Importações paralelas no Brasil: a propriedade industrial nos quadrantes dos princípios constitucionais

AutorPaula A. Forgioni
Páginas187-200

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I Introdução. As importações paralelas e os princípios constitucionais brasileiros
  1. O debate sobre a licitude das importações paralelas há muito transbordou os estreitos limites da Lei da Propriedade Industrial. O atual estágio de evolução de nosso direito exige que essa análise desdobre-se a partir dos princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da proteção ao consumidor.1

    Tudo está em saber se, à luz desses princípios constitucionais, é permitido ao titular da marca, alegando seu direito de uso exclusivo, impedir que terceiro por ele não expressamente autorizado realize a importação e a comercialização, no Brasil, de produtos marcados originais, licitamente adquiridos no exterior.2

  2. Ascarelli advertiu-nos que, no estudo de institutos estrangeiros, as "premissas implícitas" próprias de cada ordenamento jurídico devem necessariamente ser tomadas em conta de consideração. No entanto, essa singela recomendação não é sempre atendida, de sorte que alguns simplesmente entornam a experiência estrangeira sobre nosso sistema, pretendendo imprimir direcionamento que lhe é estranho.

    A aplicação do direito brasileiro não pode abraçar princípios diversos daqueles

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    estabelecidos em nossa Constituição, sob pena de dar lugar a açodado transplante, incompatível com nossa realidade.

    Nessa toada, muitas vezes as opiniões sobre as importações paralelas não passam de mera reprodução de idéias alienígenas, talhadas no processo de interpretação/aplicação de outro direito que não o nosso; de outra constituição, que não a brasileira.3

  3. A Constituição do Brasil exige o abandono da visão excessivamente privatis-ta da matéria, que atribui máxima amplitude aos poderes do titular da propriedade industrial, desconsiderando outros interesses hoje também tutelados pelo direito brasileiro.4

    De um lado, a Constituição assegura "aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos".5 Mas, ao mesmo tempo, demanda que essa proteção seja feita "tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".6

    Ademais, a propriedade há de ser exercida de acordo com os princípios insculpidos no art. 170 da Constituição.

  4. De início, determina o caput do art. 170 que o respeito à livre iniciativa e à valorização do trabalho humano sejam os principais vetores da análise a ser aqui empreendida.

    Sobre a livre iniciativa, muito já foi escrito. Deixando de lado os agonísticos debates, o traço comum da doutrina parece residir na ligação do princípio com a liberdade, sempre instrumental e limitada pelo bem público.78 Ao agente econômico deve ser assegurada a possibilidade de atuar no mercado.9 A livre iniciativa ata-se à "liberdade de comércio e de indústria", à "liberdade econômica" ou, na dicção de Eros Roberto Grau, à "liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a empresa".10

    A concreção do princípio da livre iniciativa exige o respeito da garantia imposta pelo art. 5o, II, da Constituição: "II -ninguém será obrigado a fazer ou deixar de

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    fazer alguma coisa senão em virtude de lei". À empresa é facultado atuar no mercado, podendo essa sua atividade ser limitada "em virtude de lei".

  5. Bem vincado esse pressuposto in-terpretativo, consideremos a livre concorrência, desdobramento direto do princípio da livre iniciativa. Às empresas assiste a liberdade de concorrer, ou seja, de disputar oportunidades de troca com outros agentes econômicos. Sobre seu epicentrismo em nosso ordenamento, assume destaque a lição do Supremo Tribunal Federal, na dicção do Ministro Carlos Velloso: "(...) esclareça-se que a ordem econômica, segundo o modelo constitucional brasileiro, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos existência digna, no rumo da justiça social, objetivos que deverão ser atingidos mediante a observância dos princípios enumerados nos incisos I a IX do art. 170 da Constituição. Um desses princípios, por isso mesmo viga-mestra do sistema econômico, é o da livre concorrência. Quer dizer, tudo aquilo que possa embaraçar ou de qualquer modo impedir o livre exercício da concorrência é ofensivo à Constituição. Bem por isso, essa mesma Constituição, no § 4o do art. 173, dispõe que 'a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros'".11

  6. Afirmei em outros estudos12 que a concorrência prejudica o agente econômico, obrigando-o a diminuir preços e a aumentar a qualidade dos bens que oferece ao mercado. Explica-se, assim, a célebre frase de Jhering no sentido de que a concorrência é o "regulador espontâneo do egoísmo".13 Deixada no exercício de sua atividade sem qualquer fronteira, a empresa tende a obter o maior lucro possível, explorando o público adquirente.

