Uma concepção democráticorepublicana da Comissão Parlamentar de Inquérito - A democratic-republican conception of Congressional Inquiry Committee

AutorMário Eduardo Martinelli
CargoMestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Marco Antonio Botto Muscari

Uma concepção democrático-republicana da Comissão Parlamentar de Inquérito

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 2.

ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 8.

UMA CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICO-REPUBLICANA DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO

A DEMOCRATIC-REPUBLICAN CONCEPTION OF CONGRESSIONAL INQUIRY COMMITTEE

Mário Eduardo Martinelli *

Resumo: examina-se a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à luz dos princípios democrático e republicano da Constituição de 1988. Pretendese sugerir uma reforma constitucional que liberte as CPIs das obstruções e sabotagens do bloco majoritário governista.

Palavras-chave: Parlamentar. Inquérito. Comissão. Maioria. Minoria.

Abstract: it analyses the congressional inquiry committees founded on democratic and republican principles of Constitution of 1988. Herein is intend to suggest a constitutional amendment get free congressional inquiry committees from obstructions and sabotages of majority group of government.

Keywords: Parliamentary. Inquiry. Commission. Majority. Minority.

INTRODUÇÃO

Uma das mais importantes missões do Poder Legislativo no Estado contemporâneo – se não a principal – consiste em fiscalizar o funcionamento da máquina estatal, criticando políticas públicas e procurando irregularidades na gestão da res publica. O enorme crescimento da estrutura da Administração Pública realçou a relevância da fiscalização parlamentar das atividades do Poder Executivo, a fim de coibir arbitrariedades. Para desempenhar de modo eficiente a vigilância sobre o hipertrofiado Poder Executivo, o Poder Legislativo descentralizou os trabalhos parlamentares, transferindo para as ágeis e múltiplas comissões parlamentares várias atribuições do Plenário.

A CPI – valioso instrumento de obtenção direta e compulsória de informação pelo Poder Legislativo – não apenas contribui para o saneamento da Administração Pública mas também dá voz ao povo, criticando determinadas políticas públicas do Governo. A CPI deve revelar à opinião pública condutas

* O autor é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.

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incompatíveis com o espírito republicano, trazendo a lume variadas modalidades de “crime de lesa-república”.

Muitas investigações parlamentares, todavia, são sabotadas pelos membros da maioria parlamentar governista que integram as CPIs. A maioria governista, dentro da CPI, preocupa-se em evitar a descoberta de fatos inconvenientes aos interesses do Governo, frustrando a legítima expectativa de desvendamento de anomalias na gestão da coisa pública. Impede-se a criação da CPI ou impõe-se a investigação de matéria pouco importante.

Dotadas constitucionalmente de poderes de investigação próprios da autoridade judicial, as CPIs adotam muitas vezes medidas arbitrárias, ao arrepio da Constituição de 1988, em detrimento de algumas garantias individuais do Estado de Direito. O constituinte de 1988 não concedeu à CPI um poder sem limites, de modo que, se a CPI não se curvar aos limites constitucionais, o Poder Judiciário deverá pô-la no trilho constitucional.

Enfim, todas essas intricadas questões e suas implicações técnicoconstitucionais reclamam o desenvolvimento doutrinário de proposta de solução para as imperfeições da investigação parlamentar no Brasil.

1. CONCEITO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO

A instituição de comissões é um método “racionalizante” de organização dos trabalhos parlamentares, pelo qual se comete a um número restrito de seus membros o estudo de questões complexas e a elaboração de um relatório preparatório da deliberação pelo Plenário. As comissões parlamentares tornam mais eficiente o Parlamento, cujas diversas atividades não podem ser realizadas em todas as suas etapas pela totalidade de seus membros. No século XX, verificou-se uma irreversível transferência de tarefas parlamentares do Plenário para as comissões preparatórias, aumentando a capacidade de trabalho do Parlamento em uma época correspondente a um Estado cada vez maior e mais atuante:

A institucionalização das Comissões Parlamentares, apesar de existir na prática parlamentar, só ocorreu de maneira definitiva depois da Primeira Guerra Mundial, no momento em que os Parlamentos tiveram de adequarse à estrutura dos governos, aumentando seu número à medida que o Estado assumia novas funções (BARACHO, 2001, p. 69).

As comissões são órgãos do corpo parlamentar compostos de membros do próprio Parlamento. Integra-as um número restrito de pessoas, uma pequena fração do total de parlamentares, a qual executa melhor e com

mais eficiência que o inteiro Parlamento certos trabalhos, como a redação de uma proposta legislativa:

Como o pleno não pode estar reunido ininterruptamente, e como é demasiado grande e lento e resulta inoperante para fazer determinadas coisas, é preciso que estes órgãos menores intraparlamentares, respeitando a distribuição de partidos existentes na Câmara, façam os trabalhos preparatórios das sessões do pleno (MENAUT, 1987, p. 175).

Em sua composição deve, portanto, atender à representatividade das forças partidárias na assembléia parlamentar, pois “cada comissão deve ser uma imagem reduzida do pleno e, em sua composição, reproduzir a composição do pleno” (HESSE, 1998, p. 434). As comissões não dispõem, em princípio, de poder decisório, competindo-lhes tão-somente pôr o Parlamento em condições de tomar determinada decisão.1São, pois, pequenos órgãos fracionários do Parlamento, destituídos de poder decisório, voltados essencialmente à instrução prévia do órgão parlamentar decisório:

As comissões são organismos constituídos em cada uma das Câmaras, compostas de um número geralmente restrito de seus membros, escolhidos em razão de uma certa competência presumida, encarregadas, em princípio, de preparar o seu trabalho (BARTHÈLEMY, 1934, p. 10).

A CPI é um microorganismo parlamentar específico que permite ao Poder Legislativo ingerir-se nos assuntos atinentes aos outros Poderes, sem, no entanto, usurpar as competências constitucionais alheias:

Por definição, (a comissão parlamentar de inquérito) é técnica parlamentar, – a técnica da ingerência da legislatura no que concerne aos outros poderes, sem os usurpar, fora das espécies em que lhe cabe decretar a responsabilidade criminal ou política de membros dos outros poderes (MIRANDA, 1953, v. 2, p. 261).

A CPI é uma espécie particular de órgão fracionário do Parlamento, destinada à descoberta e elucidação de fatos de difícil acesso, de cujo conhecimento e domínio dependa o eficiente funcionamento do ramo parlamentar do Estado (DIMOCK, 1929, p. 16). A CPI é um órgão intraparlamentar pelo qual o Parlamento toma conhecimento direto dos fatos, instruindo-se por si próprio antes da adoção de qualquer medida.2Se se impusesse ao Parlamento o conhecimento apenas dos fatos comunicados pelo Executivo, negando-lhe o direito de buscar de per si novos esclarecimentos e informações, seria condená-lo à cegueira constitucional:

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O Parlamento é um cego constitucional que não pode enxergar senão pelos olhos do governo Todo o problema reduz-se em saber se o Parlamento tem o direito de enxergar por si próprio – ou se está constitucionalmente condenado a não enxergar senão pelos olhos do executivo (BARTHÈLEMY, 1934, p. 240).

A CPI funciona, portanto, como um observatório parlamentar, alargando o seu horizonte de informações. As CPIs são, pois, microorganismos parlamentares voltados à elucidação de fatos concernentes à atividade parlamentar3, compostos de um número reduzido de parlamentares escolhidos em atenção à representatividade dos partidos políticos.

Por fim, no encerramento deste capítulo conceitual, cumpre observar que o microorganismo parlamentar investigativo representa sempre a totalidade da câmara parlamentar que o criou, dela não se distinguindo senão pelo reduzido número de parlamentares em sua composição:

A Comissão Parlamentar de Inquérito, desta sorte, não pode ser havida por órgão distinto do Congresso. Criada pelo Senado, é o próprio Senado. Instituída pela Câmara, não é senão a Câmara. Embora funcione com um número reduzido de membros, é sempre representativa da unidade total. A totalidade que representa é tanto mais expressiva quanto, por força de preceito constitucional, ela se forma de elementos de todos os partidos, na proporção de sua representação (ITAGIBA, 1954, p. 62).

2. CARACTERÍSTICAS DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O exame do ordenamento jurídico brasileiro das CPIs permite descobrir suas características específicas, quais sejam a singularidade investigatória, a transitoriedade, a limitação e a instrumentalidade.

2.1. SINGULARIDADE INVESTIGATÓRIA

O inquérito parlamentar do art. 58, § 3.º, da Constituição de 1988 não se confunde com outras atividades parlamentares do mesmo gênero. Dele se distinguem, primeiramente, as investigações parlamentares de irregularidades funcionais dos servidores públicos das Casas Legislativas do Congresso Nacional, baseadas na competência constitucional de cada qual para organizar seus próprios serviços administrativos, consoante os arts. 51, IV, e 52, XIII. Não se trata do inquérito parlamentar previsto pelo art. 58,

§ 3.º, da Constituição de 1988. Consiste em mero procedimento administrativo...

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