O Organismo de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio - Introdução a alguns aspectos essenciais de seu funcionamento

AutorLuís Cláudio Coni
Páginas450-483

Luís Cláudio Coni. Advogado. Funcionário do Supremo Tribunal Federal. Mestrando em Direito. Pesquisador do Grupo Integrado de Pesquisa em Direito Internacional Econômico em Sistemas de Integração. luisc@stf.gov.br

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1. Considerações Iniciais
1. 1 A dupla esfera de construção do direito internacional (o O S.C. e a C.I.J.)

A criação da Organização Mundial do Comércio inaugurou uma nova fase do direito internacional. De um lado, a adesão a tratados que não permitem a oposição de reservas, como é o caso do Acordo constitutivo da OMC, e, de outro lado, a introdução no jogo diplomático e no relacionamento entre os Estados de uma visão muito mais rule-oriented (juridicizada, por assim dizer, pois pautada por regras pré-concebidas e pré-acordadas, vinculantes e cogentes) do que power-oriented (pelo reconhecimento explícito das desigualdades no uso da força) são aspectos novos, cujas repercussões, como sabemos, têm permitido o desenvolvimento daquilo a que alguns autores têm chamado (de modo talvez otimista demais, na opinião de outros doutrinadores) de constitucionalização do direito internacional.

Nesse sentido, podemos afirmar que a impossibilidade de oposição de reservas a tratados tem o condão de estabilizar todo o sistema, pois impede a eventual exclusão seletiva, por parte de um futuro Estado-Membro, de aspectos essenciais, seja à constituição do próprio ordenamento a que deram causa, seja à possibilidade de uma adesão de futuros membros realizável em termos eqüitativos. E este, certamente, é o caso da Organização Mundial do Comércio, sobretudo se se considerar, como ocorre, de fato, a adesão progressiva dos diversos Estados. Enfim, afastar-se, de plano, a possibilidade de oposição de reservas ao Tratado provocou uma estabilização real da Organização Mundial do Comércio.

Essa originalidade, no que se refere ao Acordo Constitutivo da OMC, reflete-se também no “Órgão de Solução de Controvérsias” (OSC) ali previsto. Cabe destacar, neste ponto, o absoluto acerto da utilização do termo “controvérsias” para descrever os diferendos que se desenvolvem no âmbito da OMC. É que, ao se constituir um “Órgão de Solução de Controvérsias”, evidenciou-se a situação precisa de que não se trata, propriamente falando, de litígios, na ampla acepção jurídica do termo, pois a cogência das normas aplicáveis, quando de sua solução, deriva não de um ordenamento hierarquicamente organizado, mas, sim, do compromisso internacional cuja força vinculante reside na própria expressão do exercício da soberania externa do Estado nacional que se tornou, pela adesão ao Tratado - com as repercussões que lhe são devidas – Estado-Membro, com as responsabilidades que passam, assim, a ser inerentes a esta condição.

De outro lado, reconhecer-se a mera existência de ‘disputas’ seria reduzir o alcance da construção realizada em torno da OMC a uma simples hipótese de acertos diplomáticos. ConquantoPage 452 a solução puramente diplomática seja intrínseca à relação entre Estados - mesmo quando se tratar da OMC -, as controvérsias levadas à apreciação do OSC extrapolam esse limite, pois se submetem a regras cogentes pré-acordadas.

A originalidade revelada pela criação da OMC, a partir das particularidades acima mencionadas – impossibilidade de oposição de reservas ao tratado constitutivo (fator de estabilização), sistema de normas cogentes (rule-oriented organization) e reconhecimento da existência de “controvérsias” (que não são propriamente litígios, nem meramente disputas)1 – deu uma feição, ao OSC, de verdadeiro construtor - ao lado da Corte Internacional de Justiça (CIJ) -, do próprio direito internacional, cuja dupla esfera, assim constituída, se revela a partir das decisões, provenientes de ambos os Tribunais (OSC e CIJ).

1. 2 O processo de criação do direito internacional – notas introdutórias

Apenas para ilustrar, cumpre rememorar, neste ponto, que o processo de criação do direito internacional encontra suporte no direito consuetudinário e nos princípios gerais de direito internacional, sendo, alguns destes princípios, comuns ao direito interno e dele extraíveis, como o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé e o princípio do rebus sic stantibus; enquanto outros são inerentes ao direito internacional, tais como o princípio da não-ingerência, o princípio da não-agressão e o princípio da autodeterminação. Também os Tratados, as decisões emanadas de Tribunais Internacionais, as decisões proferidas por Tribunais Nacionais e a Doutrina são fontes do direito internacional.

1. 3 Recepção dos Tratados pelo ordenamento jurídico nacional – aspectos essenciais

A recepção de tratados internacionais parece revelar a “conjugação de duas vontades homogêneas”, como bem reconheceu o Supremo Tribunal Federal2: de um lado, a do Congresso Nacional, representada na edição do decreto legislativo e, de outro, a do Presidente da República, que tem competência para promulgá-los, mediante decreto.

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Quanto ao iter procedimental da incorporação de tratados internacionais, algumas fases prévias se apresentam: em primeiro lugar, naturalmente, a própria celebração da convenção internacional, seguida de aprovação congressional (edição do decreto legislativo) e de ratificação pelo Chefe de Estado (edição do decreto presidencial).

Por outro lado, somente a edição do decreto presidencial de promulgação do ato congressional de aprovação da celebração do tratado internacional, com a conseqüente publicação oficial de seu texto, torna exeqüível o ato internacional recepcionado, desse modo, pelo ordenamento jurídico interno.

Neste ponto, cabe transcrever algumas considerações feitas pelo Ministro-Relator da ADI 1480/DF, perante o E. Plenário do Supremo Tribunal Federal:

“No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política...

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O exercício do ‘treaty-making power’, pelo Estado brasileiro (...) está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional”.

Feitas essas considerações iniciais, passemos à análise do Organismo de Solução de Controvérsias e seu posicionamento na Organização Mundial de Comércio.

2. GATT x OMC
2. 1 Algumas diferenciações

Enquanto o Acordo do GATT (General Agreement on Tariff and Trade) representava apenas uma carta de intenções, da qual constavam normas programáticas -ainda que seu alcance extrapolasse o simples compromisso em torno de tais normas programáticas, pois havia, claramente, resultados a serem alcançados, efetivamente -, é certo que, de outro lado, a OMC tem personalidade jurídica internacional, rege-se por um sistema de solução de conflitos e de produção de normas,Page 454 com participação de todos os membros em todos os acordos (à exceção, apenas, dos Acordos Plurilaterais):

“Ao contrário do seu antecessor GATT, a OMC é uma organização dotada de personalidade internacional, de modo que, enquanto o primeiro era apenas uma carta de intenções, a segunda é um corpo institucionalizado. Muitas das deficiências apresentadas pelo sistema do GATT foram sanadas:

  1. fim do “GATT à la carte”: na OMC todos os membro têm de participar de todos os acordos (com exceção dos Acordos Plurilaterais) – single undertaking(...)

  2. normas deixaram de ser programáticas, ocasionando a diminuição do “fator político”, a nova instituição passou a ser regulada por normas mais precisas (rule oriented);

  3. sistema de solução de conflitos mais rígido e sistematizado.”3

2. 2 Estrutura Jurídica da OMC

O Acordo Constitutivo da OMC se compõe de quatro anexos assim constituídos:

Anexo 1 – Acordo Multilateral sobre Comércio de Mercadorias

Anexo 1a) GATT 1947 e 1994

Anexo...

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