimento de um programa regional de reassentamento, tendo
em vista o contexto da Colômbia à época (JUBILUT; CARNEIRO, 2011
apud MOREIRA, 2015, p. 140).
Também pode ser citada a reunião que aconteceu no México
em virtude do aniversário de 30 anos do Plano de Cartagena. Desse
encontro, saíram três programas para solucionar as questões referentes
aos refugiados (MOREIRA, 2015; JUBILUT; CARNEIRO, 2011):
1. Programa de Autossuciência e Integração Cidades Solidárias,
um estudo piloto na América Latina voltado para a integração
mais efetiva dos refugiados nos centros urbanos
2. Programa Integral Fronteiras Solidárias, com o propósito
de promover o desenvolvimento socioeconômico, beneciando
simultaneamente pessoas que solicitavam proteção internacional e
as comunidades locais
3. Programa Regional de Reassentamento, por iniciativa brasileira,
com vistas a proteger os refugiados que fugiam de conitos e
perseguições na região e, ao mesmo tempo, ajudar os países
receptores de grande contingente de colombianos, principalmente a
Costa Rica e o Equador
É notória a importância que a temática recebeu nos anos de Lula.
O Brasil chegou, inclusive, em 2006, a ser considerado o 12º país que
mais reassentou refugiados no mundo. Em seu artigo, Ribeiro explicita
195
Direitos humanos
melhor o panorama da época.
É de se destacar que as ações adotadas pelo Brasil em relação aos
refugiados propiciaram estreitar relações com a agência da ONU. Havia
interesses por parte da agência da ONU, vale ressaltar, no sentido de que
países em desenvolvimento, incluindo os da América Latina, passassem
a se comprometer com essa questão, tendo em vista as diculdades
para que as demandas por reassentamento pudessem ser satisfeitas por
países desenvolvidos – os quais se inclinavam, de modo geral, rumo ao
fechamento de suas fronteiras no contexto pós-11 de setembro. Não à
toa, em 2005, o Alto Comissário para os Refugiados visitou o Brasil,
encontrando-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião,
o Alto Comissário elogiou a promoção contínua do Brasil em relação
ao mandato do ACNUR em nível regional e internacional, além de
considerar exemplar o tratamento dado aos refugiados no país, tanto em
termos de legislação quanto de esforços empregados para a integração.
O ACNUR passou a admitir a capacidade do Brasil, enquanto líder
regional, de ajudar a prevenir a intensicação de conitos na região que
pudessem provocar novos uxos migratórios (ALTO COMISSARIADO
DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 2005) (RIBEIRO, 2015
apud MOREIRA, 2015).
A partir de 2007, porém, com a tentativa brasileira de expandir o
escopo do reassentamento solidário do âmbito regional para abrigar cerca
de uma centena de palestinos, o que foi feito em termos de gerar uma
repercussão positiva do país na esperança de mostrar para a imprensa
internacional um país solidário e receptivo, na verdade, tornou-se
inecaz, tendo em vista a série de problemas que gerou tal reassentamento
- tanto para os palestinos, que, inclusive, zeram protestos em frente à
ACNUR reivindicando e queixando-se dos problemas no acesso à saúde
e à educação, quanto para a imagem do Brasil. O foco cou mais no
quantitativo do que no qualitativo.
No que tange à participação em órgãos internacionais, o Brasil
assumiu um papel apaziguador e pacista, embasado nos princípios da
não-intervenção e da paz entre os povos. Contrário a decisões militaristas,
o Brasil tentava solucionar os conitos através de negociações e tratados
de paz - sendo um dos mais proeminentes a negociação para o Grupo
196
Estado, democracia e sociedade
de Amigos na Venezuela (AMORIM, 2013) logo no começo do governo
Lula, com atuação de Celso Amorim como Ministro.
