Origem do direito do trabalho

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas21-34

Page 21

1. 1 A pré-história do direito do trabalho

Houve tempo em que o homem produzia para atender às suas próprias necessidades e às de sua família, interagindo com a natureza e com outros homens que agiam à sua semelhança. Era um tempo, portanto, de mediações de primeira ordem1, ou mediações primárias, e de comportamento instintivo.

Produzindo o que era útil para o próprio consumo, o homem primitivo desconhecia o conceito de mercadoria e o mundo do trabalho não comportava, em situação de normalidade, a estrutura hierárquica que mais tarde viria a predominar nas relações de trabalho. A terra não estava repartida, nem havia quem a repartisse.

A troca ou escambo ganhou, progressivamente, alguma complexidade até que se iniciou um processo de conversão do valor de uso em valor de troca2, pois as coisas transferidas não o eram mais segundo o valor da utilidade que proporcionavam, mas passaram a ter o seu valor inlado pelo trabalho humano e, mais adiante, pelo valor que correspondia ao lucro, vale dizer, o ganho do empre-sário que precisava existir para justificar o seu investimento na produção.

O investimento na produção de mercadorias, em escala industrial, não foi a primeira forma de inversão do capital a contribuir para que se reduzissem gradualmente as mediações de primeira ordem. Um modelo econômico que pressupunha a realização de capital e, sob perspectiva histórica, precedeu o sistema capitalista fora certamente o sistema mercantilista. Desde as primeiras formas de mercantilismo (bulionismo ou metalismo), preconizava-se estar a riqueza das nações associada à quantidade de metais preciosos – ouro e prata – acumulada, servindo o incremento das exportações a esse im. Não por acaso, as nações colonialistas impediam que o ouro da colônia fosse vendido a outros povos.

Também a exploração do trabalho humano não surgiu, evidentemente, com a primeira revolução industrial. Ademais de citar o trabalho escravo e as suas modalidades – desde aquele que se realizava por meio de prisioneiros de guerra até o crudelíssimo aprisionamento da gente africana – podem-se mencionar o labor dos servos de gleba3 e dos aprendizes e oiciais nas corporações de arte e ofício4.

Page 22

O aparecimento do direito do trabalho tem relação com um modo específico de produção capi-talista que emergiu com a realidade social sobrevinda após os movimentos de ruptura sociopolítica e econômica que caracterizaram o im da era moderna, no tumultuado século XVIII. As condições adversas do trabalho humano que se percebiam no âmbito do emprego industrial exigiam um sistema de compensação jurídica que por zelo ou hipocrisia as legitimasse, atenuando o seu caráter espoliativo, além de demandarem uma construção teórico-ilosóica que izesse face à ideia, desde antes difundida entre os colbertistas, de que o industrial deveria assegurar aos seus trabalhadores apenas a remuneração que lhes garantisse a sobrevivência, pois do contrário não ocorreria a acumulação de riqueza tão cara ao mercantilismo.

É possível, como se nota em sistematização proposta por Mauricio Godinho Delgado5, destacar os fatores econômicos, sociais e políticos que delagraram o surgimento do direito do trabalho como ramo específico do direito privado.

Pode ser referido como fator econômico o advento do trabalho humano, alheio, produtivo e livre mas subordinado que caracterizou o emprego industrial; o fator social mais relevante terá sido a concentração urbana que propiciou a organização das proissões e viabilizou assim os movimentos obreiros reivindicatórios; os fatores políticos a serem ressaltados são decerto a liberdade de exer-cer qualquer proissão sem as amarras da sociedade estamental ou mesmo do sistema corporativo, bem assim as ações coletivas que se desencadearam a partir do ambiente de empresa e geraram não apenas a normatização das condições de trabalho sem a colaboração do Estado, mas também o modelo de democracia social que se contraporia à solução de força preconizada por Marx para a conquista de uma sociedade menos desigual. Cabe destrinçar cada um desses fatos determinantes para o nascimento e consolidação do direito laboral.

1. 2 Os fatores econômicos que inspiraram o direito do trabalho

Nos estertores do século XVIII, os trabalhadores perceberam a inluência danosa da primeira revolução industrial na oferta de trabalho e recusaram, por isso, a submissão a normas inspiradas nos princípios da revolução burguesa, especialmente nos postulados da igualdade e liberdade que os supunham, no plano artificial das abstrações jurídicas, semelhantes a empresários que os submetiam, inclementemente, a condições injustas de trabalho.

