O Pacto de São José da Costa Rica e a Possibilidade de Prisão Civil por Dívida Alimentar Trabalhista

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas221-235

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Introdução

Discute-se, neste texto, a ponderação entre dois valores: o direito individual à liberdade dos empregadores, em cotejo do próprio direito à vida dos trabalhadores, seriamente comprometido quando submetidos à situação de mora salarial.

Com efeito, a proposta é questionar quais são as consequências e responsabilidades daqueles que dão causa a uma situação de extrema vulnerabilidade dos trabalhadores e de seus familiares, com a retenção de salários, inflamando problemas sociais gravíssimos, com dimensões que se fazem sentir muito além do âmbito das relações entre capital e trabalho.

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Por outro lado, se todas as pessoas em situação vulnerável gozam, atualmente, de proteção especial do Estado e de mecanismos contemporâneos de efetividade de seus direitos, como se pode ver no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do Idoso, na Lei Maria da Penha, ou no próprio Código de Defesa do Consumidor, etc., no âmbito trabalhista, embora a CLT esteja desatualizada para proteção do trabalhador exposto às situações vulneráveis como a ora narrada, há fato novo concernente ao status do Pacto São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 19691) no contexto pós EC
n. 45/2004.

E é justamente na esteira da decisão do excelso STF que, com base neste diploma inter-nacional, extinguiu a prisão civil do depositário infiel, a fundamentação dessas breves anotações da possibilidade de elastecimento da prisão civil para abarcar a hipótese de inadimplemento de obrigação de caráter alimentar trabalhista, na forma contida no art. 7º, 7, do Pacto, consoante adiante se esmiuçará.

Como a Constituição da República resguarda a apreciação judicial de lesão ou ameaça à direito, nos termos do art. 5º, XXXV, e ante a vulnerabilidade impingida às vítimas da odiosa prática de retenção de salários, já por este prisma se iniciará o embasamento da justificação da medida proposta em caráter excepcionalíssimo.

É o que se passa a explanar.

1. Princípios fundamentais da República e acess o à justiça

O respeito à legislação trabalhista e ao trabalhador é condição fundamental para o desenvolvimento sustentável da sociedade e para o cumprimento dos princípios fundamentais da República concernentes ao valor social do trabalho e dignidade da pessoa humana. Por óbvio que as condutas que violam a legislação social, notadamente as atitudes abusivas daqueles empregadores que se valem de sua posição econômica para impor condições aviltantes às pessoas que necessitam vender sua força de trabalho, dentro de seu microcosmo legisferante (empresa)2, constituem macro lesões que afrontam a própria existência do Estado.

Não há dúvida de que os objetivos fundamentais constantes do art. 3º, I a IV, da CF, relativos à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, e, finalmente, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ficam seriamente comprometidos com a conduta de retenção de salários.

Com esta abordagem inicial, e lembrando que o art. 7º da Constituição da República consagra os chamados direitos humanos de segunda geração, os direitos sociais da massa trabalhadora, os quais se pode ter por praticamente violados em sua integralidade diante de uma retenção de salários, é que se adentra na temática propriamente dita.

Pois bem. As novas modificações do art. 5º da CF, cujo § 3º foi acrescentado pela EC n. 45/04, elevando os tratados e convenções sobre direitos humanos à condição de norma constitucional, positivam um sistema protecional e de prevalência dos direitos humanos na República.

O direito de acesso à justiça, por sua vez, que também constitui um direito humano (e de primeira geração, por se enquadrar no rol de direitos civis e políticos), está identicamente previsto na cláusula pétrea do art. 5º, XXXV, da Constituição da República, restando diretamente imbricado na questão. A garantia de acesso à justiça está elencada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica — Dec. n. 678/92), como direito civil das pessoas, como se lê em seu art. 25, litteram:

“Art. 25. Proteção Judicial

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1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais competentes, que a projeta contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados-Partes comprometem-se:

  1. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

  2. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

  3. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.”

