Pandemia e crimes contra a humanidade: o 'caráter desumano' da gestão da catástrofe sanitária no Brasil

AutorDeisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés, Kathia Martin-Chenut
CargoUniversidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil/Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil/Centro Nacional da Pesquisa Cientifica da França (CNRS), UMR ISJPS (CNRS-Universidade de Paris 1), Paris, França
2206
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 2206-2257.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés e Kathia Martin-Chenut
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/61769| ISSN: 2179-8966
Pandemia e crimes contra a humanidade: o “caráter
desumanoda gestão da catástrofe sanitária no Brasil
Pandemic and crimes against humanity: the "inhuman character" of health
catastrophe management in Brazil
Deisy de Freitas Lima Ventura¹
¹ Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: deisy.ventura@usp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8237-2470.
Cláudia Perrone-Moisés²
² Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: cpmoises@usp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2931-0929.
Kathia Martin-Chenut³
³ Centro Nacional da Pesquisa Cientifica da França (CNRS), UMR ISJPS (CNRS-Universidade
de Paris 1), Paris, França. E-mail: Kathia.Martin-Chenut@univ-paris1.fr. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3977-9069.
Artigo recebido em 22/07/2021 e aceito em 22/08/2021.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License
2207
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 2206-2257.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés e Kathia Martin-Chenut
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/61769| ISSN: 2179-8966
Resumo
Quais seriam os critérios para aferição do caráter desumano de atos praticados por
governos contra a população civil durante uma pandemia? Para responder a esta
pergunta, o presente ensaio, situado na interface entre o direito internacional penal e a
saúde global, resgata um passado de práticas delituosas no campo sanitário para apontar,
no presente, a determinação política e ideológica das respostas nacionais à Covid-19. A
seguir, recorre ao pensamento de Hannah Arendt e Mireille Delmas-Marty para tratar do
caráter evolutivo dos crimes contra a humanidade, como base para a análise de um caso
paradigmático: a resposta brasileira à pandemia de Covid-19, cujas condutas
governamentais são apresentadas à l uz de elementos como contexto, actus reus e mens
rea.
Palavras-chave: Pandemia, Crimes contra a humanidade, Saúde global
Abstract
What are the criteria for assessing the inhumane character of acts committed by
governments against the civilian population during a pandemic? To answer this question,
this essay, situated at the interface between international criminal law and global health,
recalls a past of criminal practices in the health field to point out, in the present, the
political and ideological determinants of national responses to Covid-19. Next, it draws on
the thought of Hannah Arendt and Mireille Delmas-Marty to address the evolving nature
of crimes against humanity, as a basis for the analysis of a paradigmatic case: the Brazilian
response to the Covid-19 pandemic, whose governmental conducts are presented in the
light of elements such as context, actus reus and mens rea.
Keywords: Pandemic, Crimes against humanity, Global health
2208
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 3, 2021, p. 2206-2257.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Cláudia Perrone-Moisés e Kathia Martin-Chenut
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/61769| ISSN: 2179-8966
1. Introdução
Em 22 de abril de 2020, provavelmente pela primeira vez, um renomado especialista em
direito internacional penal apontou que certas condutas de governantes durante a
pandemia de Covid-19 poderiam ser consideradas crimes contra a humanidade
1
. Trata-se
do Embaixador norte-americano David Scheffer, um dos principais negociadores do
Estatuto de Roma (1998) que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI)
2
. Menos de três
meses após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter declarado emergência
internacional para enfrentamento da Covid-19
3
, Scheffer já afirmava:
O erro de saúde pública pode ser elevado ao patamar de crime contra
a humanidade, como definido no ER do TPI: um “ato desumano... que
causa intencionalmente grande sofrimento, ou afeta gravemente a
integridade física ou a saúde física ou mentalque é “cometido no
quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer
população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Com o número
de mortos por Covid-19 ainda aumentando em índices alarmantes em
muitos países, inclusive nos Estados Unidos, a noção não é tão forçada.
Por exemplo, líderes políticos poderiam ser apontados como
perpetradores de um crime contra a humanidade que resulta em
dezenas de milhares de mortes porque eles intencionalmente
falharam em providenciar a testagem do vírus a tempo e em grande
escala, ou falharam na aquisição de equipamentos de proteção
individual para os trabalhadores da saúde, ou deixaram de ordenar
medidas essenciais de distanciamento social
4
.
1
SCHEFFER, David. “Is It a Crime to Mishandle a Public Health Response?”. Council of Foreign Relations, 22
abr. 2020. Disponível em: <https://www.cfr. org/article/it-crime-mishandle-public-health-response>. Acesso
em: 10 ago. 2021.
2
Embora os Estados Unidos não tenham ratificado o ER, “partic iparam ativamente das negociações para a
criação do TPI e determinaram, em grande medida, os resultados alcançados no texto final”; o Presidente Bill
Clinton assinou o ER, mas não recomendou sua ratificação, e o governo subsequente “iniciou uma forte
política de oposição ao instrumento”, MAIA, Marrielle. O TPI na grande estratégia norte-americana (1990-
2008). Brasília: FUNAG, 2012, p.18. Ver também os relatos do próprio Embaixador, por ex., SCHEFFER, David.
“The United States and the International Criminal Court”. American Journal of International Law, v.93, n.1,
1999, p.12-22.
3
Não se deve confundir a declaração pela OMS, em 30 de janei ro de 2020, de que a Covid-19 era uma
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional - ESPII (categoria jurídica criada pelo Regulamento
Sanitário Internacional, vigente desde 2007 em 196 Estados), com o reconhecimento, em 11 de março de
2020, de que a Covid-19 havia se tornado uma pandemia. Das seis ESPIIs até hoje declaradas pela OMS,
apenas duas são pandemias: além da Covid-19, a gripe AH1N1 (2009-2010).
4
Grifos nossos. No original: “Public health malpractice could rise to the level of a crime against humanity, as
defined in the Rome Statute of the International Criminal Court: an ‘inhumane act …intentionally causing
great suffering, or serious injury to body or to mental or physical health’ that is ‘part of a widespread or
systematic attack directed against any civilian population, with knowledge of the attack’. With the death toll
due to COVID-19 still rising at alarming rates in many countries, including the United States, the notion is not
so far-fetched. For example, political leaders could be tagged as perpetrators of a crime against humanity
resulting in tens of thousands of deaths because they intentionally failed to provide ti mely and widespread
testing for the virus, or failed to acquire personal protective equipment for health workers, or failed to order
critical social-distancing measures”, SCHEFFER, David, op. cit., n.p.

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