O ônus da prova nas ações acidentárias

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas155-172

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Introdução: o direito ambiental do trabalho e o direito previdenciário e seu impacto no processo do trabalho – o diálogo das fontes

O Brasil construiu um sistema de prevenção de acidentes do trabalho interrelacionado ao meio ambiente do trabalho, por sua vez posto constitucionalmente como questão de saúde pública, cujo regramento se encontra, basicamente, na Convenção n. 155 da OIT, na legislação previdenciária (Lei n. 8.213/1991) e Lei
n. 8.080/1990 – que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

Trata-se de complexo sistema de normas positivadas em diversos diplomas legais esparsos, em príncipio díspares, mas, como se verá, com uma unidade em torno da questão – a prevenção de acidentes do trabalho, todos orientados pela Constituição e pela Convenção
n. 155 da OIT, e todos com implicações diretas no processo do trabalho, embora de pouca familiaridade do operador do Direito do Trabalho. Por esta razão, a opção de transcrever os textos de lei nas notas de rodapé do texto tem o objetivo de facilitar o contato do leitor com os diversos dispositivos legais que se entrelaçam na matéria.

A proposta do artigo é descortinar uma interpretação relativa ao ônus da prova nas ações acidentárias de acordo com o método interpretativo da teoria do diá-logo das fontes (desenvolvida por Erik Jayme, na Alemanha, e Cláudia Lima Marques, no Brasil), trazendo as normas ambientais e previdenciárias para o âmbito do processo do trabalho, particularmente nas ações acidentárias, analisando os desdobramentos relevantes no campo do ônus da prova, com a validação da interpretação construtiva de Dworkin.

Conforme ensina Claudia Lima Marques, Erik Jayme defende a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais e gerais, com campos de aplicação convergentes, mas não iguais, pois, em face do pluralismo pós-moderno, num direito de fontes legislativas plúrimas, advém a necessi-dade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo.1

Embora entenda que o uso coordenado de normas de diversos ramos do Direito e diplomas legais nada mais é do que explícita concretude da jurisdição, que jamais será estanque, mas antes pautada pela aplicação da totalidade de preceitos que incidam ao caso concreto independentemente da sua origem, a teoria do diálogo das fontes é importante para contextualizar a

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necessidade de entender o Direito como unidade interativa e dinâmica.

Assim, principia-se pela apresentação do meio ambiente laboral, princípios básicos e o regramento constitucional-legal aplicável, as diretrizes internacionais, o sistema legal brasileiro de prevenção de acidentes do trabalho, saúde do trabalhador, responsabilidade ambiental e seus desdobramentos em matéria de processo do trabalho, abordando, ainda, a correlação da disciplina previdenciária sobre as normas de saúde, segurança, medicina e higiene do trabalho, acidente do trabalho e nexo de causalidade, que irão refletir com grande impacto no ônus da prova das ações acidentárias, demons-trando a indispensável complementariedade do Direito Previdenciário e do Direito Ambiental do Trabalho no Processo do Trabalho (diálogo das fontes).

Propositalmente não se abordam as regras do Direito Civil senão de forma incidental: o objetivo é superar a visão clássica civilista das ações acidentárias, trazendo-as para uma visão holística orientada pelo Direito Ambiental do Trabalho.

Meio ambiente do trabalho: conceito e princípios

A grande preocupação mundial com o meio ambiente se revelou na Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, de 1972, originando a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de Estocolmo de 1972, que estabeleceu um princípio básico:

Princípio 1
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.

Posteriormente, em 1981, a OIT edita a Convenção 155 (ratificada pelo Brasil por meio do Dec.
n. 1.254/1994), abordando especificamente o meio ambiente do trabalho, dispondo o seguinte:

Art. 4º
1. Todo Membro deverá, em consulta às organizações mais representativas de empregadores e de trabalha-dores, e levando em conta as condições e a prática nacionais, formular, pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho.

2. Essa política terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem conseqüência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho.

Conforme prevê a Constituição da República Federativa do Brasil (art. 200, VIII), o meio ambiente do trabalho integra o conceito de meio ambiente, restando, pois, a ele aplicável a disciplina do art. 225 (Capítulo VI da CF), especialmente no que concerne ao próprio conceito – bem de uso comum do povo, sendo direito de todos (rectius, direito difuso), e dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

A Carta Constitucional, em consonância das normas internacionais, proclama várias incumbências ao Poder Público para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado: exigência de estudo prévio de impacto ambiental com publicidade; controle da produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente; promoção da educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para preservação; sujeição dos infratores à tríplice responsabilidade (penal, administrativa e cível).

Vale destacar que, quando o art. 200 insere o meio ambiente laboral na categoria genérica do meio ambiente, atrai, por conseguinte, a aplicação de todo o sistema legal de proteção ambiental, autorizando, v.g., o uso da Lei n. 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e da Lei n. 9.605/1998 (que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), no que cabível, com as adaptações devidas à especificidade trabalhista.

Por este viés, o art. 3º da Lei n. 6.938/1981, além de conceituar o meio ambiente, define vários conceitos aplicáveis à área laboral, tais como:

– degradação da qualidade ambiental: “alteração adversa das características do meio ambiente”;

– poluição: “degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; (...) afetem as condições estéticas ou

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sanitárias do meio ambiente; lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”;

– poluidor: “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”;

– recursos ambientais.

Precisamente no cruzamento da norma do art. 225 da Constituição da República com o art. 3º, I, da Lei
n. 6.938/1981, pode-se extrair como conceito de meio ambiente do trabalho, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas, no que tange ao trabalho humano, constituindo direito social fundamental e bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida do cidadão trabalhador, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

Trata-se de um conceito basicamente de ordem normativa, com grande amplitude, e que, pela sua dimensão, permite, por exemplo – para que se possa alcançar até aonde é possível sua aplicação, compreender como recursos ambientais laborais, o próprio gerenciamento de recursos humanos disponíveis no local da prestação de serviços – por outras palavras, mesmo a questão da correta gestão de pessoal, gerenciamento de recursos humanos é, também, matéria ambiental, no que se percebe a importância da definição constitucional-legal.

Ainda, no próprio conceito se encontra espectro tridimensional do meio ambiente do trabalho, que abarca:

– espaços naturais: onde o homem intervém diretamente na natureza, cabendo as medidas de adequação para preservação da saúde e da vida humana no trabalho em sintonia com a natureza (trabalho rural, na agropecuária, extrativismo vegetal, mineral etc.);

– espaços artificiais: criados pelo homem para o desempenho de alguma atividade, os quais devem garantir o trabalho em condições seguras ou amenizando o risco quando impossível sua eliminação. Cabe destacar que há espaços artificiais estáticos (ex.: instalações de uma fábrica) e...

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