A participação social na administração pública local: A construção da democracia deliberativa no município de Porto Alegre

AutorLeandro Konzen Stein
CargoMestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Integrante dos Grupos de Estudos e Pesquisas - Advogado.
Páginas2-20

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Introdução

A administração pública contemporânea passa por profundas mudanças, em face do declínio do liberalismo e do surgimento de tentativas de radicalizar a democracia, que podem ser aglutinados no republicanismo e no procedimentalismo, ou ainda, numa terceira via, recentemente classificada de cooperativismo reflexivo.

No Brasil, esse processo de democratização do Estado e da instauração de uma nova relação do mesmo com a Sociedade ganha força com a Constituição Federal de 1988 que estabelece o princípio democrático com primazia absoluta.

Todavia, a deliberação política também é regulada, em nosso sistema normativo-constitucional, pelo princípio da constitucionalidade, isto é, pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais expressos no texto magno que serão os pressupostos normativos da formação pública da opinião e da vontade não-coatadas.

Além disso, as modernas teorias políticas e sociológicas advogam outros pressupostos (empíricos ou externos ao sistema jurídico) para uma participação efetiva da cidadania, que se podem aglutinar no amplo conceito de capital social que irá revelar a importância do histórico e do sentido de pertencimento à comunidade.

Na efetivação desses pressupostos assume destaque ímpar o ente público municipal, eis que é locus privilegiado de efetivação de uma participação calcada no espírito cívico, visto que o sentimento identidade coletiva é muito maior do que nos demais entes federativos, além de possibilitar um diálogo mais dinâmico em face das próprias características do espaço local que congrega um número menor de cidadãos que os Estados e a União.

Desse modo, nesse artigo, buscaremos (a) estabelecer um quadro panorâmico das diversas possibilidades conceituais da democracia radicalizada, é dizer, de democracia participativa em oposição à tradicional concepção liberal de soberania restrita ao voto, para (b) visualizando os pressupostos normativos (internos) e empíricos (externos) à participação social no município, (c) perquirir sobre a eficácia das formas de deliberação democrática no município de Porto Alegre, notadamente o Orçamento Participativo e a Governança Solidária Local.

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1 Da democracia representativa à democracia participativa: A deliberação política no estado democrático de direito – liberalismo, republicanismo, procedimentalismo e cooperativismo reflexivo

Não é novo o fato de que há muito vem perdendo força o liberalismo clássico e seu modelo representativo de democracia política. O paradigma liberal-burguês de administração pública e exercício da soberania popular na escolha de representantes está em franco declínio. A ideia elitista schumpeteriana2 de democracia como método, e não como fim em si mesma3, que dominou o pensamento político até a década de 1970, é corolário do liberalismo burocrático e, também, da forma renovada do capitalismo (interventivo), o Welfare State. Como aponta Rogério Leal:

Esta leitura do Estado como condições e possibilidades de governos regidos pelos termos da Lei, portanto, não é suficiente quando se pretende enfrentar os conteúdos reais da existência de sociedades dominadas pelas contradições econômicas e culturais e das cidadanias esfaceladas em sua consciência política. Em outras palavras, a Democracia Liberal, ao designar um único e verdadeiro padrão de organização institucional baseado na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica, no equilíbrio entre os poderes do Estado, abre caminho à conquista da unanimidade de um conjunto de atitudes, hábitos e procedimentos, os quais, geralmente, refletem a reprodução do status quo identificado com projetos de sociedade mais corporativos do que comunitários. Em tal quadro, compete ao Estado o Direito tão-somente regular as formas de convivência social e garantir sua conservação; a economia se converte numa questão eminentemente privada e o direito, por sua vez, se torna predominantemente direito civil, consagrando aos princípios jurídicos fundamentais ao desenvolvimento capitalista, como os da autonomia da vontade, da livre disposição contratual e o da pacta sunt servanda4.

As formas tradicionais de democracia têm, portanto, se modificado em função do declínio da ideologia liberal e do renascimento do republicanismo:

[...] na Itália renascentista, Maquiavel (Niccolò Machiavelli) e vários contemporâneos seus concluíram que o êxito ou o fracasso das instituições livres Page 4 dependia do caráter dos cidadãos, ou seja, de sua “virtude cívica”. Segundo uma interpretação consagrada do pensamento político anglo-americano, essa escola “republicana” de humanistas cívicos foi posteriormente superada por Hobbes, Locke e seus sucessores liberais. Enquanto os republicanos enfatizavam a comunidade e as obrigações dos cidadãos, os liberais ressaltavam o individualismo e os direitos individuais. [...]

Nos últimos anos, porém, uma onda revisionista varreu a filosofia política anglo- americana. [...] Segundo os revisionistas, existe uma importante tradição republicana ou comunitária que vem desde os gregos e Maquiavel, passando pela Inglaterra do século XVII, até os constituintes americanos. Em vez de exaltarem o individualismo, os novos republicanos evocam a eloquente exortação comunitária5.

A República pressupõe ampla divulgação e abertura da administração ao controle da cidadania que deve fazer-se ouvir seja na assembleia de cidadãos (democracia direta, como na Grécia Clássica), seja por meio de representantes (democracia representativa):

Enquanto o principado no sentido clássico da palavra, a monarquia de direito divino, as várias formas de despotismo, exigem a invisibilidade do poder e de diversos modos de despotismo, exigem a invisibilidade do poder e de diversos modos a justificam, a república democrática – res publica não apenas no sentido próprio da palavra, mas também no sentido de exposta ao público – exige que o poder seja visível: o lugar onde se exerce o poder em toda forma de república é a assembleia dos cidadãos (democracia direta), na qual o processo de decisão é in re ipsa público, como ocorria na agora dos gregos; nos casos em que a assembleia é a reunião dos representantes do povo, quando então a decisão seria pública apenas para estes e não para todo o povo, as reuniões da assembleia devem ser abertas ao público de modo a que qualquer cidadão a elas possa ter acesso6.

Rousseau é um dos nomes destacados do republicanismo (que remonta a Aristóteles). O autor francês é contrário a associações secundárias de indivíduos, ou seja, opõe-se à democracia de grupos, temendo o sectarismo que pode advir de uniões parciais (não totais, como no Estado: volontè genèrale) de indivíduos que pensam da mesma forma:

Rousseau mostra como a existência de “associações parciais” prejudica a vontade geral. Ele diz que “tal deliberação pode ser vantajosa para uma pequena comunidade, mas muito prejudicial para a grande comunidade”. O termo deliberação tomado nesse sentido particular aparece precisamente naquelas passagens em que Rousseau condena aqueles grupos que normalmente constituem o eixo principal da discussão política: os grupos ou as partes que se enfrentam numa troca de argumentos7.

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Essa concepção trará sérias consequências no que se refere à deliberação política e à formação democrática da opinião e da vontade. Rousseau encara a deliberação pública (entendida como processo de formação da opinião e da vontade) como perigosa. Como explica o professor do Departamento de Política da Universidade de Nova York, Bernard Manin: “Para Rousseau os indivíduos já sabem o que querem quando vão a uma assembleia pública para decidir algo em comum, porém qualquer ato de persuasão empreendido pelos outros pode corromper sua vontade e oprimi-la.”8.

Ou seja, Rousseau pregava que o indivíduo que precisa tomar uma decisão (no âmbito da esfera pública) já sabe antes o que quer. Em outros termos, a vontade geral é prévia à discussão pública dos temas que afetam a vida comunitária, sendo esta desnecessária e, mesmo perigosa.

Veja-se, portanto que o liberalismo clássico e o comunitarismo exacerbado são dois vertentes ideológicos antagônicos que – para melhor operação do princípio democrático e da cidadania ativa – devem encontrar um ponto de equilíbrio.

Acredito que seja indiscutível a preocupação liberal com o efeito corrosivo que a política majoritária desenfreada pode ter sobre as liberdades civis e políticas. No entanto, o modelo deliberativo de democracia pode fornecer certos conceitos, bem como soluções institucionais, para mitigar e, talvez, transceder a velha dicotomia entre a ênfase liberal nas liberdades e direitos individuais e a ênfase da teoria democrática na deliberação coletiva e na formação da vontade9. [Grifou-se].

É dizer: tanto o liberalismo quanto o republicanismo (ou comunitarismo, em sua vertente contemporânea) apresentam falhas que devem ser resolvidas por meio de uma síntese superior que concretize efetivamente os pressupostos democráticos.

Como explica o discípulo e substituto de Habermas, Axel Honneth, a distinção fundamental entre paradigmas de Estado democrático contemporâneos é entre os modelos liberal e republicano, somando-se, hoje, o paradigma intermediário de Habermas, qual seja, a democracia procedimental, a qual pressupõe deliberação e participação efetiva da cidadania. Contudo, essa distinção é mais didática e simplificadora do que o quadro efetivo, haja vista que vários autores não se filiam a qualquer...

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