O paradoxo como politica: Uma proposta de atualizacao da critica dos direitos de Wendy Brown/The paradox as politics: an actualization proposal on Wendy Brown's critique of rights.

AutorGretschischkin, Felipe Chieregato
  1. Introdução (1)

    A teoria crítica da década de 1990 ficou marcada, especialmente no contexto norteamericano, por uma produção político-conceitual que buscou responder às questões levantadas pelo fenômeno da "pluralização dos sentidos da emancipação". (2) Os autores e autoras dessa tradição se viram confrontados a pensar acerca das implicações para a teoria social e a filosofia política das demandas de movimentos feministas e antirracistas, bem como daqueles relacionados a expressões não hegemônicas da sexualidade. De fato, se essas expressões da esfera pública fossem efetivamente levadas em conta para a produção de um diagnóstico de tempo e de um modelo crítico socialmente contextualizado, questões sobre a justiça e sobre o direito precisavam ser revisitadas em novos termos. Assim, ganharam destaque pensadores e pensadoras que passaram a abordar a possibilidade da mobilização emancipatória dos direitos por sujeitos que disputam o discurso universalista da teoria jurídica e da teoria política liberal por meio da politização de identidades. De acordo com alguns dos mais influentes diagnósticos sobre o período, esse cenário se apresentava como efeito cultural e político da derrocada do Welfare State, sendo sucedido pelo estabelecimento hegemônico de uma nova conjuntura, à época ainda não nomeada, e que hoje podemos chamar, sem pretensões de precisão conceitual, de "neoliberal". (3)

    No âmbito da academia jurídica, o movimento dos Critical Legal Studies (CLS) foi interpretado como uma resposta a esse estado de coisas, ainda que o tenha, em parte, as precedido. Em verdade, disputas acerca do potencial emancipatório do discurso dos direitos e da recepção adequada dos estudos críticos desse período seguem como um terreno fértil para elaborações diagnósticas que possam informar uma práxis capaz de mitigar os fenômenos de opressão e dominação característicos da organização social vigente.

    Cornel West propõe que interpretemos os CLS como uma possibilidade de abertura e denuncia em relação às inconsistências e incoerências da tradição jurídica liberal. Não devemos, contudo, tomá-los como projeto positivo de uma nova ordem jurídica e social (WEST, 1988). De fato, West denuncia o modo como os estudiosos ligados a esse movimento ignoram a própria formação do discurso crítico, considerando-os ao fim e ao cabo, como rebeldes que se levantaram contra o liberalismo das escolas de direito de elite. West propõe uma avaliação dos CLS como empreendimento politicamente ingênuo e, em essência, antidemocrático. Afinal, aspectos cruciais do liberalismo devem informar e inspirar, em grande medida, as atividades de oposição de esquerda. Paralelamente, West desenvolve uma crítica teórica, destacando a dificuldade de os membros da tradição crítica fugirem de um paradigma excessivamente dogmático, o que atrofia sua capacidade de imaginação teórica e política que, por sua vez, poderia ser estimulada pela incorporação de diferentes fontes ao repertório crítico do movimento.

    De acordo com o autor, os CLS, tomados como uma subcultura acadêmica de esquerda, possuiriam três falhas (flaws) básicas: uma tendência a deslegitimar e desmistificar o liberalismo, vendo-o apenas como algo que disfarça o uso do poder e da opressão; uma recusa em se lidar com a tradição tanto como um impedimento e um ímpeto para a mudança social e, por fim, um distanciamento cultural em relação a esforços coletivos organizados, fora do âmbito acadêmico, que tentavam transformar a sociedade e a cultura americana. Ainda que West nutra certa simpatia política aos CLS, ele sugere uma mudança de perspectiva segundo a qual os CLS deveriam abandonar o seu foco primordial de então, baseado em uma crítica da acadêmica jurídica, para que fosse possível um maior engajamento dos temas e da crítica do direito com a esfera pública (WEST, 1988, p. 270-275).

    Na esfera da teoria social e política, um dos diagnósticos prementes acerca do período histórico em questão é o de Nancy Fraser, segundo o qual o cenário de disputas políticas nos EUA poderia ser apreendido a partir da noção de "luta por necessidades": as divergências políticas existentes no interior da sociedade diriam respeito, sobretudo, à interpretação das necessidades que possibilitariam a autorrealização humana. Como parte de sua análise, Fraser apresenta um breve posicionamento a respeito do papel direito nas disputas contemporâneas, o que permite que tracemos um paralelo entre a avaliação da autora e o posicionamento de West:

    Aliás, tratar demandas justificadas por necessidades como as bases para novos direitos sociais é o começo da superação de obstáculos ao exercício efetivo de alguns direitos existentes. É verdade, como os marxistas e outros argumentaram, que os direitos liberais clássicos de liberdade de expressão, de assembleia e assim por diante são "meramente formais". Mas isso diz mais acerca do contexto social nos quais eles estão atualmente ancorados do que a respeito de seu caráter "intrínseco", já que, em um contexto no qual a pobreza, a inequidade e a opressão estejam ausentes, os direitos liberais formais poderiam ser ampliados e transformados em direitos substantivos de autodeterminação coletiva, por exemplo (FRASER, 1989b, p. 183). Em diálogo com essa contextualização sócio-teórica, observamos que o cenário da teoria crítica norte-americana estava determinado por um impasse entre, por um lado, a crítica radical dos direitos e sua apropriação por parte de lutas políticas específicas e, por outro, a possibilidade de criação de imaginários políticos que transcendessem as condições sociais do presente. Esse impasse estava marcado originalmente na posição de autores expoentes do CLS. A discussão que Tushnet faz com a teoria habermasiana em seu Essay on Rights é exemplar nesse sentido. Trata-se da tentativa de se fundamentar a crítica em direção ao que o autor denomina de discurso (assessment) prático a respeito da posição dos direitos nos debates jurídicos de sua época. Seu objetivo é apontar que a ideia de que o mundo e as ordens sociais possuem um caráter contingente, socialmente construído, permite que pensemos a partir de uma perspectiva de que tudo pode mudar a partir da luta política (TUSHNET, 1984).

    Uma das contribuições cruciais para esse debate foi a intervenção crítica de Wendy Brown, autora que, à primeira vista, não aparenta estar no centro dessa querela específica. Neste artigo, partimos de uma reconstrução da contribuição de Brown acerca da temática dos direitos para, então, defender que o modelo proposto por ela a partir dos 1990 é passível de uma atualização crítica que o torne relevante para a teoria crítica dos direitos contemporânea. De maneira geral, defendemos que, além de tratar de um fenômeno ainda relevante, qual seja, a politização de identidades particulares por sujeitos que lutam por direitos, a elaboração da autora é caracterizada pela presença de uma tensão e de uma ambiguidade atinentes ao próprio desenvolvimento de sua estrutura crítico-argumentativa. É justamente a identificação dessa tensão que permite tornar produtiva, em nossa avaliação, a mobilização do modelo de Brown para a crítica do direito hoje desenvolvida.

    Nesse sentindo, propomos três encaminhamentos. Em um primeiro momento, reconstruímos a intervenção de Brown no debate norte-americano, tendo por base a crítica desenvolvida pela autora às formulações de dois expoentes da teoria jurídica feminista: Patricia Williams e Catherine McKinnon. A partir disso, passamos à explicitação dos elementos que informam a elaboração teórica de Brown: trata-se, de fato, de uma apropriação da argumentação marxiana de Sobre a questão judaica, matizada por uma "presentificação" crítica baseada no diagnóstico foucaultiano da produção disciplinar de identidades. Reconstruídos esses passos argumentativos, propomos que alguns dos argumentos críticos desenvolvidos por Brown podem ser absorvidos de forma producente pela literatura contemporânea. Para tanto, acreditamos que, no modelo da autora, a via emancipatória mais promissora aponta para uma preponderância da política em relação ao direito, invertendo-se, por assim dizer, a tendência dos movimentos sociais contemporâneos de transpor as disputas das ruas aos tribunais.

    Defendemos que há algo de produtivo no diagnóstico da impossibilidade de eliminação dos paradoxos da mobilização do discurso dos direitos na práxis dos movimentos sociais contemporâneos. A relevância da posição de Brown, ao nosso ver, constitui-se a partir da constatação de que a proposição crítica da autora possa ser considerada como uma intervenção capaz de apresentar um debate central da crítica dos direitos com profunda acuidade em relação aos conflitos políticos de sua época. Dessa forma, retomar a leitura desses textos nos auxilia tanto a compreender o contexto em que tais disputas teóricas eram travadas quanto nos proporciona novas lentes para análise dos conflitos políticos e jurídicos do presente.

  2. Identidade como posição social: a leitura das propostas de Williams e MacKinnon como neo-marxistas.

    A intervenção de Wendy Brown no debate acerca da força emancipatória da demanda por direitos está atrelada a um contexto político historicamente situado: as lutas por direitos organizadas em torno da politização de identidades nos EUA dos anos 1990. Tratava-se de se pensar acerca do valor político dos direitos não necessariamente a partir de sua forma ou de seu conteúdo, mas da proposição de se utilizá-los como ferramenta política em favor de identidades que visam a perturbar a noção humanista de sujeito (BROWN, 1995, p. 96). Brown não está interessada, portanto, apenas em colocar no centro de sua análise a indeterminação e contingência dos direitos a partir de sua promessa de universalidade. Trata-se, muito mais, de se pensar, sob uma perspectiva política, a tensão entre a eficácia social e histórica do discurso político dos direitos:

    Aqueles preocupados com as práticas políticas emancipatórias de nosso tempo...

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