A Parassubordinação como Forma de Discriminação

AutorLorena Vasconcelos Porto
Páginas111-119

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Lorena Vasconcelos Porto *

Introdução

O conceito de subordinação é essencial para o Direito do Trabalho, pois é decisivo para a afirmação da existência da relação de emprego. Nesse sentido, ele representa a “chave de acesso” aos direitos e garantias trabalhistas, os quais, em regra, são assegurados em sua plenitude apenas aos empregados.

Na época do surgimento do Direito do Trabalho, a partir da segunda metade do século XIX, o modelo econômico vigente – centrado na grande indústria – engendrou relações de trabalho de certo modo homogêneas, padronizadas. O operário trabalhava dentro da fábrica, sob a direção do empregador (ou de seu preposto), que lhe dava ordens e vigiava o seu cumprimento, podendo eventualmente puni-lo. Essa relação de trabalho, de presença hegemônica na época, era o alvo da proteção conferida pelo nascente Direito do Trabalho. Desse modo, foi com base nela que se construiu o conceito de contrato (e relação) de trabalho e, por conseguinte, o do seu pressuposto principal: a subordinação.

Assim, esse conceito foi identificado com a presença constante de ordens intrínsecas e específicas, com a predeterminação de um horário rígido e fixo de trabalho, com o exercício da prestação laborativa nos próprios locais da empresa, sob a vigilância e controle assíduos do empregador e de seus prepostos. Trata-se da acepção clássica ou tradicional da subordinação, que podemos sintetizar como a sua plena identificação com a ideia de uma heterodireção patronal, forte e constante, da prestação laborativa, em seus diversos aspectos.

A adoção do critério da subordinação jurídica, em sua matriz clássica, levava a excluir do campo de incidência do Direito do Trabalho vários trabalhadores que necessitavam da sua tutela, mas que não se enquadravam naquele conceito parcial e restrito. Conforme assinalavam alguns críticos, este não cumpria plenamente a sua finalidade essencial, pois não era capaz de abranger todos os trabalhadores que necessitavam – objetiva e subjetivamente – das tutelas trabalhistas.

Por essa razão, a jurisprudência, impulsionada pela doutrina, em notável atividade construtiva, acabou por ampliar o conceito de subordinação, e, consequentemente, expandiu o manto protetivo do Direito do Trabalho, ao longo do século XX e até meados do final da década de 1970. Esse período coincidiu com a própria “era de ouro” do capitalismo nos países de-

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senvolvidos ocidentais, nos quais foram consolidados modelos de Estados de Bem-Estar Social1.

As transformações ocorridas nas últimas décadas, notadamente os avanços tecnológicos, a reestruturação empresarial e o aumento da competitividade, inclusive no plano internacional, geraram mudanças no mundo do trabalho. Um número cada vez maior de relações trabalhistas –, sobretudo aquelas presentes nos novos setores, como as prestações de serviços nos campos da informação e da comunicação –, se afasta progressivamente da noção tradicional de subordinação, apresentando, aparentemente, traços de autonomia. Do mesmo modo, o poder empregatício se exerce de maneira mais sutil, indireta, por vezes quase imperceptível.

Em razão dessa aparente autonomia, tais trabalhadores não se enquadram na noção tradicional de subordinação, sendo qualificados como autônomos. O resultado é que eles continuam sem liberdade real, como no passado, mas passam a ter que suportar todos os riscos advindos da sua exclusão das tutelas trabalhistas. Percebe-se, assim, que a manutenção do conceito tradicional de subordinação leva a grandes distorções, comprometendo a própria razão de ser e a missão do Direito do Trabalho. Por isso, a ampliação desse conceito é uma necessidade premente e inadiável.

Todavia, paradoxalmente, no momento em que a expansão da subordinação se tornou mais imprescindível, ela passou a ser restringida, reduzida, por obra da jurisprudência, do legislador e da doutrina. Essa tendência, observada, sobretudo, a partir do final da década de 1970, se insere em um fenômeno ainda maior – a tentativa de desregulamentação do Direito do Trabalho – que encontra fundamento na ascensão e hegemonia da doutrina ultraliberal, ocorrida na mesma época2.

O conceito de parassubordinação no direito italiano

Nesse contexto, destaca-se a criação da figura do trabalhador parassubordinado na Itália e de figuras análogas em outros países europeus. Trata-se, em linhas gerais, de trabalhadores que, embora não sejam subordinados (são juridicamente autônomos), são hipossuficientes, pois dependem economicamente do tomador dos seus serviços. Em razão disso, fazem jus a alguns dos direitos previstos pelas legislações trabalhista e previdenciária. À primeira vista, trata-se de um avanço, pois se confere uma maior proteção a trabalhadores que dela não gozavam. Tratar-se-ia da ampliação do âmbito pessoal de incidência de algumas normas trabalhistas, conforme sustentam os seus defensores. Na realidade, todavia, o efeito produzido é exatamente o contrário.

