O papel da Escola Superior de Guerra na sustentacao do regime autoritario brasileiro/The role of the Superior War School in supporting the Brazilian authority regime.

AutorSchinke, Vanessa Dorneles

Introducao

As rupturas institucionais podem ser resultado de amplos e complexos acordos entre forcas atuantes dentro de determinados contextos sociais ou, paradoxalmente, resultarem de um contexto de ausencia de acordos minimos dentro de uma sociedade. A antologia latino-americana (DALMAU, 2008; GARAVITO, 2011; QUIJANO, 2005) nos mostra que esses momentos historicos resultam de complexas articulacoes entre os campos institucional, social, politico e economico, ao passo em que parte qualificada da literatura (GARAVITO, 2011; GARGARELLA, 2014; SANTOS, 2010) indica nao haver resposta canonica para esses fenomenos. A propria expressao "autoritarismo" e comumente apresentada como autoexplicativa, o que contribui para que peculiaridades relevantes de cada contexto sejam esmaecidas. Esse raciocinio serve para o emprego do adjetivo "autoritario", utilizado para indicar uma gama de modelos politicos com caracteristicas bastante dispares (SANTOS, 2007, p. 283). Apesar da ausencia de consensos, do ponto de vista que prima pela problematizacao dos arranjos entre as instituicoes e suas relacoes com o sistema de protecao dos direitos humanos no ambito interno dos Estados, percebe-se que contextos de rupturas institucionais sao marcados pela concentracao de poder e pela supressao de direitos e garantias individuais.

Esse quadro, entretanto, nao decorre de uma equacao direta. Estudos acerca dos regimes autoritarios sugerem que o comportamento das instituicoes e dos atores envolvidos e permeado por discursos, cujas construcoes de sentido pretendem fundamentar as funcoes que cada um desses atores exerce na engrenagem de cooptacao de lealdades e de repressao dentro do regime. Exemplo disso e a ideia de refugio burocratico cunhado por Boaventura de Souza Santos para se referir a cultura juridica brasileira de fetiche por tudo que seja burocraticamente formatado (SANTOS, 2008, p. 71), a qual serviu de meio para que o regime instaurado em 1964 se comunicasse com orgaos esvaziados de conteudo democratico (SCHINKE, 2016, p. 132), embora pertencentes ao organograma do Estado. No mesmo sentido, o trabalho de PAIXAO e BARBOSA (2008, p. 62) problematizou o papel paradoxal que a insercao da clausula de exclusao da apreciacao judicial dos Atos Institucionais e de seus efeitos exerceu no discurso de legitimacao do regime. O estudo acerca da narrativa construida pelos textos dos Atos Institucionais tambem indica a preocupacao que o regime brasileiro teve com a construcao de sentidos que pudessem remeter a uma ideia de legitimidade ou de coerencia logica do sistema repressivo (PAIXAO, 2011).

Diante disso, este trabalho pretende identificar o papel desenvolvido pela Escola Superior de Guerra (ESG) na sustentacao teorica do regime autoritario brasileiro de 1964-1985. A hipotese e de que esse espaco desempenhou tarefas relacionadas a organizacao e difusao dos conceitos-chave da Doutrina da Seguranca Nacional, ao mesmo tempo em que serviu de hall para o encontro de pessoas identificadas como pertencentes a elite nacional, conforme denominacao conferida pelo proprio regime.

A pesquisa sugere que a ESG foi uma importante difusora do discurso dicotomico entre desenvolvimento e seguranca, conseguindo acessar espacos oficiais do Estado, a exemplo do Poder Judiciario, cujos membros participavam de seus encontros regulares. Alem disso, a interpretacao das fontes utilizadas indica que o discurso desenvolvimentista impulsionado pela ESG impunha ao Judiciario o importante papel de contencao da subversao, uma expressao-chave nos materiais publicados pela ESG. Diante disso, o trabalho indica que as funcoes desempenhadas pela Escola contribuiram para que a engrenagem de sustentacao do regime conseguisse articular espacos dispares em torno de um minimo comum denominado elite nacional. O estudo se legitima na medida em que identifica a preocupacao do regime com a criacao de um espaco revestido de uma suposta legitimidade tecnica. Ademais, o estudo aponta para o fato de que essa natureza hibrida, revestida de uma pretensa legitimidade tecnico-teorica, contribuiu para acessar e capitalizar interesses oriundos tanto dos meios empresariais e nao-estatais, quanto do proprio Estado, a exemplo do Poder Judiciario, que ocupou espaco privilegiado no material doutrinario desenvolvido pela Escola Superior de Guerra. No que tange a estrategia metodologica, Em razao do melhor acesso as fontes primarias, o recorte privilegiou a relacao entre a ESG e sua filial localizada no Rio Grande do Sul. O trabalho conclui que o regime destinou um lugar privilegiado para a Escola Superior de Guerra, a qual foi encarregada de condensar os conceitos provenientes da Doutrina da Seguranca Nacional norte-americana e de propalar tais ideias, ao passo em que cooptava integrantes de instituicoes estatais e nao-estatais simpatizantes ao regime, os quais integrariam a grande elite nacional, a quem incumbiria determinar os rumos do pais.