Por m, cabe aqui destacar os pronunciamentos de Lula sobre
a temática, sendo um dos principais, sua fala na Comissão de Direitos
Humanos da ONU em 2009, onde destacou os efeitos da crise econômica
sobre a população migrante, denunciando o discurso xenófobo, dizendo
ainda que “no Brasil, nós acabamos de legalizar centenas de milhares de
imigrantes que viviam ilegalmente no país. Para dar uma resposta, um
sinal aos preconceituosos, aqueles que imediatamente querem encontrar
os responsáveis pela sua própria desgraça, o seu desemprego” (UOL
NOTÍCIAS, 2009).
* A (des)continuidade de Dilma e os discursos na ONU
Em muito é discutido se nos anos de Dilma Rousse (2011-2016)
houve uma ruptura ou o uma continuidade da PEB de seu antecessor
(COELHO; SANTOS, 2014; MIRANDA; RIBEIRO, 2015; ZENI, 2016),
Lula da Silva. De fato, a gestão da petista passou por turbulências como as
manifestações de Junho de 2013, a crise econômica e a dura eleição que,
por pouco, a petista saiu vitoriosa em 2014, o alto clima de polarização e
instabilidade em 2015 e o golpe parlamentar sofrido em 2016.
Rousse herdou de seu antecessor a boa avaliação do governo
e a popularidade. Também herdava um país ativo e altivo no que tange
ao campo da política externa e das relações exteriores. Porém, o que
foi visto em seu governo, talvez motivado pelas crises internas, ou por
um não-interesse da presidenta em assumir o protagonismo nas pautas
internacionais, foi uma queda da diplomacia presidencial e das viagens
feitas pela petista. Por outro lado, é notável que os discursos feitos na
Assembleia Geral da ONU foram o maior destaque de Dilma durante sua
gestão, pautando a questão de gênero bem como um caráter contestador
de temas sociais. Conforme consta no artigo de Coelho e Santos (2014)
A análise da política externa do governo Dilma Rousse na perspectiva
dos pronunciamentos ociais na ONU, a presidenta precisou, através dos
197
Direitos humanos
discursos, formar uma identidade própria, desvencilhada da gura de
Lula da Silva, que fora tanto usada nas campanhas eleitorais de 2010.
Em 2011, defende a Primavera Árabe e a Palestina, além de
reconhece-la enquanto Estado, embasada no princípio da paz e da não-
interferência, falando, inclusive, de descendentes árabes e judeus no
Brasil. Fala também sobre a temática de direitos humanos e combate à
pobreza, fazendo uma reexão dos ganhos advindos da gestão petista de
Lula da Silva. No ano seguinte, ao falar, novamente, sobre a Primavera
Árabe, abre o escopo de seu discurso, mencionando a questão da Síria
e reforçando a preocupação do Brasil com a paz - e colocando o país
como receptor de milhões de descendentes sírios-. Em 2013, reforçou
o que fora dito sobre a Síria e trouxe, como nos outros anos, o debate
dos direitos humanos e do combate à miséria e à pobreza. Em 2014,
num discurso contrário às intervenções militares, a presidenta faz uma
campanha pela paz e pelo diálogo, rechaçando a violência. E, novamente,
como em todos os anos predecessores, levantou a pauta da reforma do
Conselho de Segurança. Por m, em seu último discurso na Assembleia
Geral, em 2015, trata sobre a questão dos refugiados e a crise migratória
global.
(...) A profunda indignação provocada pela foto de um menino
sírio morto nas praias da Turquia e pela notícia sobre as 71 pessoas
asxiadas em um caminhão na Áustria deve se transformar em ações
inequívocas de solidariedade prática.
Em um mundo onde circulam livremente mercadorias, capitais,
informações e ideias, é absurdo impedir o livre trânsito de pessoas.
O Brasil é um país de acolhimento, um país formado por
refugiados. Recebemos sírios, haitianos, homens e mulheres de todo
o mundo, assim como abrigamos, há mais de um século, milhões de
europeus, árabes e asiáticos. Estamos de braços abertos para receber
refugiados. Somos um país multiétnico, que convive com as diferenças e
sabe a importância delas para nos tornarmos mais fortes, mais ricos, mais
diversos, tanto cultural quanto social e economicamente. (ROUSSEFF,
2015).
