Ônus da prova e a reforma trabalhista

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Páginas308-317

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1. Direito fundamental de prova

Quando se fala em produção de prova em juízo, está-se referindo à formação do convencimento por parte do juiz acerca da existência de fatos relevantes do processo2.

Não por acaso que o art. 369 do novo CPC3 assegura às partes o direito de provar “a verdade dos fatos” em que se funda a pretensão (pedido ou defesa), objetivando “influir eficazmente na convicção do juiz”.

Com efeito, o destinatário direto e principal da prova é sempre o julgador. Todavia, as partes também são destinatárias da prova, e assim não apenas quando visam resultados futuros (vg: procedimento judicial prévio ou cautelar), mas como interessadas no reconhecimento jurisprudencial de seus direitos. Pode-se dizer que até mesmo a sociedade é destinatária indireta da prova que levará o (in)deferimento da sua pretensão material. Não por acaso que o Fórum Permanente de Processo Civil, FPPC de Salvador, editou o Enunciado n. 50, assim:

“Os destinatários da prova são aqueles que poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz.”

O tema ganha relevo em tempos de aplicação da nova teoria dos precedentes, introduzida pelo CPC/15, onde a ratio decidendi integrará um catálogo disponível para ser utilizado em casos análogos.

A propósito do novo paradigma que busca a unidade do direiuto por intermédio da atribuição de força à jurisprudência uniforme das Cortes de Justiça (TRF, TJ e TRT) e dos precedentes das Cortes Supremas (STF, STJ e TST), cabe observar que novo CPC continua a adotar técnicas repressivas para atingir a unidade do direito (a exemplo do recurso extraordinário, recurso de revista, embargos de divergência para SDI) e uniformizar a sua aplicação (a exemplo do recurso ordinário, agravo de instrumento e agravo interno).

A novidade introduzida pelo CPC/15 reside justamente em aliar a tradicional técnica repressiva com o alargamento da função das Cortes Supremas e das Cortes de Justiça. Daniel Mitidiero observa o novo viés adotado:

“Nada obstante, o que sobressai da sua leitura é o dever de as Cortes Supremas outorgarem unidade ao direito a fim de que a ordem jurídica passe a ser segura e capaz de prover liberdade e igualdade de todos perante o direito (art. 926), sendo instrumento para tanto o precedente (art. 927). Avulta da sua leitura ainda o dever de as Cortes de Justiça uniformizarem a interpretação de questões relevantes (art. 947) e repetidas (arts. 976 a 987), sendo instrumento para tanto a jurisprudência. Em ambos os casos, precedente e jurisprudência poderão ser objeto de súmulas (art. 926, parágrafos 1º e 2º). Além disso, manteve e ampliou os poderes do relator para estimular a adesão aos precedentes e à jurisprudência (art. 932)”4.

Considerando ser o êxito da produção da prova que levará o reconhecimento da pretensão, a sua importância salta aos olhos. Por tais razões, a prova constitui ao mesmo tempo um direito e uma garantia fundamental decorrente do devido processo legal (due process of law), o qual assegura o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF5). Com efeito, a produção da prova independe de requerimento das partes na petição inicial ou contestação6. Ao juiz caberá propiciar não só a ciência da prova, mas a manifestação efetiva do ex-adverso, sob pena de nulidade processual.

A prova é sempre das alegações dos fatos e não da norma legal, até porque o direito cabe ao juiz conhecer (iura novit curia)7. Com base no regramento processual e na

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melhor doutrina sobre o tema, é possível apontar três classes (cumulativas) de fatos sujeitos à prova judicial:

– fatos controvertidos, aqueles afirmados por uma parte e contestados especificamente pela outra, dentro da chamada litiscontestatio8 (arts. 341 e 374 do CPC/15);

– fatos relevantes ao deslinde dos pedidos, prescindindo de prova os fatos notórios (art. 374, CPC/15);

– fatos determinados, aqueles identificados no tempo e no espaço, não se concebendo prova sobre fatos genéricos, vez que nem mesmo o pedido poderá ser indeterminado (art. 324 do CPC9).

O sistema processual pátrio, em matéria de prova, adota o Princípio do Convencimento Motivado nos Autos, também chamado de Princípio da Persuasão Racional. Assim, ao magistrado cabe formar o seu convencimento com esteio nos elementos que constam dos autos, cabendo invocar aqui a parêmia quod non est in actis nos est in mundo (o que não consta nos autos não consta no mundo). Aludida premissa restou acolhida pelo Código de Processo Civil anterior (art. 131, CPC/73) e também no atual:

Art. 371, CPC/15: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Conforme se demonstrará a seguir, houve sutil alteração acerca da redução da amplitude do convencimento do julgador na apreciação da prova, a partir do novo Código de Processo Civil (Lei n.13.105/15).

