O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial/The pact of all against the slaves in Imperial Brazil.

Autorde Oliveira Vellozo, J

(...) este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada -que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviam de justificação, nominalmente objetiva, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas (SCHWARZ, 1999, p. 18). "Em seguida apareceu uma velha negra liberta, acompanhada de uma jovem escrava de sua própria raça, com uma touca na cabeça (...) Sua jovem escrava era seu único bem, ela a alugava como besta de carga a quem quer que fosse e para qualquer fim, o que lhe dava um bom meio de vida. Muitas pessoas nas redondezas do Rio, tanto brancas quanto negras, vivem dessa maneira. Possuem um único escravo, que pela manhã sai em busca de trabalho e à noite retorna com uma pataca... (WALSH, 1828-1829, p. 22) Introdução

Em seu famoso texto "As ideias fora de lugar", Roberto Schwarz afirma que houve uma "coexistência estabilizada" no Brasil escravista. Ela estaria baseada na lógica do favor que, segundo o autor, seria o elemento estruturador das relações estabelecidas naquela sociedade entre setores sociais diversos, especialmente entre o grande proprietário e o agregado. Ao afirmar a existência desta estabilidade, Schwarz se aproxima da ideia de antagonismos em equilíbrio sustentada por Gilberto Freyre, o que foi pouco notado por seus comentadores e dá continuidade a toda uma linhagem de pensamento que envolve obras que viram o Brasil como um país no qual a modernidade não se completara, onde a sociabilidade não se baseava no interesse, no contrato e na lei, mas em relações sociais de tipo pré-modernas. (1)

Na visão do autor, no Brasil escravista, ao invés das divergências de interesses resultarem na fricção que move lutas democráticas e prenhes de caráter criador, características entendidas como típicas de uma moderna sociedade de classes, o favor criara uma paz amorfa e estável. Esta paz permitiu que a oposição entre um suposto regime liberal e a existência de uma massa imensa de homens e mulheres escravizados não ficasse gritante. Na Europa a igualdade jurídica formal e a existência de um mercado de trabalho formado por homens livres mascarava, através de uma série de mecanismos complexos e eficientes, a realidade da apropriação do trabalho por parte de uma classe parasitária. No Brasil escravista a transplantação desse aparato liberal de ocultação funcionava de modo farsesco: é como se as máscaras, adequadas à Europa, aqui produzissem o grotesco. Bem se vê que não há, na visão do autor, qualquer defesa da existência de uma incompatibilidade entre capitalismo e escravidão como quiseram alguns de seus críticos, apenas a constatação da inadequação ou da ausência de verossimilhança dessa transplantação. Como lembrou Bernardo Ricupero, muitos intérpretes da obra de Schwarz não seguiram o pedido do autor para que o ensaio fosse visto como parte de um projeto mais amplo de compreensão da obra de Machado de Assis e acabaram por isolar o texto e por tratá-lo de forma artificial (Cf. RICUPERO, 2007).

Este artigo parte da constatação inicial de Schwarz para apresentar o seu primeiro argumento: a sociedade oitocentista, malgrado lutas sociais importantes, viveu sob uma situação geral de forte estabilidade quando comparada a outros Estado-nação em formação no período. No entanto--e este é o segundo argumento--acreditamos que esta estabilidade não estava baseada somente no favor, ou seja, em uma relação paternalista entre proprietários e uma massa meio inerte de gente excluída e dependente, mas assentava-se em relações constituídas a partir de uma base material bem definida: a ampla "democratização" da propriedade de escravos, ou seja, no fato de uma enorme massa de pessoas--algumas delas verdadeiramente pobres--partilharem da condição de proprietárias de cativos. Em outras palavras, consideramos que a ideia sob a qual se assenta o ensaio de Schwarz está correta e houve uma considerável estabilidade, "uma coexistência estabilizada" em uma sociedade na qual "os incompatíveis saem de mãos dadas". Esta estabilidade, no entanto, não está fundamentada em uma relação anômala entre patrão e agregado, em relações cordiais ou em qualquer outro tipo de sociabilidade identificada pelo pensamento social brasileiro como pré-moderna, esta, na verdade, estabelecida no mais moderno e racional dos interesses, a manutenção da propriedade privada.

A condição comum de proprietários do mais importante bem existente naquela sociedade, os cativos, gerou um consenso forte, uma pactuação de fundo entre gente de riqueza e posição social muito diversa. Ela envolvia, é claro, a manutenção da escravidão, mas ia muito além: pressupunha a construção de uma série de mecanismos políticos e, especialmente, jurídicos, que permitiam a sua reprodução como sistema. Houve um direito civil e um direito penal da escravidão oitocentista brasileira. Gerou ainda um arranjo político constitucional durante o Império que foi, considerados os padrões da época, muito inclusivo para os homens livres que tinham a condição de proprietários de escravos como uma poderosa base de interesse comum.