O estudo pretende dar continuidade as pesquisas que se debrucam sobre a complexa engrenagem de sustentacao construida pelos regimes autoritarios brasileiros, notadamente no que tange ao esforco discursivo engendrado pelos atores envolvidos na relacao de solidariedade ao regime, captacao de vantagens e manutencao da repressao. Ao final, o trabalho indica que dentre o leque de contatos, a Escola manteve estreito interesse tanto na comunicacao com espacos empresariais, quanto com o Poder Judiciario, sugerindo que, para alem das analises inauguradas pelos trabalhos de Anthony Pereira, acerca do uso da legalidade autoritaria, e de Bohoslavsky e Gargarella (2015), sobre a atuacao concreta dos magistrados para encobrir graves violacoes de direitos humanos cometidas pelos agentes do regime, a cooptacao de membros das instituicoes fazia parte de um projeto discursivo voltado para a sustentacao teorica das teses defendidas pelo regime.

1 O hall das elites: a Escola Superior de Guerra

A Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949, foi criada, em tese, para ser um instituto de altos estudos, subordinado diretamente ao Chefe do Estado Maior das Forcas Armadas, destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessarios para o exercicio das funcoes de direcao e para o planejamento da seguranca nacional. A estrutura unificada da ESG refletiria, metaforicamente, o que Golbery do Couto e Silva denominou de "conceito moderno de seguranca nacional", que nao se restringia a defesa das fronteiras. A preocupacao com os ataques indiretos (que pretendiam implementar um governo comunista, por quaisquer meios) seria amplamente difundida pela Escola apos o golpe de 1964.

O Projeto de Lei de criacao da ESG tambem deixou claro o proposito de incluir civis nos seus quadros de professores e de alunos. Entre 1950 e 1967, mais da metade de seus diplomados eram civis--conforme a terminologia da ESG, os que concluiam seus cursos eram denominados diplomados e os alunos chamavam-se estagiarios. Dentre seus diplomados, mais de 500 tornaram-se oficiais do primeiro escalao militar; 224 grandes empresarios; 200 ministros de Estado e altos executivos; 97 dirigiram orgaos governamentais; 39 foram parlamentares e 23 tornaram-se juizes federais ou estaduais e outros 107 eram profissionais das mais diversas areas--medicos, professores, economistas, escritores e religiosos (STEPAN, 1975, p. 120).

A inclusao na Escola de determinados civis teve como finalidade dar aos civis interessados nos trabalhos pertinentes a organizacao da Seguranca Nacional, particularmente aqueles que devam dirigir a mobilizacao nacional ou a politica exterior, uma visao panoramica dos problemas e processos de execucao daquela operacao. Paralelamente, essa formacao fornecia aos militares selecionados para funcoes de alto comando oportunidade de, atraves "do convivio do trabalho em comum, apreciar os pontos de vista civis, de modo a obter uma compreensao mais perfeita entre esses grupos que se completam e sobre cujos ombros recaem identicas responsabilidades na defesa da Patria" (BRASIL, 1949, p. 5830). Alem disso, procurou-se atender, por meio dessa referida inclusao, ao entrosamento indispensavel entre a conduta das operacoes militares e a formulacao da politica nacional (BRASIL, 1949, p. 5831).

Alem de cooperar nas funcoes de expor a doutrina e a politica de seguranca nacional, a partir do golpe de 1964, mais do que um centro de estudos, a Escola exerceu a funcao de nucleo de formacao intelectual do poder civil-militar, cuja finalidade maior foi sustentar o discurso de que o governo militar, sustentado por elites civis e economicas, teria condicoes tecnicas e legitimidade para enfrentar os desafios do desenvolvimento nacional. Nao por outra razao, a presenca de civis contribuiu para reverter o paradigma brasileiro de que os militares careciam de legitimidade para governar (PESSOA, 1971, p. 120; STEPAN, 1975, p. 101 e 107). Dentro do pensamento da seguranca nacional, a ESG deveria reunir a elite dirigente do pais, a quem incumbiria "captar e interpretar os interesses e as aspiracoes latentes do povo" (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 1976, p. 227).

Curiosamente, o Manual da Escola Superior de Guerra traz a ressalva de que, eventualmente, caso a elite nao saiba identificar os objetivos nacionais e os anseios da nacao, ela decaira em descredito. Surgiria a necessidade, entao, de que os objetivos dessas elites fossem coerentes com os "objetivos nacionais". Os objetivos nacionais, por sua vez, eram expressoes vagas e circulares que serviriam para quaisquer finalidades, inclusive para a manutencao e o incremento da repressao do regime. Os documentos de criacao da Escola compunham uma engenharia discursiva que permeou todo o regime no intuito de manter as decisoes sobre o arranjo das instituicoes na mao dos que integravam o escalao acima do ocupado pela "elite brasileira". Esse posto era ocupado pelos responsaveis em replicar os conceitos da Doutrina da Seguranca Nacional na America Latina e, em especial, no Brasil. A...

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