O papel da justiça do trabalho no Brasil

AutorMauricio Godinho Delgado - Gabriela Neves Delgado
Ocupação do AutorMagistrado do Trabalho desde 1989: inicialmente na 1ª e 2ª Instâncias do TRT-MG - Doutora em Filosofia do Direito (UFMG: 2005) e Mestre em Direito do Trabalho (PUC Minas: 2002)
Páginas17-24

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1. Introdução

O Poder Judiciário, de maneira geral, cumpre essencialmente duas principais funções na sociedade democrática constitucionalizada: dirimir conflitos por meio da aplicação da ordem jurídica e, ao mesmo tempo, estabelecer clareza e efetividade quanto ao sentido dessa ordem jurídica no plano do Estado e da sociedade civil.

Essas duas funções primordiais são, natural-mente, também cumpridas pela Justiça Trabalhista, segmento do Judiciário que é especializado no exame de litígios decorrentes do mundo do trabalho e das relações que lhe são próprias.

Seja na esfera das questões contratuais entre trabalhadores e empregadores ou tomadores de serviços, seja na esfera das questões coletivas entre trabalhadores e suas entidades sindicais em face dos entes coletivos no plano empresarial, a Justiça do Trabalho consiste em importante veículo de solução de conflitos, assim como é também o estuário principal de interpretação da ordem jurídica trabalhista na sociedade brasileira.

O que singulariza a Justiça do Trabalho em comparação com os demais segmentos judiciais é particularmente a circunstância de compor amplo sistema de proteção jurídica em direção à desmercantilização da força de trabalho no contexto econômico e social.

São distintos os sistemas de desmercantilização do trabalho gerados na história ocidental. No interior desses sistemas, o segmento judicial pode cumprir papel relevante. A Justiça do Trabalho, onde existe, é parte desse sistema complexo de desmer- cantilização.

No Brasil, sua existência data das décadas de 1930 e 1940, mantendo-se hígida e até mesmo se expandindo nos setenta anos subsequentes.

A Constituição de 1988, finalmente, confere a esse segmento do Poder Judiciário novo padrão, não somente em face de sua amplitude nacional então concretizada, como também em decorrência da sedimentação de seu papel desmercantilizador classicamente assentado décadas atrás.

2. Sistemas de desmercantilização do trabalho no capitalismo e na demo-cracia

"O trabalho não é uma mercadoria" - proclama o primeiro dos princípios fundamentais da Organização Internacional do Trabalho, em conformidade com a Declaração Relativa aos Fins e Objetivos da OIT,

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firmada na Filadélfia, EUA, em 10 de maio de 1944 ("Declaração de Filadélfia - Anexo").1

Este simples e abrangente enunciado da Organização Internacional do Trabalho, entidade criada em 1919 pelo Tratado de Versalhes, sintetiza a diretriz central de atuação dos movimentos sociais trabalhistas desde meados do século XIX, na Europa Ocidental, descortinando a essência da direção normativa do Direito do Trabalho desde sua origem há mais de século e meio atrás até a atualidade.

De fato, os sistemas jurídicos surgidos no mundo ocidental, de 1848 em diante, voltados a estruturar e reger as relações trabalhistas no capitalismo, notadamente sob o marco do advento e avanço da democracia nos países europeus e das Américas, são sistemas que, em maior ou menor grau, buscam concretizar a grande diretriz explicitada posteriormente pelo princípio da OIT, ou seja, desmercantilizar, ao máximo, o trabalho nos marcos da sociedade capitalista.2

Grosso modo, são dois os padrões de estruturação institucional e normativa dos sistemas jurídicos trabalhistas, a partir das experiências matrizes ocidentais, considerados os marcos da sociedade democrática: o modelo de normatização autônoma e privatística (ou modelo negociado, segundo expressão mais corrente hoje) e o modelo de normatização privatística mas subordinada (ou modelo legislado, segundo a linguagem dos dias atuais).

Ambos os modelos são plenamente compatíveis com experiências democráticas de organização e regência da sociedade política e da sociedade civil; ambos também são claramente interventivos nos contratos de trabalho, embora no primeiro a intervenção se faça mediante poderosa atuação sindical, ao passo que no segundo a imperatividade da norma estatal trabalhista cumpra destacado papel jurídico (papel maior ou menor, segundo a peculiaridade de cada país). Ambos criam uma estruturação complexa de regras jurídicas voltadas a diminuir e controlar o poder empresarial no âmbito dos contratos de emprego e da gestão trabalhista: no primeiro caso, por meio de instrumentos coletivos negociados e instituições representativas sólidas, com participação decisiva das entidades sindicais obreiras, dotadas de significativas prerrogativas jurídicas e institucionais em sua estruturação e vivência; no segundo caso, por meio de instrumentos coletivos negociados sindicais, mas também através de relevante legislação trabalhista estatal.