Cabe-nos estudar, portanto e analiticamente, os atributos do trabalho que justificaram a nova regência, ou melhor, impende analisar o fenômeno social que motivou o surgimento do direito do trabalho. Antes de detalhar as condições em que o trabalhador prestara serviço naquele novo modelo de organização social, ou seja, na empresa que emergira com a primeira revolução industrial, convém, por certo, relembrar o significado e as derivações desse conceito (revolução industrial).

1.2. 1 A revolução industrial

Poderia causar estranheza o uso indiscriminado do vocábulo revolução para designar uma transformação nos meios de produção – como é o caso da revolução industrial – e também alguns movimentos de ruptura política, como a Revolução Francesa de 1789 e, na mesma Inglaterra, a Revolução Gloriosa, um século antes. Ensina-nos Fábio Konder Comparato que “revolutio, em latim, é o ato ou efeito de revolvere (volvere significa volver ou girar, com o preixo re indicando repetição), no sentido literal de rodar para trás e no igurativo de volver ao ponto de partida, ou de relembrar-se”6.

Anota Comparato que o uso político do vocábulo revolução “começou com os ingleses, no sentido de uma volta às origens e, mais precisamente, de uma restauração dos antigos costumes e liberdades. [...] O termo revolution é assim usado, pela primeira vez, para caracterizar a restauração monárquica

Page 23

de 1660, após a ditadura de Cromwell”7. Deu-se, porém, um giro semântico a partir da Revolução Francesa, pois a mesma palavra que expressava o retorno ao regime político anterior passou a signi-icar uma mudança completa de valores e na ordem dos fatos, com o sinal claramente prospectivo da promessa de um mundo novo.

O grande movimento que eclodiu na França em 1789 veio operar na palavra revolução uma mudança semântica de 180º. Desde então, o termo passou a ser usado para indicar uma renovação completa das estruturas sociopolíticas, a instauração ex novo não apenas de um governo ou de um regime político, mas de toda uma sociedade, no conjunto das relações de poder que compõem a sua estrutura. Os revolucionários já não são os que se revoltam para restaurar a antiga ordem política, mas os que lutam com todas as armas – inclusive e sobretudo a violência – para induzir o nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos.8

Nos dias que correm, o termo revolução é polissêmico, embora preserve a conotação de ruptura que lhe foi dada pela Revolução Francesa. Lembra Paulo Bonavides9 que pode tal palavra significar, para os historiadores, a “transformação fundamental de uma situação existente, não importa em que domínio”; enquanto para os juristas a revolução é essencialmente “a quebra do princípio da legalidade, a queda de um ordenamento jurídico de direito público, sua substituição pela normatividade nova que advém da tomada do poder e da implantação e exercício de um poder constituinte originário”. Muito próximo e até se relacionando intrinsecamente com o conceito jurídico, o conceito político de revolu-ção: a “modificação violenta dos fundamentos jurídicos de um Estado”.

Interessa o tema sobretudo aos sociólogos e eles, quando instados ao conceito de revolução, concebem-na, como ocorrera a Marx, como “a busca retroativa de um desenvolvimento obstaculizado”, o que corresponderia, na sociedade de classes em constante conlito, ao momento em que “as forças materiais de produção na Sociedade caem em contradição com as relações de produção existentes”.

Ainda no campo sociológico, Ortega y Gasset observou que a revolução “não é barricada mas um estado de espírito”, rematando enim que “o revolucionário não se rebela contra os abusos da socie-dade, conforme fazia o homem medieval, mas contra os usos, quer dizer, contra as instituições, como faz o homem moderno”.

O mestre Bonavides, de cujo ensinamento extraímos várias destas breves notas, acrescenta: “se a mudança se refere ao pessoal de governo, não houve revolução, mas golpe de Estado; se a mudança, porém, atingiu a Constituição política e a forma de governo, já é possível falar em revolução, a saber, revolução política; se, porém, as transformações se verticalizarem mais [...], com ascensão de uma nova classe ao poder ou aparição de um novo sistema de camadas sociais, redistribuição de propriedade ou até mesmo sua abolição [...], aí o cientista político reconhecerá então a revolução social”10.

Como se pode perceber, o termo revolução não comporta, sob o ponto de vista conceitual, redução sociológica, jurídica ou política. Os seus vários sentidos denotam mudança e não raro se interpenetram...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT