O Papel da Lei Complementar na Solução de Conflitos de Competência

AutorRicardo Anderle
Ocupação do AutorDoutor PUC/SP. Mestre USP. Ex-Conselheiro do CARF
Páginas1099-1138
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O PAPEL DA LEI COMPLEMENTAR NA SOLUÇÃO
DE CONFLITOS DE COMPETÊNCIA
Ricardo Anderle1
1.1 Normas gerais em direito tributário
As normas gerais em direito tributário atravessaram di-
ferentes momentos na história do direito brasileiro, seja com
relação a seu conceito doutrinário, seja no âmbito do direito
positivo brasileiro. Muitos trabalhos acadêmicos já cuidaram
do tema, com largos debates sendo travados e com bons argu-
mentos para todos os lados. Sem pretender esgotar todas as
posições defendidas, podemos resumir a história das normas
gerais no direito tributário em quatro momentos distintos.
Na sua primeira fase, a norma geral surge como instru-
mento importante na demarcação da competência tributária
dos entes políticos e não há maiores críticas quanto ao seu
âmbito de validade. Os autores que cuidaram do tema, como
Rubens Gomes de Souza2 e Aliomar Baleeiro,3 viam na lei
1. Doutor PUC/SP. Mestre USP. Ex-Conselheiro do CARF
2. SOUSA, Rubens Gomes de. Normas gerais do direito financeira. Revista de Direi-
to Administrativo. Rio de Janeiro, v. 37, 1954, p. 21.
3. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 153.
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IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
complementar um verdadeiro veículo normativo intercalar
entre a parcela de competência constitucional e a regra ma-
triz de incidência tributária. A crítica, que veio na sequência,
imputou a essa corrente doutrinária uma doença chamada
“síndrome da lei complementar”.4
Em dezembro de 1969, com a publicação do artigo de Ge-
raldo Ataliba na Revista de Direito Público n. 10, surgiu no
Brasil uma escola de pensamento doutrinário5 de que a lei
complementar não poderia impor qualquer óbice à competên-
cia tributária dos Estados e Municípios, ainda que na função
de regular conflitos de competência. Parte-se da noção de que
a Constituição discriminou a competência de maneira rígida,
perfeita e exaustiva, dispensando-se a atuação do legislador
complementar. É a fase da suficiência do texto constitucional.
O embate que surgiu a seguir dividiu a discussão em
dois grandes grupos: (i) os que defendiam que a norma geral
tem duas funções, quais sejam, de dispor sobre conflitos de
competência e regular as limitações constitucionais ao poder
de tributar, corrente que recebeu o designativo de dicotômi-
ca ou monotômica;6 (ii) os que, além das funções anteriores,
4. A expressão é de Souto Maior Borges. BORGES. José Souto Maior. Aspectos fun-
damentais da competência municipal para instituir o ISS. In: TÔRRES, Heleno Ta-
veira (coord.). ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição. São Paulo:
Manole, 2004, p. 8.
5. Sobre o assunto, ver ATALIBA, Geraldo. Lei Complementar na Constituição. São
Paulo: RT, 1971, p. 27 e ss; ATALIBA, Geraldo. Lei Complementar em matéria tri-
butária. Revista de Direito Tributário. São Paulo. v.13, n. 48, abr-jun. 1989, p. 84 e ss;
BORGES, José Souto Maior. Lei Complementar Tributária. São Paulo: RT, 1975, p.
51 e ss; CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 2. ed.
São Paulo: Noeses, 2009, p. 357 e ss; e CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito
Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 994 e ss.
6.
Vale transcrever o comentário de Paulo de Barros Carvalho sobre a questão da deno-
minação das correntes doutrinárias: “Vejam como nós, juristas, somos, às vezes, apres-
sados. Alguns dizem: “Eu sou favorável à corrente dicotômica”; e outros dizem: “Não,
eu fico com a corrente tricotômica”. Só que essa dicotomia e essa tricotomia não se es-
tabelecem, apenas aparentemente se pode sugerir alguma coisa parecida. Mas, vejam,
o Prof. Geraldo Ataliba dizia que a lei complementar tem uma função só: estabelecer
normas gerais de direito tributário. Agora, que as normas gerais de direito tributário
tinham duas funções: dispor sobre conflitos e regular limitações constitucionais.
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concebiam uma terceira atribuição na lei complementar, a de
estabelecer normas gerais em matéria tributária.7 No direito
positivo, a discussão pairava sobre a redação relativamente
truncada do art. 18, § 1º, da Constituição de 1969.8
Criticada por ter sugerido “uma interpretação reducio-
nista radical”9 e “sem atribuir grande peso à jurisprudência
e, até mesmo, ao texto constitucional”,10 a corrente dicotômi-
ca representa os autores que entendem que muito pouco so-
brava para a lei complementar, e, em matéria de conflito de
competência, “não precisa de norma alguma”,11 pois a própria
Então, há uma corrente “monotômica” – chamemos assim, já que a doutrina gosta de
certos nomes exóticos – e outra tricotômica, nunca uma dicotômica e uma tricotômica.
Quando isso se estabelecia? O Prof. Geraldo Ataliba, que tinha uma intuição lógica
muito forte, dizia: “Isso é um absurdo; corrente dicotômica, tricotômica, isso é um ab-
surdo!”. Ele chefiou um grupo de juristas que o seguiram nessa linha, e eu posso dizer
que fui um dos primeiros seguidores; ao lado do Prof. Roque Carrazza, do Prof.; Aires
Barreto etc. Fomos seguidores da linha do Prof. Geraldo Ataliba nesse ponto, também.
CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica no campo tributário.
Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 94, 2007. p. 14-16.
7. Hamílton Dias de Souza escreveu: “As normas gerais têm campo próprio de atua-
ção que não se confunde com a regulação de conflitos e limitações ao poder de tri-
butar, o que significa ser tríplice a função da lei complementar prevista no art. 18, §
1º, da EC n. 1/69”. SOUZA, Hamilton Dias de. Lei Complementar em Matéria Tri-
butária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Curso de direito tributário.
São Paulo: Saraiva, CEU, 1982. p. 31
8.
Além dos impostos previstos nesta Constituição, compete à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios instituir:
§ 1º Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sôbre
os conflitos de competência nesta matéria entre a União, os Estados, o Distrito Fede-
ral e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar.
9. BORGES, José Souto Maior. Normas gerais de Direito Tributário: Velho tema sob
perspectiva nova. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo. n. 213. jun.
2013, p. 57.
10. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5 ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 134.
11. ATALIBA, Geraldo. Lei Complementar em matéria tributária. Revista de Direi-
to Tributário. São Paulo. v.13. n. 48, abr-jun. 1989. p. 90.
Em uma conferência sobre o tema e em posse do CTN o autor chegou a afirmar:
“Estou aqui com o texto do Código Tributário Nacional, que não é meu porque não
ando com isto (…)” e “vejam que os dois homens de respeito e competência que in-
ventaram o Código Tributário Nacional (referia-se a Rubens Gomes de Sousa e Gil-
berto Ulhôa Canto) não souberam colocar nada dentro dele”. Ibidem, p. 95 e 97.

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