A figura da parassubordinação, embora encontre a maior elaboração legislativa, jurisprudencial e doutrinária na Itália, pode também ser encontrada em outros países europeus, embora em menor extensão e com diversa configuração. Na maioria dos casos, apresenta-se sob a forma da aplicação parcial (na ver-dade, bastante restrita) do Direito do Trabalho a trabalhadores considerados juridicamente autônomos, mas economicamente dependentes3.

A relação de trabalho parassubordinado foi definida pela primeira vez no Direito italiano pelo art. 2º da Lei n. 741, de 1959, o qual mencionava “relações de colaboração que se concretizem em prestação de obra continuada e coordenada”. Posteriormente, foi pre-vista pelo art. 409, § 3º, do Código de Processo Civil (CPC), com a reforma efetuada pela Lei n. 533, de 11 de agosto de 1973. Esse dispositivo estendia o processo do trabalho às controvérsias relativas a “relações de agência, de representação comercial e outras relações de colaboração que se concretizem em uma prestação de obra continuada e coordenada, prevalentemente pessoal, ainda que de caráter não subordinado”.

O Decreto-Legislativo (DL) n. 276, de 2003, conhecido como “Decreto Biagi”, em seu art. 61, ao prever a figura do trabalho parassubordinado a projeto, faz referência ao art. 409, § 3º, do CPC, mencionando expressamente as “relações de colaboração coordenada e continuada, prevalentemente pessoal e sem vínculo de subordinação”, mais conhecidas como “co.co.co.”.

Com a edição do “Decreto Biagi”, as relações de trabalho parassubordinado, para serem válidas, deveriam se enquadrar em um “contrato de trabalho a projeto”, o qual ficou conhecido como “co.co.pro.” (colaboração coordenada continuada a projeto). Todavia, foi excluída da nova disciplina uma série de hipóteses, como os colaboradores da Administração Pública, para os quais ainda era válida a estipulação de relações de colaboração continuada e coordenada

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fora do âmbito do contrato a projeto, e, assim, por tempo indeterminado.

Na essência, a diferença entre a “co.co.co.” e a “co. co.pro.” era que nessa última o tomador de serviços deveria especificar o “projeto” em que o trabalhador iria atuar. Todavia, a noção de projeto era extremamente ampla, vaga e imprecisa, permitindo o enquadramento das mais diversas atividades e modalidades de execução. Além disso, não havia no DL n. 276/2003 uma norma que proibisse a renovação continuada do “co. co.pro.”, o que possibilitava a “perpetuação” dessa forma contratual precária, por meio de uma série de reno-vações encadeadas uma à outra, indefinidamente, inclusive em relação a projetos ou programas análogos4.

Por fim, o “co.co.pro.” acabou sendo revogado pelo art. 52 do Decreto-Legislativo (DL) n. 81, de 2015, emanado no contexto da reforma denominada “Jobs Act”, restando o “co.co.co.” para o setor privado, além da Administração Pública.

O DL n. 81, de 2015, também previu, em seu art. 2º, § 1º, com vigência a partir de 01.01.2016, um tipo de trabalho parassubordinado ao qual se aplica toda “a disciplina da relação de trabalho subordinado”. Esse tipo é composto por vários elementos, sendo que os primeiros são comuns ao “co.co.co.”, os quais veremos adiante, mas com a substituição do critério da prevalência pela exclusividade, de modo que o trabalhador não pode contar com a ajuda de outras pessoas. Os demais elementos consistem nas “modalidades de execução organizadas pelo tomador de serviços inclusive quanto ao horário e ao local de trabalho”. Desse modo, a “coordenação”, que caracteriza o “co.co.co.”, é substituída pela “organização”. Segundo a doutrina italiana, caso esteja ausente um dos elementos que caracteriza esse novo tipo, como a heterodeterminação do horário de trabalho, aplica-se a disciplina do “co. co.co.”, e não do trabalho subordinado5.

Desse modo, atualmente, há dois tipos de relação de trabalho parassubordinado: o “co.co.co.”, previsto no art. 409, § 3º, do CPC, e caracterizado essencialmente pela “colaboração” (art. 52 do DL n. 81/2015), como veremos, e a relação de trabalho parassubordinado prevista no art. 2º, § 1º, do DL n. 81/2015, à qual se aplica a disciplina do trabalho subordinado e é caraterizada pelo poder diretivo do tomador de serviços inclusive quanto ao horário e local de trabalho. No caso dessa relação de trabalho parassubordinado, há quatro hipóteses em que não se aplica a disciplina do trabalho subordinado: os setores nos quais os acordos coletivos preveem uma disciplina específica (v.g., no teleatendimento); os trabalhadores intelectuais inscritos em um conselho profissional; os trabalhadores que integram os órgãos administrativos e de controle das sociedades; e os trabalhadores das sociedades esportivas...

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