A ordem jurídica do mercado

AutorNatalino Irti
Páginas44-49

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O tema ora proposto me conduz a um livro - precisamente, A Ordem Jurídica do Mercado - publicado em 1998 e relacionado a três princípios:

(1) que a economia de mercado, em relação a outras e diversas estruturas (cole-tivista, mista, etc.), é locus artificialis, e não locus naturalis (princípio esse que recebeu a estimada adesão de Eros Roberto Grau);

(2) que essa artificialidade deriva de uma escolha do direito, a qual, dependente de decisões políticas, confere forma à economia e a faz, de tempo em tempo, mercantil, coletivista ou mista, e assim por diante;

(3) que aquelas decisões políticas são, por si só, mutáveis, de modo que os vários regimes da economia vêm marcados pela historicidade, e nenhum pode dizer-se absoluto e definitivo.

A tese - exposta, precisamente, nas três palavras: artificialidade, juridicidade, historicidade - expressa, de forma nítida e taxativa, a rejeição de qualquer naturalismo econômico, no qual o direito aparece como simples imagem ou reprodução de uma ordem que seja primeira e fora dele. O naturalismo, uma vez superada a fé ou ideologia do direito natural, ocupa o terreno da economia; e como o direito natural era en-tendido como absoluto e imutável, então a economia de mercado seria provida daqueles caracteres e aspiraria à mesma incondi-cionada validade. Ainda uma vez, a "natureza" é contraposta à história dos homens e elevada a critério de condução e de juízo do direito positivo. O jusnaturalismo se representa não mais de forma teológica ou racional, mas na moderna dimensão da economia.

O naturalismo, tendo por base a imutabilidade das "leis da economia", rejeita a discordância da política, o mutável fluxo das opiniões, o instável acontecer do direito. Ele é, por sua índole, antipolítico e an-tijurídico. E, portanto, cria e preza a zona "neutra", "técnica", "independente", onde silenciam todos os conflitos e imperam somente as "leis do mercado". Os "competentes" têm a capacidade de entendê-la e de traduzi-la, se assim for necessário, em normas jurídicas, porém sempre longe das disputas parlamentares e do conflito das partes. É verdadeiramente singular que notáveis da esquerda histórica não se cansam de professar a ideologia do mercado e utilizam os acontecimentos financeiros e econômicos como exclusivos critérios de juízo, tentando repreender a direita por, pouco ou muito, dela se distanciar; verdadeiramente singular, pois assim decretam a ruína da política,1 ou, melhor, praticam a política dos seus próprios adversários.

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Ao naturalismo, ou seja, aos "liberais da cátedra", pode imediatamente se opor que aquelas "leis da economia", consideradas por eles imutáveis e perenes, são todas povoadas de institutos jurídicos: da propriedade privada à autonomia contratual, do dever de cumprir os acordos à liberdade de disposição testamentária. E são institutos não naturais, ou dados desde sempre e para sempre ao homem, mas historicamente definidos: resultados alcançados no curso daquelas batalhas políticas, que agora se quer sejam silenciadas e apagadas. Desco-bre-se, assim, que o naturalismo é bem pouco "natural" e que, mais do que tudo, atribui à natureza, protegendo com predicados de absolutos e imutáveis o contingente resultado de um período histórico e de uma vontade política. O método de todo jusnaturalismo está precisamente no transferir para o mundo natural aquilo que pertence ao mundo histórico e, então, no converter um processo de vontade em processo de pensamento, de modo que o conhecimento de leis naturais dispense o querer leis históricas ou obrigações a querê-las que sejam conformes.

E também pode se opor que o próprio Friedrich August von Hayek, reconhecido como maestro dos "liberais da cátedra", percebe a intrínseca conexão entre direito e economia, colocando a mesma em um cosmos, fundado sobre nomoi (nomos é "uma norma abstrata não devida à vontade concreta de qualquer um, aplicável em casos particulares independentemente das conseqüências, uma lei que pode ser 'encontrada', e não criada por particulares fins previsíveis"2). Notamos - e no meu livro isso é melhor desenvolvido - que Hayek destaca duas formas de conexões entre direito e economia (a taxis construída por leis quistas e o cosmos apoiado sobre leis "encontradas"), demonstrando privilegiar e preferir a segunda, e então fazendo apelo à vontade dos homens a fim de que compartilham e sigam tal escolha. Antes do "querer" a taxis ou do "encontrar" o cosmos, existe a decisão de escolher aquele querer ou aquele encontrar: da vontade, quanto à posição e im-posição de normas, o próprio Hayek não pode sair. E logo que acrescenta que as leis "encontradas" - deslocando, como ocorre no método de todo jusnaturalismo, o problema normativo do querer para conhecer - exigiriam a indicação do lugar de encontro, o qual não seria outro senão a história dos institutos jurídicos, produtos da vontade humana no curso do tempo.

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À...

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