Vale dizer, no ordenamento positivo brasileiro, o direito de acesso à justiça do cidadão trabalhador garante que, em caso de mora salarial, tenha à disposição um recurso simples, rápido e efetivo perante os juízos e tribunais trabalhistas para resolver o problema.

Segundo o entendimento de Joel Dias Figueira Júnior, para que o acesso à ordem jurídica justa se concretize em toda a sua plenitude é imprescindível que se verifique, primeiramente, a formação da conscientização difusa do direito de ação ou conscientização coletiva do direito de acesso aos tribunais. Em segundo lugar, faz-se necessário que se proporcione aos litigantes a paridade jurídica e fática concedida às partes dentro do processo, apta a conferir igualdade de instrumentos para a consecução de seus objetivos. Todos têm direito à adequada tutela jurisdicional, não bastando apenas a previsão normativa constitucional e principiológica do acesso à justiça, sendo necessária a existência de mecanismos geradores da efetividade do processo por intermédio de instrumentos que possibilitem a consecução dos objetivos perseguidos pelo autor, com rapidez (ou seja, dentro de um período de tempo razoável e compatível com a complexidade do litígio, proporcionando, assim, ao beneficiário da medida, a concreta satisfação do escopo perseguido)3.

O direito em geral deve ser examinado considerando a perspectiva dos “usuários” e não somente a perspectiva dos produtores do direito, de modo que a recomposição da ordem jurídica pela atuação concreta e efetiva do Estado-juiz, em face de qualquer lesão ou ameaça a direito, é uma manifesta afirmação de cidadania, além de representar confiança no poder legalmente constituído4.

José Afonso da Silva ressalta que onde não há conflitos de interesses, não há necessidade de justiça, que deve ser entendida como aquele valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito, conforme dispõe o Preâmbulo da Constituição. A cidadania é o foco para onde converge a soberania popular e consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de todos. Portanto, essa cidadania requer providências estatais no sentido da satisfação de todos os direitos fundamentais em igualdade de condições. Dentre os direitos fundamentais da pessoa humana sobreleva o direito que todos têm à jurisdição5.

Vale a transcrição do entendimento de José Afonso da Silva, na referência à Cappelletti:

“[...] o acesso à justiça não é só uma questão jurídico-formal, mas é também e especial-mente um problema econômico social, de sorte que sua aplicação real depende da

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remoção de vários obstáculos de caráter material, para que os pobres possam gozar do princípio de uma Justiça igual para todos. Ter acesso ao Judiciário sem a garantia de um tratamento igualitário não é participar de um processo justo. [...] A cidadania não se realizará com a simples igualdade perante a lei, pois, como lembra Cappelletti, ‘hoje, é bem claro que tratar como iguais a sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça’.”6Dessa forma, o direito de acesso à justiça é o primeiro fundamento para que o Poder Judiciário atue concretamente nos casos de mora contumaz salarial, proporcionando o efetivo acesso à justiça pelos trabalhadores-vítimas, com um remédio jurídico rápido, simples e efetivo.

2. Retenção de salários, mora salarial e danos sociais

O salário é a principal contraprestação devida pelo empregador no contrato de trabalho por constituir a remuneração da força de trabalho despendida pelo empregado e a razão de sua subsistência, assim, tem inegável caráter ALIMENTAR.

Por isto mesmo, o crédito trabalhista goza de superprivilégio na hierarquia creditícia brasileira, conforme previsão legal (art. 83, I, da Lei n. 11.101/05 — Lei das Falências, e art. 449 da CLT), inclusive se sobrepondo ao crédito tributário, na consonância da disposição do art. 186 do Código Tributário Nacional (“o crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for a natureza ou o tempo da constituição deste, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho” — com destaque). Tal preferência desdobra-se no direito processual do trabalho, com a previsão do parágrafo único do art. 652 da CLT, de que os créditos de natureza...

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