O ônus da prova no processo do trabalho e a 'Reforma Trabalhista' (Lei nº 13.467/2017)

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas467-473

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Introdução

A Lei n. 13.467/2017, que deu positividade à controversa “reforma trabalhista”, trouxe em seu bojo diversas alterações – muitas das quais qualificadas como verdadeiros retrocessos sociais (inclusive para os efeitos do art. 26 do Pacto de San José da Costa Rica) –, seja no tocante ao direito material, seja quanto ao direito processual do trabalho.

Neste artigo, pretende-se analisar uma das alterações trazidas pela reforma em âmbito processual, qual seja, a alteração do artigo 818 da CLT no tocante ao ônus da prova. Eis um dos poucos pontos da “reforma” em que não se identifica propriamente um retrocesso; ao revés, comparativamente ao que dispôs historicamente o artigo 818 celetário e o que agora dispõe o artigo 373 do CPC/2015, pode-se mesmo reconhecer algum avanço. Tudo a depender, porém, do filtro e do ajuste hermenêutico.

A redação original do artigo 818 da CLT, por tudo sintética, resumia-se à afirmação de que “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Esse texto será agora substituído, a partir de 11.11.2017, por uma nova redação, muito semelhante àquela disposta no artigo 373 do novo Código de Processo Civil.

Quais as consequências mais evidentes dessa alteração?

Para responder à questão, a partir de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, este estudo foi organizado em três partes centrais: (i) a análise da regra processual civil sobre ônus da prova, consubstanciada no artigo 373 do NCPC; (ii) o exame das inversões pretorianas do ônus da prova no direito processual do trabalho brasileiro, observando a jurisprudência mais relevante e representativa de tais inversões no âmbito juslaboralista; e (iii) a nova redação do artigo 818 da CLT dada pela “reforma trabalhista”, apontando críticas por parte da doutrina e balizando sua interpretação a partir da possibilidade de uma repartição do ônus da prova dinâmica e sensível à natureza da pretensão do direito material.

1. O ônus da prova no direito processual (civil) brasileiro

O (novo) Código de Processo Civil brasileiro de 2015 (NCPC), assim como já havia feito o código de 1973 e, antes dele, o de 1939, disciplinou a distribuição do ônus da prova a partir da positivação de regras estáticas para sua repartição em seus dois primeiros incisos (artigo 373, I e II, NCPC), assumindo como pano de fundo o modelo rosenberg-chiovendiano, pelo qual a prova dos fatos constitutivos cabe ao autor e prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos cabe ao réu (ROSEMBERG, 2002). Contudo, diferentemente dos diplomas anteriores, o NCPC positivou hipóteses gerais de relativização de tal regramento, como se lê textualmente no artigo 373, §1º, destacado a seguir:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. (grifo nosso)

§ 2º A decisão prevista no §1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:

I – recair sobre direito indisponível da parte;

II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.

Neste particular, o NCPC dispôs expressamente sobre prática já assimilada no âmbito do processo civil: mesmo sob a égide do CPC/1973 ? quando a única possibilidade legal de inversão do ônus da prova derivava da pactuação entre as partes (artigo 333, parágrafo único) e, ainda assim, se a convenção incidisse sobre direitos de cárater disponível3?,

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havia hipóteses específicas de inversão ou exclusão do onus probandi positivadas na legislação esparsa. São exemplos:

(a) a inversão do ônus da prova nas ações consumeristas, em favor do consumidor, e a critério do juiz, quando houver verossimilhança da alegação e/ou hipossuficiência do autor, segundo as regras ordinárias da experiência (permissão legal contida no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor)4;

(b) a inversão do ônus da prova em matéria de publicidade, sendo certo que o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina (artigo 38 do CDC), em caráter incondicional;

(c) a inversão do ônus da prova, em favor do devedor, nas ações relativas a estipulações usurárias e afins, ainda que não regidas pelo CDC, desde que haja verossimilhança da alegação (MP n. 2.172-32, de 23.08.20115);

(d) a inversão do ônus da prova, em favor do segurado, nas ações judiciais de aposentadoria (reforma), derivada da correspondente inversão do encargo probatório no plano administrativo (artigo 29-A, §1º, da Lei n. 8.213/19916, com a redação da Lei n. 10.403, de 08.01.2002)7;

(e) a exclusão ou inversão do ônus da prova, nos processos que demandam prova pericial médica, em desfavor da parte recusante à perícia que pressupõe disponibilidade física (artigo 232 do NCC8).

Para além dessas possibilidades legais, tanto a jurisprudência cível como, sobretudo, a trabalhista já admitiam outras situ-ações de inversão/exclusão do ônus da prova, antes mesmo do CPC/2015, em casuísticas ora secundum legem, ora praeter legem ou até mesmo contra legem. Dada a sua proeminência nessa temática, passa-se ao estudo específico da jurisprudência trabalhista.

2. Inversões pretorianas do ônus da prova no direito processual do trabalho brasileiro

A (re)distribuição do ônus probatório não é novidade no âmbito da Justiça do Trabalho, que possui ampla jurisprudência, inclusive sumulada, sobre repartição do ônus da prova, ora meramente declaratória do modelo legislativo em vigor, ora efetivamente inovadora (chamadas, aqui, de inflexões pretorianas). Abaixo serão analisados alguns exemplos dessa

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tradição existente nos tribunais laborais.

A Súmula n. 6, VIII, do TST, dispõe que é do empregador o ônus da prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equiparação salarial; reproduzindo, fielmente, o disposto no artigo 333, II, do CPC/1973 – e, agora, no artigo 373, II, do CPC/2015 ?, já que em casos de equiparação salarial, o empregador será o réu, isto é, o reclamado na ação trabalhista.

Aponta-se, contudo, que o enunciado não esclarece o que se considera como fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equiparação, tal como o fez o artigo 461 da CLT, ao dispor sobre os elementos da perfeição técnica ou a diversa produtividade entre paradigma e paragonado, ou ainda o tempo de serviço na função superior a dois anos, todos fatos impeditivos à luz do artigo 461, caput e §1º, da CLT (atente-te que a Lei n. 13.467/2017 traz mudanças neste particular)9.

A Súmula n. 12 do TST dispõe que as anotações apostas pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção juris et de jure, mas apenas juris tantum. Tal verbete não trouxe grande novidade, contudo assegura expressamente ao empregado o direito processual à contraprova. No subtexto, reputa-se satisfeito, pela prova preconstituída em CTPS, o “onus probandi” do empregador em torno da matéria.

A O. J. SDI-1/TST n. 215 dispunha que é do empregado o ônus de comprovar que satisfaz os requisitos indispensáveis à obtenção do vale-transporte, i.e., a sua necessidade e a manifestação de vontade perante o empregador; aplicando-se a lógica do ei incumbit probatio qui dicit non qui negat (= incumbe a prova àquele que afirma, não ao que nega). No entanto, essa orientação foi cancelada pela Resolução n. 175, de 24.05.2011 do TST, levando à suposição de que a jurisprudência do TST poderia vir a infletir o ônus da prova, em favor do empregado, também nessa hipótese. E, de fato, foi editada em 2016 a Súmula n. 460 do TST, pela qual é do empregador o ônus de comprovar que o empregado não satisfaz os requisitos indispensáveis para a concessão do vale-transporte ou não pretenda fazer uso do benefício. Dá-se, pois, clara inversão do ônus da prova, já que caberia ao reclamante, a priori, fazer a prova dos requisitos indispensáveis para o direito ao vale--transporte (fatos constitutivos do direito).

Já a Súmula n. 212 do TST estabelece que o ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado. Aqui efetivamente se inverteu o ônus da prova, a partir de uma presunção derivada do princípio da continuidade da relação de emprego: embora seja alegação do empregado a data e o modo de terminação da relação de emprego, cumprirá ao empregador provar eventual data ou modo mais favorável aos seus interesses, resolvendo-se as dúvidas em seu detrimento (e infletindo-se, portanto, a regra contida na redação original do artigo 818 da CLT, na direção do que fez a legislação portuguesa, ut artigos 435º, 1 e 3, do CT).

A O. J. SDI-1/TST n. 233 indicou que a decisão que defere horas extras com base em prova oral ou documental não ficará limitada ao tempo por ela abrangido, desde que o julgador fique convencido de que o procedimento questionado superou aquele período. Nisto, modulou o ônus da prova...

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