198
Estado, democracia e sociedade
É importante citar, também, o artigo Os refugiados e a esperança,
de Dilma Rousse, escrito para o jornal Folha de São Paulo no dia 10 de
Setembro de 2015, onde a presidenta arma que o Brasil está de braços
abertos para os refugiados, mesmo vivendo uma crise econômica e
política, pois a situação da crise migratória é inaceitável.
A principal crítica tecida a ambos os governos Lula e Dilma na
questão dos refugiados se dá pela não-assinatura e não-raticação da
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Trabalhadores Refugiados
e Membros de sua Família, o que gera consequências graves à temática
dos direitos humanos tendo em vista que
(...) a demanda por mão-de-obra resultante do crescimento
econômico do país, principalmente durante o período do governo
Lula, tornou o Brasil um destino atraente para migrantes econômicos.
Contudo, na grande maioria dos casos, aqueles que ingressaram no país
ilegalmente, por temerem a deportação, não denunciam a exploração
a que são submetidos, sem saber que a Resolução Normativa n° 93
do Conselho Nacional de Imigração prevê a concessão de vistos de
permanência para estrangeiros que estejam no país em situação de
vulnerabilidade (GONÇALVES, LOUREIRO, ORNELLAS, 2018, p. 21).
Além disso, é importante ressaltar que o governo Dilma, como
fora supracitado, enfrentou uma grave crise econômica, que afetou
as ações e a efetividade das políticas do ACNUR, conforme apontam
Gonçalvez, Loureiro e Ornellas (2018) em seu artigo A política externa
brasileira para refugiados: entre a lógica das consequências e a lógica da
adequação.
A ampliação das solicitações de refúgio coincidiu com a grave
crise econômica, o que fez com que o trabalho do ACNUR e demais
parceiros fosse dicultado pela escassez de recursos em um contexto
sensível (DIAS et al, 2011; ZIEMATH, 2011). Apesar das articulações
com governos locais e a busca por melhores relações com instituições
envolvidas na proteção aos refugiados, os desaos para a integração
local se tornaram ainda mais evidentes no contexto economicamente
desfavorável. Diversos estudos destacam as diculdades que os refugiados
199
Direitos humanos
encontram para obter acesso a serviços públicos e moradia, além dos
problemas relacionados às condições de trabalho e discriminação.
Também são salientados problemas como a baixa capacidade operacional
do CONARE e a necessidade de reavaliar a burocratização e o próprio
funcionamento do processo de concessão do refúgio (MOREIRA,
2014; JUBILUT; MADUREIRA 2014; SALLES; GONÇALVES, 2016).
(GONÇALVES, LOUREIRO, ORNELLAS, 2018, p.20).
* A gestão interina de Michel Temer
Os três discursos do presidente interino na ONU - 2016, 2017
e 2018 - foram pautados, principalmente, na perspectiva de gerar uma
legitimidade internacional a Temer, que via, no âmbito doméstico, a sua
associação à uma narrativa de golpe parlamentar com intenções políticas
para a retirada de Dilma Rousse e à esquemas de corrupção. Além disso,
é possível notar em suas falas, uma aptidão para a recepção de refugiados
no Brasil, um país que, segundo o presidente, “é obra de imigrantes,
homens e mulheres de todos os continentes”4. Em 2018, inclusive, na
abertura da 73ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Temer propôs
a criação de um pacto global para refugiados e migrantes e mostrou-se
preocupado com a situação na América do Sul, em especial no que tange
à migração de venezuelanos.
É possível, portanto, caracterizar o governo Temer no que tange
às políticas voltadas para os refugiados como confuso e/ou contraditório.
Na Assembleia da ONU de 2018 há a defesa de um pacto global, que vem
a ser assinado em Marrakesh numa conferência intragovernamental da
ONU no nal do ano. Porém, em 2016, há a suspensão das negociações
com a UE para o recebimento de refugiados sírios. Na mesma lógica,
há a promulgação, em Maio de 2017, de uma nova lei de imigração que
não trata mais o imigrante como ameaça à segurança nacional e pauta a
4 Disponível em: ov.br/ipri/repertorio/index.php/categorias/90-
direitos-humanos/refugiados/337-discurso-durante-abertura-do-debate-geral-da-71-
assembleia-geral-das-nacoes-unidas>. Acesso em nov. 2019.