Este consenso forte, ao contrário do que se poderia pensar, não resultou na transformação do Brasil em uma grande fazenda escravista, uma unidade política cuja única função de existência foi a manutenção do cativeiro. O Estado Imperial foi muito mais do que uma estrutura jurídico-política cuja função cotidiana era manter o sistema escravista funcionando e um mero exame superficial da vida parlamentar brasileira durante o Império desmente prontamente esta visão simplificadora, já que os representantes estiveram envolvidos em uma série de elaborações e debates de fundo sobre os temas mais diversos. (2) O que aconteceu foi justamente o contrário: a força imensa que este consenso forte dava à escravidão permitiu a construção de um arcabouço jurídico-político com uma quantidade de franquias liberais superior à média das experiências do período. Ficaram de fora dos direitos civis e de boa parte dos políticos apenas os escravos, isolados pelo cerco que lhe faziam uma enorme massa de pequenos, médios e grandes senhores, sócios de um sistema de exploração de grande eficiência. (3)

Esta hegemonia sólida, esta potente aliança de ricos, remediados e pobres contra os escravos, permitiu até mesmo a manutenção de uma margem bastante grande para as dissensões políticas no interior das elites brasileiras, que se deram ao luxo de disputar de forma bastante radical, inclusive de armas na mão, os modelos de Estado a serem instaurados no Brasil. (4) Estivessem as amplas massas dos pobres livres excluídas da propriedade de escravos e de uma participação nos negócios políticos do país, os riscos para as dissensões entre as elites talvez tivessem evitado processos como a Confederação do Equador (1824), a Cabanagem (1835), a Balaiada (1838), a Sabinada (1837), a Farroupilha (1835), dentre outras rupturas importantes como as citadas. (5)

Este texto é dividido em duas partes. Na primeira apresentaremos a estruturação da propriedade de escravos no Brasil, demonstrando que o número de proprietários de cativos--ricos, medianamente ricos, pobres--era bastante grande, atingindo os setores mais diversos da sociedade brasileira, tanto do ponto de vista geográfico, quanto econômico e de renda. Na segunda parte, em abordagem ainda exploratória, buscaremos demonstrar que a democratização da propriedade de escravos condensou-se em um arranjo constitucional que cedeu direitos civis e políticos para amplas parcelas, excluindo e isolando, é claro, os escravos. Sobre esse ponto, em texto de 2006, Rafael Bivar Marquese parte do mesmo diagnóstico que apresentamos--o caráter disseminado da propriedade escrava e a estabilidade que isso criava--para explicar a ausência de grandes contestações contra a escravidão, a exemplo do Quilombo dos Palmares, a partir de certo momento da história brasileira. Também constata o mecanismo de cooptação do sistema escravista, que funcionava a partir da concessão da cidadania. Nosso artigo parte deste pressuposto para oferecer novas conclusões, um pouco mais globais no que se refere à política Imperial, especialmente no que concerne à superestrutura jurídico-política (Cf. MARQUESE, 2012). Por último, apresentaremos algumas poucas palavras que buscam amarrar as conclusões do trabalho e apresentar pistas para pesquisas futuras. Estas são provisórias, considerando que estamos ainda em fase exploratória da pesquisa.

  1. O caráter da propriedade escrava no Brasil

    Dos cerca de 12 milhões de escravizados trazidos para a América mais de 5 milhões vieram para o Brasil. Essa imensa massa humana, ainda mais impressionante para os padrões demográficos de então, se espalhou por boa parte do território habitado. Este espalhamento se deu tanto geograficamente, na medida em que os escravos se distribuíram por, praticamente, todo o território no qual havia ocupação econômicaquanto do ponto de vista das classes sociais, já que mesmo setores mais pobres tinham escravos (Cf. MARIUZZO, 2011).

    A força de obras icônicas do pensamento social brasileiro, da historiografia e mesmo da literatura criou a imagem do escravo como aquele que vivia em grandes plantéis, em geral envolvido com as atividades económicas voltadas à exportação--cana-de-açúcar, mineração, café, algodão. No entanto, especialmente a partir da década de 1980, a historiografia passou a demonstrar a generalização da presença do escravo na economia e na vida social brasileira. Conforme afirmou Stuart Schwartz, um dos responsáveis por esta mudança, "nem o plantador típico nem o escravo típico viveram nas grandes plantações do Brasil colonial" (SCHWARTZ, 1983, p. 222).

    Uma marca decisiva da escravidão no Brasil, responsável por sua longevidade, resiliência, perversidade e capacidade de prolongar aspectos de sua cultura para além da abolição, está relacionada a...

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