2. Redução do poder de convencimento do julgador no CPC/15

O sistema processual pátrio, em matéria de prova, adotava o Princípio do Livre Convencimento Motivado nos

Autos. Assim, com espeque no art. 131 do CPC/73, ao magistrado caberia formar o seu convencimento, de forma livre e pessoal, mas desde que com fundamento nos elementos dos autos.

Com o advento do novo CPC, a redação sofreu alteração, eliminando-se a expressão “livremente” (apreciará livremente a prova10). Para boa parte dos juízes e da doutrina nada restou alterado, vez que o livre convencimento motivado remanesce, conforme atestam as regras dos arts. 371 e 372 do CPC/2015, no sentido de que “o juiz apreciará a prova atribuindo-lhe o valor que entender adequado (ora, isso não é livremente?)”, questiona Fernando Gajardoni11.

Em sentido oposto, outro segmento doutrinário no qual filiamos, sustenta que, ao se retirar do ordenamento processual a expressão “o juiz apreciará livremente a prova”, reduziu-se a amplitude do poder de convencimento do julgador. A propósito, Delfino e Lopes, apoiados na doutrina de Lênio Streck, observam com acerto:

‘A verdade é que o “princípio” do livre convencimento motivado não se sustenta em um sistema normativo como o novo CPC, que aposta suas fichas no contraditório como garantia de influência e não surpresa e, por isso, alimenta esforços para se ajustar ao paradigma da intersubjetividade, em que o processo é encarado como um locus normativamente condutor de uma comunidade de trabalho na qual todos os sujeitos processuais atuam em viés interdependente e auxiliar, com responsabilidade na construção e efetivação dos provimentos judiciais. O que se quer do juiz não é que se torne simples estátua na proa do navio (ou um robô), em recuo ao liberalismo processual, mas sim que assuma definitivamente sua responsabilidade política. Suas pré-compreensões, seu pensar individual ou sua consciência não interessam aos jurisdicionados. Pertencem a ele e interessam a

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si próprio e àqueles com quem convive ou que com ele pretendam coexistir. A jurisdição tem por escopo resolver conflitos conforme o direito, a surgir da interpretação das leis, dos princípios constitucionais, dos regulamentos e dos precedentes com DNA constitucional’12.

De nossa parte, cabe registrar que o problema está em distinguir duas expressões sutis, porém diversas. Uma coisa era a previsão legal para o juiz apreciar livremente a prova (art. 131, CPC/73). Até aqui, havia liberdade para decisões exageradamente subjetivas como esta prolatada pelo STJ:

“Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim.” (Min. Humberto Barros do STJ)13.

Situação diversa decorre da nova previsão que retirou a expressão “livremente”, reduzindo-se assim o amplo poder discricionário do julgador na valoração da prova. Doravante, o juiz deverá apreciar as provas constantes dos autos e, ao atribuir maior valor a uma em detrimento de outra, fundamentar sua posição com a conjugação de todos os elementos dos autos (§ 3º do art. 489, CPC14).

Mencione-se exemplo recorrente do juiz que considera a prova testemunhal do reclamante em detrimento daquela produzida pelo reclamado (ou vice-versa). Neste caso, o julgador deverá fundamentar seu convencimento, mas não de forma livre ou por exclusiva convicção pessoal. Caberá, pois, apontar as eventuais fragilidades e contradições da prova que rejeitou em confronto com os demais elementos que prevaleceram em sua convicção pessoal. Vale dizer, não se admite mais a valoração feita por simples subjetivismo do juiz (solipsimo)15, cabendo aqui a lembrança da célebre expressão de Benthan: “a arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de administrar as provas”16.

Além da já mencionada máxima quod non est in actis non est in mundo, é preciso invocar o princípio do dispositivo, o qual impõe à parte interessada o ônus de provar os fatos alegados. Com efeito, ao autor caberá demonstrar os fatos constitutivos e, ao réu, os impeditivos, modificativos e extintivos do direito em disputa (art. 818 da CLT combinado com o art. 373 do CPC)17.

3. Distribuição estática e dinâmica do ônus da prova

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