O segundo modelo, é verdade, conheceu variante autoritária durante a primeira metade do século XX, em que se exacerbaram suas características intervencionistas e publicistas, dando origem a sistemas trabalhistas quase que estritamente legislados, sem qualquer espaço real para a livre organização e atuação das entidades sindicais dos trabalhadores e, muito menos, para a negociação coletiva trabalhista. Tratava-se dos experimentos fascistas e nazistas que vicejaram entre as décadas de 1920 e 1940, até o final da segunda guerra mundial, com reflexos em países latino-americanos, inclusive no Brasil.

Porém, esta variante autoritária (modelo de normatização estatal subordinada) não invalida ou obscurece a importância histórica do modelo legislado democrático, que se mostrou ao longo de décadas notavelmente ajustado e partícipe da construção democrática no Ocidente, respeitadas suas feições peculiares em cada realidade nacional. Hoje, a propósito, o modelo legislado é claramente dominante em importantes países europeus notoriamente democráticos (França, por exemplo, e, de certo modo, Alemanha) e em países latino- -americanos de destaque, como, ilustrativamente, Brasil, México e Argentina.

É inegável que o processo de efetiva e ampla desmercantilização do trabalho realizado pelo mode-lo de normatização autônoma e privatística (modelo negociado) supõe o respeito profundo à atuação sindical, com o reconhecimento às entidades sindicais de prerrogativas e poderes até mesmo inimagináveis nas ordens jurídicas de direito legislado - por exemplo, os impressionantes poderes das cláusulas closed shop e union shop, por mais de um século presentes no sistema sindical da Inglaterra.3 Tais enormes poderes

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conferidos aos sindicatos tornaram menos relevante a existência de regra legal imperativa do Estado na direção da desmercantilização do trabalho, uma vez que esta já despontava garantida no próprio plano da sociedade civil.

Com o advento, entretanto, da hegemonia neo-liberal no Ocidente, desde finais dos anos de 1970, o modelo negociado clássico perdeu parte importante de sua eficiência desmercantilizadora, em face dos significativos assédios e restrições direcionados aos sindicatos desde então nos países matrizes desse modelo, com destaque para a Inglaterra e os EUA.

3. Desmercantilização do trabalho e sistemas judiciais

Em qualquer sociedade democrática constitucionalizada, o Poder Judiciário cumpre, essencialmente, duas funções: a) dirimir conflitos despontados na sociedade civil, no interior do Estado ou entre essas esferas e/ou seus integrantes; b) conferir clareza e efetividade à própria ordem jurídica imperante nessa sociedade civil e nesse Estado.

Essa duplicidade de funções comparece, de maneira geral, com respeito à Justiça do Trabalho ou segmento judicial congênere existente.

Nem todos os países construíram ramos especializados do Judiciário para dirimir conflitos trabalhistas (Justiça do Trabalho) e nem todas as construções existentes são parecidas. Porém, os diversos exemplos históricos demonstram a possibilidade da existência de órgãos judiciais trabalhistas especializados em quaisquer dos sistemas jurídicos padrões, sejam os negociados, sejam os legislados. Naturalmente que é mais comum a presença de um segmento judicial trabalhista especializado nos sistemas de normatização privatística mas subordinada (os ditos sistemas legislados), embora haja alguns exemplos concretos relativos a típicos sistemas negociados.

Entre os exemplos existentes, é mais comum a presença de um sistema judicial de primeiro grau especializado em matéria trabalhista, usualmente composto por órgão tripartite (uma autoridade estatal e dois representantes paritários de empregadores e empregados). Esse é o modelo dos Conseils de Prud’hommes, órgão pioneiro da França da primeira metade do século XIX. Observe-se também o modelo judicial alemão da Constituição de Weimar (1919-1933): em que as cortes de primeira instância se compunham de um presidente e um vice- -presidente (juízes togados), apontados pela administração de justiça do Estado, e dois juízes leigos representando empregadores e empregados, cada um desses últimos escolhido pelo presidente da corte distrital ordinária a partir de uma lista de candidatos preparada por sindicatos de trabalhadores e associações patronais.4

A propósito, a Alemanha subsequente à Segunda Guerra Mundial instituiu sistema judicial muito semelhante ao brasileiro, com três níveis de organização institucional e de competência decisória dentro da mesma instituição judicial especializada (Justiça do Trabalho): os tribunais do...

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