200
Estado, democracia e sociedade
proteção de direitos humanos aos imigrantes e refugiados - como a não-
discriminação e um combate à homofobia e ao racismo sofrido por esses
povos -. Porém, na contramão disso, promulga, também, um decreto
que muda e interfere na lei, ponto criticado por entidades e movimentos
sociais. Sem contar no apoio que recebe de líderes políticos e religiosos
extremamente contrários às políticas migratórias.
Conclusões
Feita essa análise dos três períodos - Lula, Dilma e Temer -, é
possível notar que ganhos foram conquistados nos três governos, apesar
de todos os pesares. É interessante notar que a partir das particularidades
da política ativa e altiva - o princípio da não-intervenção, a busca
pelo multilateralismo e pelo protagonismo brasileiro no tabuleiro
internacional, a priorização das relações regionais e da cooperação
Sul-Sul -, muito fora conquistado no campo das políticas migratórias.
Porém, é necessário olhar, também, com visão crítica às incoerências e
problemáticas dos governos ditos progressistas, principalmente no que
tange a não-assinatura e não-raticação da Convenção Internacional
sobre os Direitos dos Trabalhadores Refugiados e Membros de sua
Família, tendo em vista que propiciou toda uma lógica de exploração de
trabalhadores refugiados e pobres.
Em contrapartida, são necessários elogios aos discursos dos
três presidentes, numa proteção aos direitos humanos e na defesa da
paz mundial. Por mais que em muitos momentos, as falas tenham
sido incoerentes com as práticas, os discursos em si traduzem aquilo
que é esperado de um país que se pretende protagonista. Não à toa
a preocupação com o atual momento, tendo em vista que o MRE e
a Política Externa Brasileira, outrora ativa e altiva, agora aparece de
maneira submissa e pouco questionadora de tais mazelas. O primeiro
discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU mostra que
a questão dos refugiados e a política migratória nada signicam para
o governo que já se desassociou do Pacto Global por uma Migração
201
Direitos humanos
Segura, Ordenada e Regular, assinado por Aloysio Nunes, ex-Ministro
das Relações Exteriores do governo Temer.
Resta, portanto, aos movimentos sociais e às entidades
representativas dos refugiados, bem como ao espectro da oposição a um
governo que não mostra quaisquer aptidões democráticas, resistirem
para proteger o que foi conquistado nos últimos anos. O Brasil é um país
formado por imigrantes e descendentes de imigrantes de todas as partes
do mundo. Seja do Oeste ou do Leste Europeu, do Oriente Médio, da Ásia.
Sejam os vizinhos da América do Sul, da América Central e do Caribe.
Descendentes dos africanos trazidos forçadamente na condições de
escravos, hoje, lutam contra um Estado racista, mergulhado numa lógica
da necropolítica5. É necessário que haja uma luta pela democracia, pelo
respeito aos direitos humanos, por um mundo de paz e solidariedade,
não submisso a discursos racistas, fascistas e fundamentalistas religiosos.
Como disse Rousse na ONU em 2015, em um mundo onde circulam
livremente mercadorias, capitais, informações e ideias, é absurdo
impedir o livre trânsito de pessoas. É preciso lutar para que não haja
mais fronteiras fechadas, crianças sem pais, bombas que dizimam povos
e países, famílias desmanchadas por uma guerra em nome da ganância e
da intolerância. Por m, como disseram as escritoras brasileiras elma
Guedes e Duca Rachid, que angolanos, curdos, ciganos, bolivianos,
tibetanos, palestinos, congoleses, indígenas, lipinos, sírios, cristãos,
judeus e muçulmanos deixem de ser órfãos e passem todos a ser lhos de
uma mesma terra6.
Referências
AMORIM, C. Breves narrativas diplomáticas. São Paulo: 1ª Ed: Benvirá,
2013.
5 Para mais, ler MBEMBE, A. Necropolítica. 2011.
6 Discurso nal escrito para a telenovela Órfãos da Terra, exibida pela Rede Globo em
2019.
