Pancada de amor não dói': a audiência de custódia e a visibilidade invertida da vítima nos casos de violência doméstica

AutorManuela Abath Valença, Marilia Montenegro Pessoa de Mello
CargoProfessora do Curso de Direito e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Professora do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco, Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia/Professora do Curso de Direito e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, ...
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N. 02, 2020, p. 1238-1274.
Manuela Abath Valença e Marilia Montenegro Pessoa de Mello
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50471| ISSN: 2179-8966
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‘‘Pancada de amor não dói”: a audiência de custódia e a
visibilidade invertida da vítima nos casos de violência
doméstica
“Love battering doesn’t hurt: the initial appearance upon arrest and the victim's
reversed visibility in cases of domestic violence"
Manuela Abath Valença ¹
¹ Universidade Católica de Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
Pernambuco, Brasil. E-mail: manuela.valenca@ufpe.br/manuela.valenca@unicap.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7292-4232.
Marilia Montenegro Pessoa de Mello ²
² Universidade Cat ólica de Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
Pernambuco, Brasil. E-mail: marilia.montenegro@unicap.br/marilia.pmello@ufpe.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5540-389X.
Artigo recebido em 26/04/2020 e aceito em 27/04/2020.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N. 02, 2020, p. 1238-1274.
Manuela Abath Valença e Marilia Montenegro Pessoa de Mello
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50471| ISSN: 2179-8966
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Resumo
Este trabalho, fruto de uma pesquisa empírica realizada em audiências de custódias no
Recife e em Olinda, problematiza a ausência da vítima nos casos da Lei M aria da Penha
nesses atos. Para t anto, confrontamos a atuação dos/as juízes/as da audiência de
custódia ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, na ADI 4424, que negou, em
nome da proteção às mulheres, a representação no crime de lesão corporal leve nos
casos abrangidos pela Lei Maria da Penha. Durante a pesquisa percebemos que, o
“batedor de mulher”, ao dividir, nas audiências, espaço com “ladrões” e “traficantes”,
esvazia a gravidade da violênc ia doméstica, gerando decisões liberatórias que, não são
necessariamente um problema em si, mas podem se tornar quando não acompanhadas
de uma assistência específica à vítima. Ao final, mesmo apontando um caminho de
muitas dificuldades, propomos um diálogo entre a Lei Maria da Penha e as audiências de
custódia para minorar a revitimização da mulher no processo penal.
Palavras-chave: Audiência de cust ódia; Violência doméstica contra a mulher;
Revitimização.
Abstract
This article draws on findings of an empirical research on the so-called “custody
hearings”, that is, the initial appearance before a judge after detainees are arrested for a
crime in Brazil. This study was carried out in the cities of Recife and Olinda and the aim
in this paper is to problematise the absence of the victim at such hearings in c ases ruled
by Brazil’s domestic violence law – the ‘Maria da Penha Law’. In t his vein, we confronted
judges’ workings in custody hearings against the backdrop of a decision made by Brazil’s
Supreme Federal Court, in the “ADI 4424” case, which imposed “obligation to
prosecute” domestic abuse assaults causing minor physical injuries – all in name of
protecting the victim. During the research fieldwork we found that the seriousness of
domestic violence is somewhat undercut for “women batterers” share the same space
as “thieves” and “drug dealers” in the workings of custody hearings. This has led to
decisions to release defendants from detention when their cases fall under the auspices
of the Maria da Penha Law. This is not a problem in itself but may well become one
when victims are left unassisted. At the end of the day, while acknowledging its many
challenges, we suggest a dialogue between the Maria da Penha Law and custody
hearings to lessen the revictimization of women in criminal proceedings in Brazil.
Keywords: Custody hearings; Domestic violence against women; Revictimisation.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N. 02, 2020, p. 1238-1274.
Manuela Abath Valença e Marilia Montenegro Pessoa de Mello
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50471| ISSN: 2179-8966
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1. Quando a violência doméstica chega na audiência de custódia
Após a entrada do custodiado, a juíza iniciou a busca pelos seus
antecedentes. Neste tempo, mencionou em tom de deboche o fato de já ser
o quarto processo em que a mesma mulher figura como vítima daquele
homem, dizendo que o fato de a mulher se deixar passar por isso quatro
vezes lhe dá raiva. Por sua vez, o promotor respondeu: "Pancada de amor
não dói. Já dizia o poeta, né!?", após o que, disse que existe uma música de
forró que fala de "surra de amor". A defensora pública pede, aos risos, que
ele cante a canção, mas ele re sponde que não pode fazer isso, já que estava
sendo tudo gravado. Logo que a magistrada avisa que não está gravando
ainda, ele canta e todos riem, inclusive o custodiado1.
O tom descontraído que essa conversa assume, apesar de estarem todos diante
de um fato tão grave, não destoa do dia a dia dos atos realizados pelo sistema de justiça
criminal. A repetição, o ritmo rápido, as metas a serem batidas, a pressa em acabar o
expediente, o longo tempo desempenhando a mesma função, a falta de capacitação, o
contato frequente entre os mesmos atores j urídicos, dentre vários outros fatores,
contribuem para que essas pessoas relaxem do rígido papel de juiz/a, promotor/a ou
defensor/a e se permitam uma espontaneidade que dá espaço até mesmo a piadas com
o crime praticado, com a vítima e até com o réu, muitas vezes ali presente.
Naquela audiência, todos riram, inclusive o custodiado, que estava ali esperando
por uma decisão que poderia conduzi-lo ao sistema prisional como um preso preventivo
ou que o liberaria para responder solto ao processo por um crime no contexto da
violência doméstica.
Essa cena se passou em uma audiência de custódia, na cidade do Recife, sendo
umas das 87 (oitenta e set e) audiências acompanhadas em uma pesquisa de maior
amplitude realizada pelo Grupo Asa Branca de Criminologia em parceria com o Instituto
de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) (IDDD,2019). Entre os anos de 2018 e 2019,
foram estudadas 157 audiências, sendo 70 delas na cidade de Olinda.
No Recife e em Olinda, a maior parte dos casos de v iolência doméstica que
observamos na pesquisa findou em concessões de liberdade provisória, com ou sem
1 Diário de campo da pesquisadora Thayná Nascimento de Lima, vinculada ao Programa de Iniciação
Cientifica da UNICAP (PIBIC/UNICAP), que gerou o plano de trabalho Lei Maria da P enha e Audiência de
Custódia: estudo de caso na cidade do Recife, relacionado ao projeto de pesquisa “A Lei Maria da Penha e
um possível diálogo com as alternativas penais”, coordenado pelas autoras do presente artigo (LIMA, 2019).

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