    A livre concorrência coloca-se, portanto, como elemento de proteção da cole-tividade, de busca do bem-estar social - e não como princípio que visa a tutelar o viés oportunista e egoísta do agente econômico. Repita-se: a concorrência acolhida pela nossa Constituição é instrumental, ou seja, não é um fim em si mesma; ao contrário, presta-se a atingir os fins maiores insculpidos no caput do art. 170 e nos arts. 1o e 3o.

  7. A livre iniciativa e seu corolário, a livre concorrência - sempre em seu viés instrumental, repita-se - compõe regra geral que preside o funcionamento do mercado; suas limitações são exceções, sempre admitidas para a consecução dos fins constitucionais acima apontados.

  8. Os direitos de propriedade industrial constituem verdadeiras "ilhas de proteção", que asseguram a exclusividade de sua exploração.1415 Os direitos de propriedade industrial corporificam privilégios que tendem a diminuir o grau de concorrência em determinado setor da economia, restringindo a livre iniciativa.

    Poder-se-ia argumentar, então, que os direitos de propriedade industrial encerrariam verdadeira "contradição" no seio do sistema capitalista, ao admitirem a obstrução do livre tráfico. Essa assertiva não seria, contudo, verdadeira. Mediante a instituição das "ilhas de proteção", as regras sobre a propriedade industrial colocam à disposição das empresas instrumentos que

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    se prestam à luta concorrencial,16 impedindo que a vantagem competitiva de um agente econômico seja incorporada indevidamente por outro. Nesse sentido, os direitos de propriedade industrial protegem o progresso tecnológico e, conseqüentemen-te, o sistema produtivo.1718

  9. Mas note-se bem: o incentivo ao desenvolvimento dá-se porque os direitos de propriedade industrial, mediante o estabelecimento de exclusividades de uso, costumam possibilitar aos respectivos titulares a obtenção de retorno econômico vantajoso (i.e., a prática de preços mais elevados).19

    O atraente retorno financeiro decorre da exclusividade de uso concedida e, portanto, da ausência de força concorrencial que pressionaria a redução dos preços e o aumento da qualidade; o titular do direito de propriedade industrial consegue impor aos consumidores preços mais altos do que aqueles que praticaria caso enfrentasse a competição.

    Portanto, os direitos de propriedade industrial, na medida em que asseguram a exclusividade de exploração, de uma banda estimulam o desenvolvimento, mas, de outra, podem sujeitar os consumidores às agruras dos preços de monopólio.20

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  10. Voltemos ao que restou dito linhas acima: porque constituem "garantia de exclusividade", restringindo a livre iniciativa, os direitos de propriedade industrial devem ser encarados como exceção.21 A interpretação que a eles se dá será restritiva e não extensiva.22

    Ademais, por serem princípios, devem orientar a interpretação das regras; jamais a aplicação de dispositivo jurídico poderá violar a ordem de princípios consti-tucionalmente estabelecida. Parafraseando e rejuvenescendo a conhecida máxima: "Tudo na Constituição, nada fora da Constituição, nada contra a Constituição".

II As importações paralelas e a Lei de Propriedade Industrial
  1. Evidenciado que os direitos de propriedade industrial constituem exceção aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (e que, portanto, demandam limitação nos quadrantes constitucionais), cumpre-nos agora analisar os dispositivos da Lei da Propriedade Industrial (Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996) que interessam à análise da licitude das importações paralelas, quais sejam seus arts. 129 e 132, III.

    II.1 O ar t. 129 da Lei de Propriedade Industrial

  2. Dispõe o art. 129 da Lei n. 9.279, de 1996, in verbis:

    Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional (¦¦¦)¦

    A compreensão do art. 129 exige que se tenha em mente afunção desempenhada pelas marcas; para tal fim, valho-me de uma das mais clássicas obras da matéria: Teoria della Concorrenza e dei Beni Im-materiali, de Tullio Ascarelli. Sua lição é simples: "Il marchio (...) contraddistingue il prodotto".23 Por conta dessa função distintiva - é sempre Ascarelli quem afirma -, a marca (i) "permette al consumatore di ri-salire dal prodotto al fabbricante" e (ii) constitui "collettore di clientela".2425

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    Pois bem. Se a marca identifica o produto, é de se concluir que o uso exclusivo a que se refere...

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