202
Estado, democracia e sociedade
ARQUIVO DO ITAMARATY. DELEGAÇÃO DO BRASIL EM
GENEBRA. ACNUR. Consulta tripartite anual sobre reassentamento.
Reunião de 2006. Relato [s.l.], 23 jun. 2006.
COELHO, A.; SANTOS, V. A análise da política externa do governo
Dilma Rousse na perspectiva dos pronunciamentos ociais na ONU.
Mural Internacional, v. 5, n. 2, 2014, p. 128-138.
HADDAD, E. e refugee in international society: between sovereigns.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
JUBILUT, L. L.; CARNEIRO, W. P. Resettlement in solidarity: a new
regional approach towards a more human durable solution. Refugee
Survey Quarterly, Oxford, v. 30, n. 3, p. 63-86, 2011.
GONÇALVES, F. C. N. I.; LOUREIRO, G. A.; ORNELLAS, F. B.
A política externa brasileira para refugiados: entre a lógica das
consequências e a lógica da adequação. Estudos Internacionais, v. 6, n. 1,
2018, p. 5-25.
MIRANDA, S. P.; RIBEIRO, C. A. L. (2015). “A América do Sul na
política externa de Dilma Rousse: continuidades e rupturas, Anais
do I Seminário Internacional de Ciência Política. Estado e Democracia
em Mudança no Século XXI. Porto Alegre: UFRGS. Disponível em:
NE-MIRANDA-2015-
A-Am%C3%A9rica-do-Sul-na-pol%C3%ADtica-externa-de-Dilma-
Rousse.pdf>. Acesso em jan. 2020.
MOREIRA, J. B. Política Externa e Refugiados no Brasil: uma análise
sobre o governo Lula (2003-2010). Carta Internacional v. 10, n. 3, 2015,
p. 133-151.
PINHEIRO, L. Política Externa Brasileira: 1889-2002; Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2004.
REIS, R. R. A Política do Brasil para as Migrações Internacionais.
Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, 2011, p. 47- 69.
ROUSSEFF, D. Discurso da Presidenta da República, Dilma
Rousse, por ocasião da Abertura da Septuagésima Assembleia
Geral das Nações Unidas. 2015. Disponível em: tp://www.
itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/
presidente-da-republica-federativa-do-brasil-discursos/11918-
203
Direitos humanos
discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-roussef-por-ocasiao-da-
abertura-da-septuagesima-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nova-
york-28-de-setembro-de-2015>. Acesso em nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 66ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas. 2011. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-da-presidenta>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 67ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas. 2012. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-da-presidenta>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 68ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas. 2013. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-da-presidenta>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 69ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas. 2014. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-da-presidenta>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 70ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas. 2015. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-da-presidenta>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Os refugiados e a esperança. Disponível em: .
itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/
presidente-da-republica-federativa-do-brasil-artigos/11231-folha-de-s-
paulo-os-refugiados-e-a-esperanca-artigo-dilma-rousse>. Acesso em
nov. 2019.
SHACKNOVE, A. Who is a Refugee? Ethics. Vol. 95, No 2 (Jan., 1985)
pp. 274-284.
TEMER, M. Discurso no Debate Geral da 71ª Sessão da Assembleia
Geral das Nações Unidas. Disponível em: tp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-do-presidente>. Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 72ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas’ Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-do-presidente . Acesso em 10 nov. 2019.
______. Discurso no Debate Geral da 73ª Sessão da Assembleia Geral
204
Estado, democracia e sociedade
das Nações Unidas. Disponível em: ttp://www2.planalto.gov.br/
presidenta/discursos-do-presidente>. Acesso em 10 nov. 2019.
UOL NOTÍCIAS. Lula: “Desemprego não é culpa dos imigrantes
pobres”. UOL Notícias, 15 jun. 2009. Disponível em: .
com.br/bbc/2009/06/15/ult5017u219.jhtm>. Acesso em nov. 2019.
ZENI, K. A diplomacia brasileira e as descontinuidades da matriz da
política externa no governo Dilma Rousse. Uno.&Cie., v. 7, n. 1, p.
7-14, jun. 2016.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT