O panorama no código de processo civil de 2015

AutorRafael Calmon
Páginas41-58
4
O PANORAMA NO CÓDIGO DE
4.1 O PROCESSO CIVIL NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO: O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Pouco a pouco, a hipertrof‌ia atribuída ao conceito de “interesse público” acompa-
nhada de um grande déf‌icit democrático fez com que o paradigma social entrasse em
colapso, vindo a ser oportunamente substituído pelo Estado Democrático de Direito.
O passar do tempo havia demonstrado que o prestígio desmedido e polarizado, ora aos
interesses públicos, ora aos interesses privados, ora à autoridade, ora à liberdade, decorrera de
uma visão apequenada, incapaz de distinguir público de estatal e de perceber que, na verdade,
ambos são necessariamente complementares. Af‌inal, a vida está cheia de exemplos demons-
trando que o respeito a direitos individuais acaba representando a mais legítima forma de
satisfação do próprio interesse público em um Estado Democrático de Direito, que não pode
conviver com injustiças e com a violação de direitos subjetivos fundamentais, em nome de
uma pretensa e ultrapassada ideia de supremacia abstrata e apriorística do interesse público.1
Na feliz síntese elaborada por Luís Roberto Barroso:2
o espaço estritamente privado compreende o indivíduo consigo próprio, abrigado em sua consciência
(intimidade) ou com sua família, protegido por seu domicílio (privacidade). O espaço privado, mas não
reservado, é o do indivíduo em relação com a sociedade, na busca da realização de seus interesses
privados, individuais e coletivos. E, por m, o espaço público é o da relação dos indivíduos com o Esta-
do, com o poder político, mediante o controle crítico, a deliberação pública e a participação política.
Deve haver harmonia e interação entre todos eles.
Portanto, no Estado Democrático de Direito, a Constituição deixa de ser vista em
seu aspecto meramente formal, para se tornar a lei suprema de toda a ordem jurídica,
estipulando um punhado de garantias individuais e sociais dotadas de força normativa
própria.
1. Com esse pensamento: ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular. Revista Trimestral de Direito Público, n. 24. 1998, p. 44; SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs.
interesses privados na perspectiva da teoria e da f‌ilosof‌ia constitucional. Em: SARMENTO, Daniel (Org.) Interesses
públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. 3. tir. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 27; MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Ed.
RT, 2003, p. 195-194.
2. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 87.
PEDIDOS IMPLÍCITOS • RAFAEL CALMON
42
A separação dos poderes emerge como ponto relevante desse tempo. Abandona
sua concepção meramente representacional para assumir o posto de fundamental fator
de legitimidade, limitação e controle do poder.
Outra marca característica desse período é a abertura do Direito para um diálogo
maior com a moral, com a ética e com a justiça, por meio de princípios, que passaram
a conviver harmonicamente com as regras no sistema jurídico.3
Como resultado de todo esse processo, os pontos de conf‌luência entre público e
privado aumentaram. Normas fundamentais de institutos consagrados de Direito Privado
foram transplantadas para o ambiente constitucional, onde passaram a se sujeitar a uma
hermenêutica guiada pelos valores e princípios abraçados pela Constituição Federal. No
campo do direito público, observa-se semelhante transição. A Administração Pública
passa a cada vez mais se utilizar de modelos e instrumentos baseados nos esquemas
privatísticos para a consecução de seus objetivos, como a responsabilidade objetiva e
os contratos administrativos.
Passa-se a falar, assim, em privatização do direito público e publicização do direito
privado.
Conformando essas interações, estão as necessidades existenciais dos seres huma-
nos. Ao mesmo tempo em que as transformações ocorriam nas searas pública e privada,
assistiu-se ao ingresso do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na
ordem jurídica brasileira, o que conduziu a uma ressignif‌icação do conceito de “pessoa
humana”, desacoplando-a das f‌iguras do sujeito abstrato e do sujeito de direitos, surgidas
sob a concepção do Estado Liberal, para conectá-la à imagem do sujeito real, da pessoa
concreta e mantida em relação com os demais membros da comunidade.4
Posicionando o “ser humano situado” no âmbito de todas as relações jurídicas,
esse movimento acarretou uma mudança de enfoque: antes, os institutos jurídicos eram
valorizados em razão de sua capacidade de tutelar o patrimônio, a propriedade, isto é,
vistos em seus aspectos estrutural e operacional apenas, sendo o homem valorizado à
medida em que f‌igurava como sujeito de direitos, inserido em uma relação contratual
ou real; posteriormente, os institutos de Direito passaram a ter sua importância reco-
nhecida a partir da função que ostentavam, ou melhor, do papel que desempenhavam
em um contexto mais amplo, como a sociedade, a economia, a política etc., época em
que o homem acabava sendo visto como sujeito merecedor de atuação interventiva do
Estado, não por sua dignidade própria, mas sim pela coletividade em que estava inse-
rido; atualmente, as categorias jurídicas relevam à medida em que se tornam capazes
de servir às pessoas e os direitos que se encontram por detrás delas, ou seja, em razão
de sua aptidão a densif‌icarem o princípio da dignidade da pessoa humana e os valores
e princípios constitucionais fundamentais.
Porém, como dito, esta pessoa não é aquela abstrata e descontextualizada, mas sim
o ser humano real, situado no contexto sociopolítico da contemporaneidade.
3. Por todos: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
4. Assim: QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 19-20.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT